Luiz Eduardo de Carvalho
A editora Patuá lançou recentemente o livro Pistas falsas de José Eduardo Gonçalves, uma coletânea de contos escritos sob a perspectiva da concisão. O autor, natural de São João del-Rei, é jornalista, editor e escritor. Escreveu Cartas do Paraíso (Mazza, 1998), Vertigem (Record, 2003) e A cidade das memórias flutuantes (Conceito, 2005) e foi organizador do livro Ofício da palavra (Autêntica, 2014), premiado em 2015 como melhor livro teórico do ano pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLIJ). Foi editor da revista de cultura Palavra (1999-2000) e é um dos editores da revista de arte e literatura Olympio.
O atual volume de contos reúne 59 textos em seis intertítulos: “Vidas em desalinho”, “Só garotos”, “O tigre e outros bichos”, “Espantos”, “Nocautes” e “Pistas falsas”, nos quais os temas se apresentam transversalmente e a linguagem prima pela economia consciente na tessitura dos enredos.
O esforço do autor, confidenciado no debate de lançamento da obra, preza pela concisão ao extrair do conto tudo o que pode ficar de fora até o limite de ainda entregar uma história completa e interessante resulta num exercício literário de gestaltismo (Gestalt, gestaltismo ou psicologia da forma é uma doutrina da psicologia baseada na ideia da compreensão da totalidade para que haja a percepção das partes). Desse modo, imagine que, se quatro pontos equidistantes forem desenhados num plano, a nossa mente tende a enxergar um quadrado ali, mesmo que as arestas não estejam explicitamente desenhadas. Da mesma forma, nos contos de José Eduardo Gonçalves, fica para o leitor o esforço espontâneo de completar a história a partir da figuração de pontos fundantes da narrativa sugerida.
Torna-se difícil, portanto, classificar todos os textos contidos no livro como contos no sentido mais estrito da definição do gênero. Até mesmo o experiente Milton Hatoum, ao escrever a quarta capa, diz que não se compromete em afirmar se são contos ou crônicas ou textos de outra modalidade. “O que nesses textos fascina o leitor é a densidade das relações humanas, narradas com brevidade, precisão e, quase sempre, com assombro, surpresa e (auto)ironia” – diz o multipremiado autor manauara. E nisso reside um dos pontos focais de interesse da obra: a capacidade de fazer, com naturalidade, narrativas curtas capazes de contar histórias bem maiores do que o posto no papel.
Assim, há textos em que o conflito é sugerido, mas não resolvido, como em “A casa”, “O casal” ou “No avião”. Em outros, lemos a resolução de um conflito que sequer havia sido apresentado, como em “Adeus”. Há aqueles em que a ênfase recai sobre o cenário, ou sobre um objeto, um mobiliário ou até uma peça de vestuário, que personifica o conflito subjacente à trama, como em “O pai, o filho”, “Piscina”, “A canção”, “Sapatênis”, “O que restou” ou “A árvore”. Noutros contos, escorregamos por pequenos fluxos de consciência que nos levam ao enredo, como em “Mentiras amigas”. Até mesmo com personagens indeterminados, o autor parece capaz de contar uma história, como em “O corsário”. Ah, sim, claro, há contos que podem ser enquadrados no critério mais clássico desse gênero, com todos os elementos dispostos e articulados – com igual concisão, mas sem supressões evidentes – como em “Crepúsculo”, “O perdão”, “A carta”, “Praia”, “Campeão”, “A senha”, “O garoto”, “O vestido”, entre outros.
Essa proposital incompletude é mais obviamente observada na seção “Nocautes”, de título inspirado em Cortázar, de quem José Eduardo Gonçalves se confessa fã, que dizia que enquanto um romance se assemelha a uma luta de boxe ganha por pontos, o conto deve ganhar por nocaute. Assim, nesse intertítulo, encontramos potentes diretos de direita, cruzados de esquerda, capazes de nocautear os leitores com duas ou três linhas, na corrente dos nano-, mini- e microcontos tão alardeados por outros autores experimentalistas do subgênero. A confissão mais contundente, contudo, acerca desse esforço de concisão que recaí sobre a supressão de partes constituintes dos contos clássicos pode ser observada em “A ferida”, quando o autor entrega: “Não me interessa mais o desenlace dos enredos”.
A temática, como é de se esperar numa coletânea de quase cinco dúzias de contos, é diversificada, mas perpassa aqui e ali alguns assuntos que falam de sentimentos esgarçados, relações por um fio, medos em relação ao futuro ou mesmo a fragilidade dos filhos crianças e outros medos primitivos, enredos autoficcionais em que delatadas memórias (“A vingança do escritor é inventar a vida dos outros”, em “Álbum de retratos”) se escamoteiam em ficção, percepção diante da dissociação com a natureza e a tentativa de reintegração, metáforas sobre a própria arte de narrar e outras menções metalinguísticas (Clarice Lispector, Jorge Luis Borges) e, até mesmo, um pequeno ensaio metafórico acerca do espanto diante do inenarrável, como no primoroso conto “A selva”, que inspira a capa do livro.
Para que se alcance tal efeito, a linguagem é lapidada com o esmero de um esteta. Pontualmente salpicada de nonsense, de um humor sereno e de refinada ironia, como diz Maria Ester Maciel na orelha do livro:
Jogos de engano, diálogos cheios de ditos, não ditos e entreditos, desfechos incomuns, detalhes triviais à primeira vista, mas incisivos como pistas (falsas ou plausíveis), tudo isso evidencia a destreza narrativa desse escritor que, sem abrir mão da ironia e de certo humor inquietante, permite-se também o exercício dos afetos e da empatia.
A linguagem, ainda capaz de densas metáforas, prima, no entanto, pela clareza que a concisão solicita. A dicção, em alguns momentos, é de pura poesia: no evento de lançamento em São Paulo, enquanto o editor Eduardo Lacerda lia o conto “Piscina” em voz alta, embeveci-me com a prosódia que, em Drummond, ouvimos em poemas como “O elefante”. Ao chegar em casa, reli ambos os textos em voz alta para ratificar minha impressão de que a cadência era quase idêntica.
Em entrevista ao Zero Hora de 02 de março de 2002, ao ser perguntado por que escrevia, João Gilberto Noll (outro autor citado, de quem José Eduardo Gonçalves se confessa uma espécie de pupilo que tenta, amiúde, emular seu estilo ou percorrer as sendas de suas temáticas) respondeu: “às vezes escrevo para não precisar matar alguém na vida!” Ronaldo Cagiano (autor brasileiro radicado em Portugal, que figura na lista de agradecimentos do livro) sugeriu-me que perguntasse ao José Eduardo no debate do lançamento se ele também escreve sob essa perspectiva catártica. A resposta? “Não, desta vez, não a entregarei pronta, pois está exuberantemente registrada no colofão da obra que, assim que você leitor tiver em mãos, poderá saborear sob a perspectiva ali esmiuçada por este genial prosador”. Trata-se de mais do que uma recomendação; é quase uma obrigação ler Pistas falsas a fim de se inteirar das mais contemporâneas tendências da narrativa curta brasileira e dos mais sinceros motivos em produzi-las.