Silva Alvarenga
Texto introdutório de Fernando Morato
Em 1758 o poeta francês Charles-Pierre Colardeau (1732-1776) imprimiu uma tradução da heroide original de Alexander Pope (1688-1744), “Eloisa to Abeilard” (1717). Tratava-se de um gênero já conhecido, inventado por Ovídio (43 AEC – 17 EC), que simula a voz de uma personagem mitológica em uma carta para um amado/amada. A publicação foi um sucesso, que gerou não só uma reimpressão mas uma moda que resultou na publicação de mais de vinte heroides originais até o final do século XVIII.
Foi em 1774 que o texto abaixo veio à luz, em uma publicação anônima pela Régia Oficina Tipográfica. Trata-se da única heroide original escrita em português em meio aos vários exemplares franceses e ingleses. Ainda anônimo, o poema apareceu outra vez, em 1793, no Almanak das Musas, organizado pelo poeta brasileiro Domingos Caldas Barbosa (1739-1800), que vivia em Portugal e liderava a Nova Arcádia. Tratar-se-ia de um pequeno mistério bibliográfico não fosse o fato de em 1830 o cônego Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), sobrinho do poeta Caldas, tê-lo publicado mais uma vez no Parnaso Brasileiro, mas dessa vez atribuindo a autoria a Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). Como o cônego era amigo pessoal de Silva Alvarenga e nitidamente utiliza em seu Parnaso o texto de 1774, não há por que duvidar da atribuição.
Como dito acima, a heroide é um gênero inventado por Ovídio e teve muito boa aceitação durante todo o período em que a literatura clássica vigorou como modelo. Por simular a voz de uma personagem conhecida, apresenta uma série de desafios tanto de verossimilhança quanto de erudição e, por ser uma carta, permite jogos de argumentação (racional ou sentimental) que inclusive fizeram com que elas fossem muito utilizadas em aulas de retórica.
Esta pequena pérola escrita por Silva Alvarenga apresenta várias camadas de interesse, desde a maestria no uso das formas poéticas até o tour de force argumentativo que consiste em fazer de Teseu, personagem tradicionalmente identificado como volúvel e não confiável, a vítima da “inconstante Ariadna ambiciosa”, que é a figura mais bem acabada da mulher traída e abandonada. É do tratamento lúdico das referências implícitas que um leitor culto deveria manejar que o poeta tira a força maior de seu texto.
Inconstante Ariadne ambiciosa, que por cobrir a feia aleivosia depois de ser perjura és a queixosa; Essas ásperas queixas, que me envia teu falto coração, formosa ingrata, já não são, como as queixas d'algum dia, Tudo a fiel memória me retrata, fui a tua esperança, o teu conforto, agora sou o roubador Pirata. Quisera o céu, que me chorassem morto, por não sentir as penas, que hoje sinto, antes de ver da infausta Creta o porto. Achei de sangue humano farto, e tinto, homem, e Touro, o Monstro, que espalhava morte e terror no cego Labirinto. Vi lançar-se da torre, que habitava o Artífice engenhoso; e como aos ares sobre as asas de cera se entregava. Filho infeliz, que deste o nome aos mares, quanto inveja Teseu a tua sorte depois de ter chegado aos pátrios lares? Temeste, eu não o nego, a minha morte, mudável Ariadne! o laço estreito d'um novo e puro amor julguei mais forte. Da tua bela mão o fio aceito, que me serve de guia: encontro, e luto c'o formidável monstro peito a peito. Livrei a Pátria do fatal tributo; mas o prêmio maior desta vitória era gozar do nosso amor o fruto. Que breve, ó Deuses, foi a minha glória! Já sobre a nau Cecrópida nos vemos, e eu me julgo feliz; doce memória! Reina a calma no mar, e nós perdemos de vista a Creta; geme felizmente, e escuma o sal batido de cem remos. Quatro