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A casa ao lado

Raeltom Santos Munizo

Ricardo, por costume matinal, olhou o canto do vazio pela boca da porta frontal da casa e respirou, respirou tão profundo que o suspiro se afogou. Depois, pisou os pés no frio chão de uma quina de escada, olhou o fim dela e percebeu, mais uma vez, o quão sua vida é equilibrada e sustentável a tal ponto que nem parece ter câimbras. Olhou o céu branco e, no mesmo instante, sentiu um ar gelado penetrar seus micros e límpidos poros com tamanha monotonia que o fez sentir que o tempo levado pelo vento tinha pena de agredi-lo. Ele se mirou no corpo constantemente e notou que não havia cicatrizes de felicidade infantil; continuou a mapeá-lo e, sem encontrar alguma célula disforme, chorou sem cessar aquelas lágrimas de chumbo que ferozmente fugiam de seus olhos e se recolhiam no seu ombro caído e trêmulo. Chorar, tráfego de seiva bruta!

O lar de Ricardo era artificialmente alinhado e suntuoso tal qual a superfície d’uma rosa em êxtase, mas essa rosa não tinha cheiro, não tinha camadas de amor ou sinais pusilânimes. Enfim, era sua; mas não tinha nada que representasse seu gosto e sim seu grito, ou pior, o desconhecido grito alheio.

Ao lado de sua casa vivia uma pequena, frágil e tímida garota em suspiros constantes, que não alinhava ou aprumava seus olhos à ótica de Ricardo no momento em que eles se deparavam durante os encontros acidentais do cotidiano. Seu nome era somente Diana, o resto não é do conhecimento de ninguém pois era uma mulher sem muita identidade no desastre social dali. Uma senhora sem digitais… O seu ânimo era acordar bem cedo, movida pela obsessão da mansidão da madrugada fria, para se mirar num caco de espelho que achara, num outro dia distante, no quente chão da rua sem faixa. A sua atividade matinal era essa. Além disso, Diana trabalhava limpando o porão de um departamento público da cidade… Era a terceira tarefa que ela mais gostava de cumprir com primor, competência e elegância; talvez seja essa a razão de ser a única funcionária do departamento que exercia tal cargo.

Ricardo nunca disse um “oi” à sua vizinha; decerto, ela não saberia o que significa tal palavra no bocejo superficial. Ademais, ele não se sentia muito bem ao vomitar essas letras. Mas apenas o fato de ele lhe dirigir a tom austero de sua voz já a possibilitaria inclinar ainda mais a sua fronte em direção de seus pés franzidos e desconexos.

O dia chegou! Ambos se depararam na rua atrás de suas casas e Ricardo, esbanjando um leve sintoma de felicidade remediada, falou “olá” a Diana. Ela parou, olhou pra baixo, sentiu os olhos arderem levemente, apertou forte os dedos na esperança do sentimento esvair por entre as disformes veias de suas cândidas mãos, enquanto o rapaz passava reto ao seu lado, ao seu lado.

Algumas horas caladas depois, Ricardo se deparou com um policial saindo da casa de sua vizinha. Ele veio na direção do mancebo, que logo lhe perguntou o que estava acontecendo com a vizinha. O policial respondeu sossegadamente:

“Nada mais! Encontrei o corpo dela ocupando um espaço pequeno na suja rua vizinha!”

O moço não deu a atenção comum à resposta do policial, mas sentiu um leve pesar pelo falecimento daquela mulher, pois, afinal, era um ser humano que, como todos, merece os devidos compadecimentos pelo óbito. Não quis perguntar ao policial o motivo de tal ocorrido… Então, três dias passaram friamente pela vida de Ricardo. Em um deles, ao passar pela frente da casa de Diana, percebeu que a porta estava entreaberta. A curiosidade não é algo que o compõe, porém decidiu mudar um pouco o seu trajeto e, então, entrou vagarosamente na velha casa. Gritou para saber se havia alguém naquele lugar, mas não obteve retorno. Quando ia sair de lá, encontrou uma rosa murcha mas com bafo de um perfume serrano que o fez fechar a porta e se inclinar para cheirá-la.

