A Bruzundanga do Brasil: sobre a Primeira República brasileira

Sami França Silveira

A presente resenha crítica busca interpretar a obra Os Bruzundangas do literato carioca negro Lima Barreto (1881-1922), jornalista cuja obra apresenta caráter antiburguês e anarquista, na qual, baseado em sua própria experiência de vida, produz uma perspectiva satírica, irônica e realista da Primeira República do Brasil sob várias frentes: economia, política, e especialmente intelectualidade e cultura. É sob essa mesma perspectiva crítica que busco compreender o cenário republicano brasileiro na passagem do século XIX para o XX. O mais irônico é perceber as diversas formas de continuidades culturais ainda hoje, sobretudo na realidade interioresca de Sergipe.

É a partir do estudo da “democrática” República dos Estados Unidos da Bruzundanga, que, assim como toda nação, possui seu próprio idioma e literatura, que o narrador nos ajuda a compreender aquela sociedade. Um lugar onde percebemos a existência de uma casta de intelectuais de letras, uma intelligentsia que quanto mais aparente e exótica se mostra, mais prestígio nobilizador acumula em uma população constituída majoritariamente de analfabetos. Impressionantemente, “quanto mais incompreensível é ela”, mais admirado “é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito” (p. 9).

Na chamada “Escola Samoeida”, uma escola literária, filosófica e poética, a produção intelectual de seus signatários se mostrava insuficiente, estéril e viciada, inviabilizando qualquer debate sério, pois eles, por sua vez, não pensavam ou refletiam por sí só: a boa e desejada profundidade reflexiva passavam longe de suas obras; a sentença indelével é que amam mais o fingimento de amar do que o amor propriamente dito, pois predomina entre eles e na sociedade como um todo a idolatria da aparência na impressão que causa o brilho do título e das medalhas do uniforme, sendo que, na verdade, “a glória das letras só a tem quem se doa inteiramente” (p. 12). A sociedade Bruzundanga é uma verdadeira assassina de talentos; segundo o narrador, não por desdém, “mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites de sala banal” (p. 56). A Escola Samoeida se baseava em autores estrangeiros, especialmente próximos do círculo polar ártico, representantes de costumes alienígenas se comparados ao costume dos trópicos, mas, ainda assim, imitavam seus trejeitos, cultivavam regras “absurdas” e repletas de “superstições”; imitavam seu modo de vestir, com roupas pesadas e caríssimas que contrastavam com a realidade da Bruzundanga. Às artes aqui produzidas os conterrâneos não dão importância; despreza-se o mérito alheio, especialmente de quem julgam inferior, tendo como mais importante o artista branco estrangeiro ao invés do artista mestiço nativo que, diante do desprezo, se entristece e mergulha em depressão e vícios. Esses, particularmente, são os verdadeiros heróis em uma sociedade cujos bom gosto e elevação de espírito são desprezados. Vejamos o que diz o narrador (p. 89):

É assim o gosto da gente superior da Bruzundanga, gente feita de doutores e aventureiros e ambas dadas à chatinagem e à veniaga, desde os primeiros caçando casamentos ricos e os segundos no cavalo comercial e industrial, sem ter tido tempo de se deter nessas coisas de pensamento e arte.

O primeiro-ministro daquela nação é chamado ironicamente de “mandachuva”, figura que se encontrava envolta misticamente sob o duro peso do personalismo e do paternalismo, afinal de contas sob os seus ombros estava o curioso destino de planejar um futuro para todos, em ordem, rumo ao progresso; sua lábia era o seu reparo estético constante, enchendo todo o imaginário e os ouvidos, mas não o estômago das massas, de emoção, confusão e esoterismo. A classe política em geral são palermas ambulantes, propagandistas da mediocridade, reflexo da mentalidade e da cultura média de seus cidadãos; não conhecem a história da própria nação que administra, são especialistas em incompetência e a política se traduz em “uma vulgar especulação de cargos e propinas” (p. 53). Eles certamente desejam no post mortem estátuas nos centros das praças para homenageá-los eternamente; ao invés, deveria ser posto um monumento escrito assim: aos contribuidores do exato oposto do objetivo da política definido desde a antiguidade clássica, que é em prol do “bem comum do povo” e da “felicidade geral da nação”.

