Revista de Cultura

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Brecha no nada

Francesco Tammaro, "Pôr do sol em Paris" (série Belle Époque) (2023)
Coleção particular

Renan Fernandes

Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante.

Era difícil resistir à tentação de responder às perguntas dele. Sempre meio contidas, naturais, dotadas da curiosidade genuína e pouco julgadora dos olhos rápidos que ficavam pra lá e pra cá e pareciam não perder nada da paisagem de Paris e da geografia dos meus afetos confusos. Mas cada vez mais indiscretas, me faziam sentir visto, cuidado. Alguém prestava atenção, porque fazia as perguntas certas. Ele era ateu, e não me escapava a ironia de lembrar da Simone Weil toda vez que tínhamos aquelas conversas: a atenção é o estado de oração natural da alma. Não me admira que se sinta um Deus aquele a quem prestam atenção.

Foram tempos difíceis os primeiros meses em Paris. Entre a internação no hospital, ser expulso de onde morava e a temporada de verão no Brasil, que se encerrou com a volta a uma cidade coberta pela última neve que derretia, empoçando enlameada, embora o inverno ainda fosse demorar a acabar, dentro e fora, eu pensara várias vezes em encerrar o que parecia cada vez mais uma aventura inconsequente. Mas o que mais doía era a falta dela, com quem eu vira e mexe trombava no corredor da firma e precisava fingir não conhecer. Era com ela que o assunto nunca acabava. Era ela que, sempre de um jeito meio inusitado, me lembrava que nada lhe escapava, que a atenção que para mim era fruto de um esforço cerebral, para ela era natural como a brisa. Quase como se amar fosse fácil.

Naquela noite, antes de tudo acabar, quando as lágrimas já tinham transbordado a barragem do orgulho, rompi o véu da vaidade, o último que restava, porque sabia que ela, mais do que ninguém, entenderia: “Eu só queria alguém que se devotasse a mim como você é devotada a ele”. “Eu sei”, ela respondeu, e pela última vez em muito tempo eu veria ternura e compreensão em seus olhos. Não me admira que se sinta um Deus aquele a quem prestam atenção.

Quando resolvi contar a história pra ele, ainda estava em busca de consolo. Tem gente que se cura sozinho. Eu não. Eu preciso de uma tropa pra me carregar. Sozinho não levanto nem da cama. Revisitar incontáveis vezes a mesma história, em busca do momento exato onde tudo se perdeu, do momento exato em que tudo começou, dar cores cada vez mais saturadas às mesmas cenas, numa espiral insistente em exasperar cada sentimento, bom e ruim, em que o atrito da narração que esfrega os mesmos fatos de novo e de novo e de novo enfim bote fogo tudo, na esperança de que este incêndio frio deite a terra as ruínas de onde nascerá a próxima tragédia à espera de ser contada e recontada.

Narrei a história a ele e, depois de falar por horas, quando estávamos nos despedindo, ele me disse: “Eu tenho um milhão de perguntas para te fazer”. “Pois faça!”, me animei. Piano, amore, aos poucos. E então, a cada final de semana, repetíamos o ritual de perguntas e respostas, entremeadas pelas digressões, citações e piadas duvidosas de dois adultos oscilando entre a juventude e maturidade, numa espécie de jogo de rodadas infinitas em que marcava pontos quem empurrasse pra frente a fronteira do que é possível dizer. E de repente fui me sentindo vivo de novo, a tristeza empoçada evaporando com os primeiros raios da primavera, Paris parecendo viável outra vez, até o dia em que pela primeira vez em quase um ano ela me olhou nos olhos e eu não vi medo, nem raiva.

Com quase tudo dito, incontáveis vezes, ele e eu temos debandado cada vez mais para outros terrenos. Mas ontem, quando tomávamos nosso café rotineiro, dei um passo em falso em nosso jogo:

“Em todo esse tempo, você não me fez a pergunta mais importante”.

“E precisa?”

“Ah, então você acha que sabe a resposta?”

Silêncio.

“E por que então você acha que eu não te perguntei?”

“Talvez porque você ache que me constrangeria a mentir”.

“E você teria de mentir?”

“Por que você não pergunta para saber?”

Silêncio.

“Eu acho que você vai me perguntar quando nos virmos pela última vez antes de irmos embora de Paris”.

“Talvez…, mas, por outro lado, por que eu perguntaria algo que eu já sei a resposta?”

Silêncio. E eu ainda demoraria um dia inteiro para encontrar a resposta:

“E você resistiria a querer saber como eu responderia? Se eu seria imediatamente sincero? Se eu mentiria sem pestanejar? Ou que mil razões eu daria para explicar por que não é bem assim, que as coisas são bem mais complexas do que isso, ou que citações eu tiraria da cartola para negar o inegável? Acaso sua curiosidade demasiado humana resistiria a um Deus que responde a todas as suas perguntas?”

Nos despedimos, e eu fechei o computador.

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