vezes da noite descontente rasgou a branca Aurora o véu sombrio, abrindo as áureas portas do Oriente. Quando vimos o bosque, e a foz do rio alegre, e sossegado, os marinheiros conhecerão de longe a verde Quio. Pisamos logo os montes, e os outeiros oferecendo aos Deuses tutelares uma branca novilha, e dois cordeiros. No bosque inda fumavam os altares, tu dormias, as nuvens se amontoam, e principiam a engrossar-se os mares. Corro a firmar as âncoras: já soam das ondas os rochedos açoitados, e os ventos, e os trovões o mundo atroam. Faltou a amarra: a meu pesar os fados, que tristíssimos Fados! me levaram, c'o as negras tempestades conjurados. Sabe o Céu, que fadigas me custaram então as tuas lágrimas, e penas, que as minhas cá de longe acompanharam. Sem leme já, sem mastro, e sem antenas, (vão ludíbrio dos mares, e dos ventos), as tristes praias avistei de Atenas. Ariadne ocupou meus pensamentos, meu coração a teve sempre à vista para mais avivar os meus tormentos. Que fruto logras de uma tal conquista, Teseu amante, filho sem ventura? Quem haverá que a tanta dor resista! O velho Egeu, que os Imortais conjura, por ver alegre o fim dos meus perigos, teve no mar funesta sepultura. Entre aplausos da Pátria, e dos Amigos o triste coração suspira, e sente o puro amor e seus farpões antigos. Por dar-te um novo Reino impaciente, espero que depondo furor tanto Netuno aplane as águas c'o Tridente. Duas Naus tenho prontas; mas em tanto, espalha a Fama por diversas partes que o moço Baco te enxugara o pranto. Que ambiciosa ao ver os estandartes do alegre Indiano, e seus cabelos loiros fácil com ele o meu amor repartes. Se Reino, ou Fama, ou Glória entre os vindouros busca a tua ambição n'um ser divino, eu sou Teseu; Atenas tem tesouros. Egeu saiu do Reino Netunino, na fatídica Nau aventureiro, eu vi o rosto irado ao Ponto Euxino. Não foi Jasão, nem Hércules primeiro combater c'os Dragões... tu suspiraste vendo encher o meu nome o mundo inteiro. Inda me lembra o dia que apertaste co'a minha a tua mão: dos nossos laços por testemunha o mesmo Céu chamaste. Tu não viste correr longos espaços, que desculpam o frio esquecimento; e chego a ver-te alheia n'outros braços? É esta a fé devida ao juramento? Responde ingrata, desleal, mais dura do que a rocha, e mais vária do que o vento. Saiam do seio da lagoa escura, que o mesmo Jove de ofender receia, negras fúrias, que o meu temor conjura. Empunhe a ingrata o tirso, e sobre a areia d'uma deserta praia os Tigres dome, com que o seu novo amante se recreia. Contanto, que o amor que me consome em ódio se converta... ah! que eu deliro e não posso esquecer-me do seu nome! Ventos, que me obrigastes ao retiro, levai minha terníssima saudade, conheça embora a ingrata, que eu suspiro. Possam servir de exemplo em toda a idade os nossos nomes, despertando a história do meu amor, da sua variedade Sirva este meu tormento à sua glória, pague eu embora a culpa do meu fado, e roube-me das mãos outro a vitória. Porque não fui do monstro devorado! A minha desventura me guardava, porque fosse depois mais desgraçado. Frondosos arvoredos onde estava Ariadne cruel, quando dormia, Ariadne, justos Céus, qu'eu tanto amava. Vós amarelas flores, tu sombria musgosa gruta, onde a infiel descansa, mostrai-lhe a minha imagem noite, e dia. Eu era o seu amor, sua esperança, o último... o primeiro... oh, Céus! Perjura, quanto me custa esta cruel lembrança; Não há mais que esperar da sorte dura! Voai Remorsos a vingar-me: ao menos rodeai-a no seio da ventura, e turbai os seus dias mais serenos.
Fonte: Almanak das Musas no ano de 1793, impresso em Lisboa (pp. 101-105), com alterações de Fernando Morato.