Economicamente era um país de solos tão férteis que chegavam a saltitar dele vastas riquezas. Mas, paradoxalmente, o seu povo socialmente vivia em grande pobreza. O imperativo da política econômica do governo era um fiscalismo exagerado de taxar tudo e todos, exceto os oligarcas latifundiários do café que tinham parentes no governo. Todo o prejuízo ficava na conta do povo em prol do sustento deles, pois a política de valorização do café ignorava o mercado já saturado. Então, o governo se endividava desesperadamente em vultosas somas de dinheiro devido a empréstimos a juros altos para manter o império cafeeiro dos seus correligionários políticos em um ciclo sem fim. É interessante que, com o Brasil, não era diferente. A década de 1920 foi marcada por altos e baixos devido a problemas relacionados à indústria cafeeira, que era parte central da conjuntura econômica. Tal setor tomou a direção do Estado por todo o período republicano até a década de 1930. Portanto, o Brasil era profundamente agrário e ligado ao poder dos latifundiários. Ainda assim, depois de 1930, o café prosseguiu como um importante setor econômico. De fato, na Bruzundanga, havia pequenos booms de riqueza, mas ela fazia parte da coleção de prosperidades momentâneas que logo se derretiam tal como gelo sob a luz do sol do meio-dia, pois sua estrutura monetária era raquítica e frágil. Dessa forma, não poderíamos esperar maiores estabilidades, maiores e novas iniciativas privadas; era evidente que os políticos estavam mais preocupados em adornar a “casca” para impressionar a visão de estrangeiros do que promover políticas públicas voltadas a transformar a realidade interna. O narrador considera a Bruzundanga um país latifundiário com toques feudais, e portanto essencialmente agrícola mas paradoxalmente sem agricultura, pois infelizmente todos os salários subiam. Mas, para variar, os salários dos trabalhadores agrícolas em especial permaneciam cristalizados e em desvalorização, entregues ao fio da foice da miséria. Os trabalhadores filhos da terra e que laboravam arduamente, produziam e viviam dela se encontravam em uma atmosfera inebriante de apatia, languidez e tristeza enquanto o comércio do país estava entregue nas mãos de estrangeiros.

Antes de se tornar República, a Bruzundanga era uma monarquia, assim como os Estados Unidos do Brasil (nome oficial da hoje República Federativa do Brasil a partir de 1889 até 1968). Isso causava espanto ao narrador pois os antigos nobres desse período não possuíam um alter ego tão elevado quanto a “nova nobreza” do período republicano. A própria legislação impressionantemente se colocava de joelhos, favorecendo uma retroalimentação dos privilégios dessa nova nobreza bacharelesca. A máquina do Estado, que em teoria deveria servir ao povo, na Bruzundanga possui a prioridade de empregar a nobreza da terra; esta se encontra distante do povo, ironicamente de quem paga os seus salários, no pico do mais elevado monte, como na Serra de Itabaiana ou em Serra Negra, tais como semideuses no Olimpo. O autor se refere ao costume arraigado da sociedade de Bruzundanga de venerar religiosamente os médicos, advogados, militares, engenheiros e, até mesmo, farmacêuticos ou dentistas; de que, sob a prerrogativa do “saber”, esses doutorescos acreditavam que detinham a chancela da “lei divina e humana” de ocuparem automaticamente os lugares de maior destaque na sociedade. Os médicos, só por serem médicos, são tidos por sábios da literatura sem mesmo escreverem nada de relevante e sua inauguração de tal ascensão social é um “casamento rico” e frequentar a igreja, que a maioria frequenta para acrescentar a cereja do bolo ao seu status social de aparências, sendo que, no fundo e na conduta da vida prática, não passam de materialistas ateus. Como se não bastasse essa tragicômica situação, existem aqueles que sequer possuem alguma espécie de papel, édito, carta ou diploma, mas buscam se nobilizar a todo custo. Para tal, viajam à Europa usando botas, anéis, cartolas e bengalas lustradas, e até mesmo chegam a mudar o próprio nome de modo a aparentar ter raízes estrangeiras e em suas veias correr sangue azul numa curiosa mixórdia de “ingenuidade infantil e idiotice senil”, cujo alter ego é elevado a mil.

