Olavo Bilac (Fantasio)
Para comemorar a nossa 200ª publicação, trazemos uma crônica escrita por Olavo Bilac (sob o pseudônimo “Fantasio”, publicada em 17 de dezembro de 1894 na Gazeta de Notícias (nº 350), sobre os primórdios do cinema no Brasil e algumas “profetizações” quanto ao futuro.
Santo Deus! Sem ser tão romântico como Theóphile Gautier, que abominava as estradas de ferro só porque a fumaça das locomotivas lhe sujava as paisagens queridas – confesso que este Edison, criminoso de lesa-poesia, me inspira um desgosto grande, em que entra uma certa dose de medo. Assisti sem comoção notável à invenção do telefone: não era coisa digna de espanto, para quem já tinha visto o telégrafo. Quando nasceu o fonógrafo, comecei a tremer. Oh! Guardar a voz de uma pessoa amada, guardá-la sacrilegamente n’um rolo de cera vulgar, materializar n’um canudo a encantadora inflexão com que essa voz um dia nos falou de amor, e, mais ainda: perpetuar n’esse canudo o mesmo doce rumor chuchurreado dos beijos que um dia nos deliciaram os lábios! Já isso é horrível! Porque, tendo diante dos olhos a fotografia de uma noiva morta, e tendo metidos nos ouvidos os dois tubos de um fonógrafo, já pode um homem, por tempo indefinido, corporizar a sua saudade – o que é uma profanação sem nome…
Edison, porém, não parou. A mania das invenções é uma ladeira íngreme. O eletricista despencou-se por ela abaixo, e agora já não há meio de lhe sustar a vertiginosa carreira.
Onde irá parar essa carreira, amigos? Deus o sabe! Deus, ou o diabo…
Esse frio yankee, que começou a existência a vender jornais, no meio da rua, deve ter sofrido muita fome, muito rigor do inverno, muita decepção amarga. E dentro da sua alma o sofrimento deve ter bem cedo estancado de todo a nascente dos sonhos, a fonte de todas as ilusões. Todas as suas invenção são talvez a vingança do antigo vendedor de jornais, do garoto cujo estômago faminto sentiu a tirania da triste realidade… Abaixo o ideal!, foi o grito do garoto, quando se viu livre da miséria… E desatou a destruir todos os sonhos e a estrangular todas as ficções. O último golpe vem perto: a obra satânica caminha a passos largos para a sua última conquista: dentro em pouco, todo o maravilhoso castelo da ilusão divina terá caído por terra, como um simples, um frágil, um reles castelo de cartas.
O cinetoscópio é o penúltimo passo. O movimento fotografado! Que horror!
Tu, que me lês, responde: “não te lembras, às vezes, com uma saudade e um gozo inenarráveis, do gesto brando e amoroso com que dois braços femininos um dia te chamaram, cheios de promessas?”
Os anos passaram sobre a tua alma, ficaste velho, e esses dois formosos braços brancos e perfumados foram talvez apodrecer para sempre no fundo de uma cova. Mas, ainda hoje, de quando em quando, revoa em sonho aquele gesto, revês tudo o que se lhe seguiu, e um raio de amor e de desejo te acende o sangue velho…
Pois bem! Hoje, com o cinetoscópio, terias perpetuado esse apaixonado movimento de braços, fotografando-o n’uma placa metálica. E bastar-te-ia mover uma pequena manivela, o fazer agir sobre a placa uma corrente elétrica, para que visses, mas positivamente visses, a tua amante estender-te os braços e chamar-te… E imagina que horror: o gesto amoroso repetido ao infinito, durante uma, durante cem horas, cem semanas, cem anos! Acabarias naturalmente por achar cômico o que hoje te parece divino: e, em vez de chorar com a evocação do delicioso momento, desatarias a rir, desgraçado mortal, mísero desiludido!
Ah! Ainda não é tudo! Edison, o Jack-the-Ripper da fantasia, o estripador das ilusões, está dando a última demão a uma nova perversidade.
Como se chamará o novo aparelho? Não sei. Mas que importa o nome, se a maldade é a mesma?
Será mais um termo bárbaro introduzido na língua, e mais uma hora de agonia para o meu velho mestre, o puritano Castro Lopes. Trata-se de uma aplicação da fotografia elétrica às grandes distâncias; não a uma distância de passos, mas a uma distância de milhões de quilômetros…
Imaginas que estás aqui, e que tua amante está na Austrália (é uma coisa que pode suceder: não faltam nunca desgraças que apartem corações amantes). Agora, se quiseres ver a tua amante, contentar-te-ás com vê-la apenas pelos olhos da alma. Assim que Edison tiver aperfeiçoado o seu último invento, poderás vê-la com os olhos da cara, com esses mesmos olhos que a terra há de comer.
Quando a saudade te apertar, irás a um canto do teu escritório e apertarás um botão elétrico. Uma campainha soará logo: drin, drinlin… “Allow!”, “Que deseja?”, “Ver a Sra. X. em Melbourne!”, “Pronto!” E, sobre uma chapa luminosa, verás desenhar-se a figura da tua boa amiga, que te sorrirá, que te jogará beijinhos com as pontas dos dedos, e, para te mostrar que vai bem de saúde, dançará mesmo um minuete airoso, mostrando-te o começo das pernas bem feitas, calçadas meias de seda preta….
Adeus, saudade! Adeus, gosto amargo de infelizes! Adeus delicioso pungir de acerbo espinho! Já não há mais saudade, porque já não há mais distâncias!…
Ah! Isto é o fim de um mundo, meus amigos! Ide ver o cinetoscópio! Ide ver uma briga de galos, uma dança serpentina, uma briga entre yankees, pilhadas em flagrante, fixadas fotograficamente para toda a eternidade – e dizei-me se ainda tendes ilusões que vos povoem um sonho, e rimas que vos enfeitem um soneto.