Revista de Cultura

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Teu sangue vermelho na minha parede verde

Edward Hopper, "Domingo" (1926)
The Phillips Collection, Washington DC

Baga Defente

30.07.2021

toda vez que eu saio de casa o primeiro carro que eu vejo é um branco parecido com o seu. como não entendo nem gosto de carros, quase todo carro branco na rua me parece com o seu. da mesma forma, toda vez que eu saio de casa para fazer alguma coisa na rua eu tenho a sensação – sabidamente estúpida e sem sentido – de que eu vou cruzar com você.

vou ao mercado, aos correios, banco ou qualquer coisa do tipo e, durante todo o caminho, essa sensação me invade. penso que poderia cruzar com você passando de carro, talvez com sua mãe, e pode ser que vocês nem me vissem, mas, se me vissem, eu olharia e faria um aceno sem muito ânimo; ou, no caso das meninas estarem junto com você(s), eu esboçaria um sorriso. uma terceira opção seria você passar com outro cara, rindo, mas foda-se – o que é comum nesses três cenários é que imediatamente após esse rápido encontro eu começaria a chorar (de forma talvez controlada ou compulsiva, a depender do tipo de cenário e de quem estivesse na cena). então me lembro de uns dias atrás, quando pela primeira vez essa cena hipotética aconteceu, ao cruzar com você numa rua perto de casa, ou melhor, na rua de casa, porém depois da curva. nesse dia eu descobri o que era crise de ansiedade. agora, voltando pra casa, passo novamente por essa rua e não vejo seu carro, e isso é bom.

a semana trouxe temperaturas próximas a 0 ºC e também um sentimento de solidão que eu creio jamais ter sentido nesses 37 anos de vida. tenho consciência de que esse frio despropositado colabora com o sentimento, mas eu jamais me vi tão sozinho quanto agora.

por mais que eu tenha uns poucos amigos que eu poderia convidar para tomar alguma coisa e conversar, ou alguma amiga – inclusive uma ou duas “coloridas” – às quais eu poderia propor um encontro e ser possivelmente recebido de braços abertos, incluindo trocas de calor humano e fluidos nessas noites frias, optei por permanecer quieto com a minha solidão, pois sei que esses encontros, ainda que gostosos para ambos os envolvidos, seriam paliativos para amenizar o meu desconforto, e, ao acordar, sozinho ou acompanhado, ele ainda estaria aqui comigo, pois neste momento a única pessoa capaz de me ajudar a preencher esse vazio é você. e não adianta vir com um papo coach neoliberal de “autossuficiência”, “é preciso aprender a ser feliz sozinho” ou citar uma das mensagens de boas-vindas do finado Orkut – “a primeira e principal forma de amor é o amor-próprio”, pois, mesmo sabendo da veracidade dessas afirmações, hoje isso não colaria comigo, pois minha saudade não é algo abstrato ou impessoal: ela tem nome, sobrenome, CPF e endereço.

eu poderia aproveitar a flexibilização do isolamento por conta da vacina, vestir minhas mais elegantes roupas de frio e ir até uns bares nos quais eu sei que encontraria pessoas conhecidas, conversaria com desconhecidas e talvez até encontrasse um corpo diferente querendo se aquecer mutuamente; mas isso também não mudaria meu status sentimental – ainda que a gente nunca saiba o que pode acontecer e o rumo que as coisas podem tomar quando nos abrimos para o imprevisto, em especial nas noites frias.

mas, além do inverno cruel, ainda estamos no meio de uma pandemia, e eu, às vésperas de receber a segunda dose do imunizante, não me sinto muito confortável em frequentar locais fechados, principalmente aqueles que envolvem o consumo de álcool e o consequente relaxamento das tais “medidas de segurança” que isso acarreta. afinal, não dá para ficar de cerveja na mão e máscara na boca – até dá, mas sabemos que não é o caso; após chegar num local assim e tirar a máscara pela primeira vez, a chance de colocá-la apenas para ir ao banheiro, balcão, ou na hora de acertar a conta, é grande.

já zerei possíveis matches no Tinder e similares, parece que meu perfil não faz tanto sucesso hoje quanto fazia anos atrás, assim como as mulheres mais interessantes parecem sempre morar em outras cidades. gastei um tempo olhando redes sociais e interagi com algumas postagens para despertar a atenção: não deu em nada além de um pouco de conversa jogada dentro. assim, juntei o resto de ânimo que em mim habita para sair da letargia proporcionada pelo combo sofá mais smartphone e sentei para escrever um pouco, disposto a encarar a sensação de solidão triste agravada por frio glacial e baixa autoestima algorítmica, e ver o que se esconde por trás disso – até chegar do outro lado e encontrar o lado escuro do coração.

além dessa saudade que se apresenta infinita enquanto dura, me invade uma sensação de impotência diante de não poder fazer nada prático que altere isso, ao menos não no sentido de ter você novamente comigo. me resta aceitar e esperar o tempo fazer seu melhor trabalho. não é a primeira, nem será minha última relação que acaba, mas sem dúvida é a mais dolorida (como muitas vezes nos parecem as dores mais recentes), inversamente proporcional aos anos felizes que passamos juntos. ao contrário do esperado, as lágrimas me trazem calor, mas pode ser apenas consequência do conhaque, das duas calças e das seis camadas de roupa que uso na parte superior do corpo. a forma como nossa história começou reforça minha sensação, até certo ponto reconhecidamente limitada e estúpida, de achar que nunca conhecerei e amarei alguém como amei você, e isso só não me perturba mais do que pensar que você, mesmo nesse frio ridículo, não sente qualquer falta de mim – até porque você parece já ter alguém para aquecer não somente seu corpo, mas também seu coração.

este texto não tem a intenção de ser didático, mas, imerso nessa nostalgia derrotista, talvez valha registrar aqui, sempre sob a minha perspectiva autocentrada, como foi o início da nossa história:

a primeira vez que te vi foi numa tarde de verão (já começa com cara de história, né?). era sábado, domingo ou qualquer outro dia de janeiro similar a um feriado, na lagoa do bairro rural onde eu morava, um lugar ótimo para levar as crianças, se refrescar e encontrar pessoas – até isso é diferente hoje, visto que os “simpáticos” moradores do condomínio onde a lagoa fica decidiram proibir a entrada de visitantes, destruindo um dos principais e mais agradáveis espaços de convívio do bairro, algo bem sintomático no processo de destruição que aquele ambiente vem vivenciando já há algum tempo.

naquele dia eu estava sem filhos, fui apenas dar um mergulho rápido pra espantar o calor. de imediato, assim que cheguei, você chamou minha atenção, mas, como te vi com crianças pequenas e um cara, evitei tentar trocar maiores olhares e somente registrei uma bela mulher desconhecida ali naquele contexto tão familiar. semanas depois eu te vi novamente, dessa vez no aniversário de uma amiga em comum. nesse dia, antes de chegar na festa, choveu horrores. a chuva foi tão impactante, que, agora enquanto escrevo, me recordo de ter rascunhado umas palavras sobre aquele dia. procuro nos meus arquivos e encontro em Macintosh HDUsersLeonidasPALAVRAS2017WiP um documento intitulado poema2.doc […]

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