A educação formal é corrupta, assim como todo o sistema. É um faz de conta que nunca reprova estudantes, especialmente os filhos daqueles pais que podem comprar os diplomas, monopolizando privilégios aos ricos. Somando a isso, a nobreza doutoral continua prosseguindo em descompasso vocacional, tornando-se mesmo hereditária e contrariando fatalmente a recém Constituição da República de Bruzundanga, que visava formalizar uma forma de governo republicano, liberal e representativo, semelhantemente ao de países estrangeiros, e combater privilégios acumulados pela elite do período monárquico, curiosa semelhança com o Brasil.

Há províncias em Bruzundanga cuja marca principal chega a causar ânsias a quem as visita. Refiro-me ao excesso de vaidade. Seus cidadãos julgam-se capazes de fazer qualquer coisa e de exercer qualquer profissão; procuram fazer de suas províncias réplicas da Europa, especialmente a la France, e se julgam estar a par de qualquer grande pensador, a exemplo de Aristóteles, Diderot, Descartes. O egocentrismo e o culto ao dinheiro são impressionantes, a ponto de medirem o ser humano por ele: “quem não tem dinheiro, nada vale” (p. 72). Todos se curvam aos ricos; suas atividades são repletas de opacidade, significação e sinceridade, embrutecendo e asfixiando as inteligências independentes de espírito e o pensamento livre, como bem atesta o narrador. Ai de quem confrontar essas famílias! A polícia, que deveria servir e proteger qualquer um do povo, é particularizada, agindo com grosseria, arbitrariedade e repressão para com os pobres e falando fino, agindo com conivência para com os ricos. Se os funcionários públicos de baixo escalão são assim, imaginem os da alta administração. A lei para eles servia de alguma coisa? De forma alguma; letra morta. Eles tinham mais interesse em tirar proveito dos canos nos quais corriam o dinheiro público, vazando-os em prol do interesse particular.

Os bruzundangas, embora vivam em uma nação mestiça, agem com discriminação aos mestiços, pois, se tinha como ideal civilizador o branco estrangeiro, e apesar desses burocratas não terem feito nada de relevante socialmente, o povo ainda os admirava pelo simples fato de eles serem elogiados pelos “sábios” do exterior. Inclusive, em matéria de elogiar uns aos outros, os bruzundanga sabem bem pois naquela República vivem de forçar heróis. O mínimo que se faz é motivo de ser taxado de gênio, mesmo sem possuir alguma atividade ou qualidade realmente importante ou notável. Tudo isso serve para ingenuamente tentar impressionar o exterior, e, em troca, o que os estrangeiros lhe oferecem? Um prato de desprezo, por se considerarem uma “raça” superior. Interessante notar que essas nações, mesmo se dizendo “civilizadas”, eram exportadoras de pseudociência racista. A Bruzundanga “queria ser um país rico, produtor de café, cacau e borracha”, mas não queria ser mestiça, desprezando aqueles braços negros e pardos que verdadeiramente os sustentavam a séculos. Semelhante ao Brasil, cuja elite e até a pequena burguesia estava recheada de ideias eugênicas e spencerianas.

Portanto é crucial a percepção de que a República Bruzundanga é uma nação que vive de fantasia e é profundamente oligarca, e que tenta fugir da própria história ao invés de reconhecê-la e enfrentá-la frontalmente para propor coletivamente medidas eficazes a suas mazelas sociais, sejam elas no campo político, econômico, intelectual e cultural, tão alimentadas e arraigadas na formação tanto dos bruzundanga quanto dos brasileiros. Qualquer semelhança não é uma mera coincidência. Como bem afirmou “um grande filósofo” (p. 79), para que se possa administrar quaisquer coisa, tem de se conhecer a sua história.

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Cobaia 09

Primeiro capítulo do romance Cobaia 09

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