“Condensando os clássicos”, por Ernest Hemingway

Ernest Hemingway

Ernest Hemingway

Tradução de Pedro Rocha Souza

Eles quase terminaram o seu trabalho de condensar os clássicos. São eles um pequeno grupo de ávidos condensadores, aparentemente patrocinados por Andrew Carnegie, justo ele que esteve trabalhando nos últimos cinco anos para reduzir a literatura universal em palatáveis petiscos para o consumo de cansados homens de negócio.

D’Os Miseráveis restaram dez páginas. Dom Quixote parece ter sido resumido numa coluna e meia. As peças de Shakespeare seriam abreviadas em oitocentas palavras cada. A Ilíada e Odisseia talvez sejam reduzidas às filigranas.

É algo esplêndido trazer os clássicos para o círculo dos homens de negócio, exaustos ou exauridos, ainda que ao fazerem isso as faculdades e as universidades recebam um estigma por trazerem homens de negócio para o círculo dos clássicos. Mas há uma maneira ainda mais rápida de apresentar o assunto para aqueles que devem trabalhar enquanto leem: reduzir a literatura a manchetes de jornal, seguidas dum breve resumo da notícia, para que se dê o essencial sobre o assunto.

Tomemos Dom Quixote por exemplo:

LOUCO CAVALEIRO TRAVA JUSTA ESQUISITA
MADRID, ESPANHA (Por Serviço de Notícias dos Clássicos) (Especial) — A histeria da guerra é culpada pelas estranhas ações de "Don" Quixote, um cavaleiro local que foi preso logo cedo na manhã de ontem quando avançava em "justa" contra um moinho de vento. Quixote não pode oferecer explicações a respeito de suas ações.

William Blake seria muito bem reduzido:

GRANDE GATO EM CHAMAS
Fera flamejante e enfurecida aterroriza floresta

RAJPUTANA, INDIA, 15 de Junho (Por Serviço de Notícias dos Clássicos) (Especial) —  William Blake, famoso poeta inglês, atingiu hoje um estado de colapso nervoso depois duma série de estressantes aventuras na selva de Rajputana. Blake esteve perdido por onze dias, sem acesso a comida ou roupas. Blake, ainda delirando, gritou: "tigre, tigre, que flamejas nas florestas da noite". Caçadores locais foram em busca da fera. "Florestas da noite" parece fazer referência ao rio Nite, que corre próximo a Rajputana.

Assim seria Coleridge:

MATADOR DE ALBATROZ CRITICA LEI SECA
"Velho" Marinheiro esbraceja contra medidas desérticas

CARDIFF, GALES, 21 de Junho (Por Serviço de Notícias dos Clássicos) (Atrasada) — "Água, água por todo lugar e nenhuma gota para se beber" — são essas as palavras que John J., (Velho) Marinheiro, usou ontem para descrever a Lei Seca em um pronunciamento diante da United Preparatory Schools. O marinheiro foi cercado no fim da sua fala por um comitê da Sociedade de Apoio aos Ornitólogos.

Óperas são muito longas — eis Pagliacci — e sequer merecem extensas manchetes.

ATENTADO NA SICÍLIA, 2 MORTOS, 12 FERIDOS
PARLEMO, SICÍLIA, 25 de Junho (Por Serviço de Notícias dos Clássicos) — Dois mortos e doze feridos: esse foi o resultado de uma briga iniciada na última noite nos arredores da teatro de ópera local. Giuseppe Canio, o líder dos agitadores, suicidou-se. 

Shakespeare é obviamente verborrágico e suas tramas bastantes sensacionalistas. Segue o essencial de Otelo:

MATOU A NOIVA BRANCA
Moça da Alta Sociedade, casada com herói de guerra africano, é encontrada estrangulada na cama 

Caindo em fúria no mais primitivo e selvangem dos ódios, ciumento é acusado pelas autoridades locais por ser culpado pela morte da sra. Desdemona Othello, na Av. Ogden, nº 2345. 
Faz pouco mais de dois anos que o Cap. Frank Othello desembarcou em Hoboken. Em seu peito ainda brilhavam as condecorações recebidas pela admiração dum soberano. Seu rosto negro resplandeceu de prazer ao ver a moça. 

Haveria mais — muito mais — talvez. Shakespeare não era tão verborrágico no fim das contas. O caso de Otelo tomaria tanto espaço nos jornais quanto o caso de Stillman. Artigos especiais, relatórios de psicanalistas e discussões sobre relações matrimoniais por escritoras famosas inundariam os jornais. Talvez Shakespeare esteja muito bem condensado da maneira que está.

Toronto Star Weekly
20 de Agosto, 1921

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