Essa rosa cheia de camadas se parecia com aquelas do seu jardim, às quais ele nunca deu a mínima atenção mas que reconhecia de algum modo. Definitivamente eram do seu jardim. Então, Ricardo viu que havia mais delas espalhadas uniformemente pela pouca mobília da pequena casa sem morador. Elas formavam um caminho: as murchas e secas pareciam ser aquelas da sala, já as outras que estavam mais próximas do único quarto eram um pouco mais viçosas na feição e tinham um leve perfume que ainda repousava no corpo das pétalas. Ele seguiu essa trilha somente para reter mais um pouco desse cheiro e sentir a adrenalina de estar percorrendo mais espaço pelo mundo. Nesse percurso, notou que a decoração ao seu entorno era degradante e sem nexo…

As rosas foram postas de lado por alguns instantes. O jovem direcionou sua curiosidade avulsa à miúda sala, acho que de visitas; demoliu-se a expectativa tópica! O nexo inexiste ali, ou existe? Seu primeiro notar foi um álbum de fotografia composto pela capa do Fausto, cujo nome da obra foi, em parte, encoberto pela didascália Retratos da Excelentíssima Dona Diana de… Enfim, demorou um instante para ele invadir a privacidade póstuma mas o fez sem muito remorso; as imagens eram… recortes de jornais? Sim! Recortes de jornais com figuras, ao que parece de mulheres portadoras de algum tipo de doença.

Na primeira página havia uma moça que sofrera de câncer de mama e no rodapé estava uma nota escrita pela filha da tal enferma, cujo nome não me convém relatar, que dizia o seguinte: “foram dias difíceis! Meus olhos estavam tão calejados que seu ritmo era tão agressivo quanto o de meu pequenino coração; tudo em torno de minha mãe a violentava, inclusive o simples fato dela saber que suas veias estavam secando assim como seu ar evadindo. Decerto, os ‘moços’ sabiam que aquele corpo estava cedendo. Essa angústia compartilhada pendurou até quando o tempo que se alimentava de sua escassa carne não a envolveu mais em seus membros. Seu seio foi tragado antes de sua vida, sua força tornou-se memória de exemplo, o tempo a lançou pra fora… Mas, sua latente imagem respira e invade a nossa matéria cotidiana!”

Ainda percorrendo aquelas folhas, viu logo à frente uma imagem d’uma máquina medieval sustentando nos recantos alguns objetos de ourivesaria, cuja superfície parecia ser tão lisa quanto mármore umedecido; por isso, a sensação imediata que tal figura despertou no moço foi a vontade de escorrer vagarosamente o rosto sobre seu plano. É essa a sensação que o tempo experimenta…

Ricardo não aguentou isso, inclusive seria perigoso chegar no “aquilo” que surgiria acaso a ação de folhear insistisse; aí ele parou e lançou o álbum contra uma parede repleta de pregos enferrujados que fincavam pétalas e folhas velhas naquele espaço; era impressionante o fato de aquelas partes murchas e mortas de plantas formarem uma imagem capaz de chegar a ponto de seu estômago não suportar a visão. Ricardo queria sair daquela casa, que o perturbava como um espelho desfocado!

Não saiu! Ele correu para um cômodo. Incomodado.  Entrou e logo se sentou na beirada de uma cama com lençóis ao relento e com dois travesseiros, cujo bordado, decerto, fora uma obra fracassada. Ao lado da cama havia uma cômoda grande com apenas uma gaveta e um vácuo compondo o espaço das demais partes do móvel. O rapaz tinha a visão mais hábil e atenta do que a minha, por isso ele via aquilo que não é para ser visto e sentia o que os sentidos não alcançam… Aquele lugar, para Ricardo, é a vitrine de uma tópica incomum e um local onde não se aplicam sinônimos.

Ficou olhando para um pedacinho de espelho que estava entre dois preguinhos luzentes na parede. Parecia até que ele me via com medo atrás de suas costas! Algum tempo depois, recolheu a amarga ótica e a agrediu numa velha estante de bonecas onde havia mais flores do seu quintal; ali ficou por uns dezessete minutos, respirando em desalinho, engolindo cuspe constantemente, vendo coisas que no mundo lá fora ainda não chegou a tal esmero de loucura. O tempo e o medo conduziram-no a um pequeno caderno posto num altar rodeado de velas já bastante deformadas e com aquelas flores ardentes de sua casa. Retirou o caderno do centro dessa ornamentação sem nenhum receio. Pelas palavras iniciais, nota-se que é uma espécie de diário abandonado em náufrago, e era mesmo o diário de Diana. Ricardo abriu a porta daquela coisa, viu a primeira página, que deixou para trás com alguns resquícios de suor frio; mas percorreu ferindo ainda mais o íntimo alheio. O diário era um espelho apenas com o reflexo e sem o fundo! Sua ousadia permaneceu até seu peito se preencher de dor e seus olhos se verem naquilo tudo. Fechou a porta do quarto, depois saiu correndo da casa ou de si.

Ao sair pela porta da frente, já estava repentinamente calmo. Refez a discrição e nem olhou para trás. Apenas pegou no seu jardim flores iguais àquelas da casa da moça e saiu por aí procurando onde Diana fora sepultada. Ricardo decidiu nunca mais voltar naquela casa, pois não gosta de espelhos. Enfim, prosseguiu caminhando pelo horizonte com frieza e com apenas um rumo decididamente definido na sua vida aguada.

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