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Deus não dirige o destino dos povos, de Marcelo Labes

Igreja, Estado e Militares

Marcelo Labes

Chico Ferreira toma café numa das lanchonetes dos arredores do edifício Catarinense quando vê à porta do estabelecimento a figura espantada de Bernardo Storch, seu sócio em negócios que vão muito além da advocacia trabalhista. Storch está pálido e suado sob o paletó, e faz com a mão para que Chico se apresse. Um homem desse tamanho, quando pede alguma coisa a gente faz, pensa Chico, porque além de advogado é dado ao bom humor, e é por isso que faz uma meia-volta com o queixo, apontando para a cadeira ao seu lado, indicando que o amigo se sente, mas Storch se irrita com o pedido e grita, de longe, Agora!

Storch tem informações de que os militares vão dar o golpe. Chico sabe que uma hora aconteceria, mas não pensava nisso naquele momento do café. Caminhando lado a lado pela rua 15, não trocam palavra. Chico precisa dar dois passos para cada passada de Storch, e se concentra nisso. Quando encontram o Fusca estacionado na frente do Banco do Brasil, Storch apenas diz Entra!, e não há hesitação nessa ordem.

Rodam a esmo enquanto Storch explica a Chico o que precisam fazer antes de deixar a cidade, desde destruir correspondências até avisar a cada um dos outros cinco (os sete que nunca chegaram a ser onze) sobre como se desfazerem de jornais, carteirinhas de filiação partidária e tudo que os vincule aos partidos a que pertencem.

Enquanto rodavam pela rua São Paulo, um estouro.

— Que diabo foi isso, Storch? É pneu?

— Não é pneu. Te abaixa! — E enquanto acelera o veículo sobre o calçamento da estrada, diz: — Esses desgraçados não precisam de golpe pra virem atrás de nós.

Storch, um alemão de dois metros de altura, é advogado trabalhista. Filho de uma família de comerciantes de Blumenau, pôde estudar no Rio de Janeiro e voltar para a cidade com alguma autoridade, além de dezenas de livros adquiridos nos comitês estudantis secretos, pois proibidos por Vargas, em que se lia — para resumir — que a humanidade somente teria paz quando todos os homens fossem iguais. Eram autores europeus e latino-americanos do que se chamava esquerda comunista, embora o próprio Storch não fosse filiado ao Partidão, mas ao PTB, o partido criado pelo mesmo Vargas para contemplar os pobres (havia outro, o PSD, para contemplar os proprietários de terra), embora também de Leonel Brizola, de onde veio a ideia dos Grupos de Onze — fórmula do político gaúcho para formar grupamentos táticos à maneira de times de futebol. Não funcionou, não aqui, mas os sete funcionam juntos e também sozinhos, cada um à sua maneira: o Fritz da relojoaria, o Kurt da cooperativa, o Ingo da metalúrgica, o Daniel dos laticínios, o Agobar da Celesc, e Chico e Storch, do Direito.

Os dois advogados chamaram muita atenção nos últimos dois anos, desde que se encontraram, em 1962. Chico veio a Blumenau procurando emprego, com o endereço de Bernardo Storch, advogado trabalhista que atuava contra as indústrias da cidade, sobretudo as têxteis, no bolso do paletó. Chico apareceu franzino, os sapatos empoeirados, reclamando do calor que fazia na cidade, Aqui não venta? Entregou ao advogado seu diploma e perguntou quando podia começar. Não que fosse algo muito bem-arranjado de antemão, mas o Partido reclamava presença nas indústrias do Vale do Itajaí ao mesmo tempo que sondava o trabalho de Storch, que aparecia nos jornais que ainda não haviam sido comprados pelo empresariado têxtil — aos industriais incomodava muito que fossem noticiadas as filas de operários que se formavam em volta do prediozinho comercial da Ângelo Dias para terem atendimento com o doutor Storch, o homem que, se dizia, fazia justiça a um operariado mal pago e historicamente abandonado no colo de um patronato paternalista e nada ingênuo. Sondaram Storch e lhe indicaram um advogado assistente, comunista sim, mas muito sério, muito profissional, porque sabiam que Storch, cristão protestante, tinha lá seus poréns com o ateísmo de Moscou. Desde então, começaram a trabalhar juntos em prol do operariado, maioria dos trabalhadores da cidade, revendo pagamentos, rescisões e exigindo junto às empresas que pagassem inteiro o salário dos menores de idade. Isso os tornou proporcionalmente conhecidos entre os trabalhadores e mal vistos pelos donos das indústrias. Não raro, o telefone do escritório tocava para nada sair dele, enquanto Chico, mais acalorado que Storch, dizia nomes de baixo calão à mudez que o aparelho telefônico lhe dirigia. Sabiam que estavam incomodando o status quo, e se causavam esse incômodo é porque iam no caminho certo.

Estacionaram o fusca na garagem de Storch, e foi aí que viram o rombo: uma pedra, decerto, foi arremessada com força na lataria do lado direito do Fusca.

— Se essa merda me acerta — diz Chico —, eu tava é morto.

— Mas está vivo, e temos trabalho a fazer.

Antes de tudo, precisavam verificar os passaportes. Chico trazia todos os documentos vitais dentro da maleta que levava consigo a todo lado. Storch os mantinha em casa, por casa ter, e por não viver, como o amigo, em um quarto vagabundo de hotel. Que já arrombaram umas dez vezes, dizia Chico. Storch sabia que sim.

— Tem data pra acontecer? — indaga Chico.

— Já está acontecendo, mas por debaixo dos panos. Vão deflagar em breve.

— E quanto tempo ainda nos resta?

— Pouco, Chico. Muito pouco.

Ambos tinham ouvido pelo rádio o discurso de João Goulart na Central do Brasil, sua cartada final diante da iminência do golpe — ou talvez a faísca que faltava no mar de gasolina em que o país havia se transformado. Desde então, havia somente duas saídas: o levante popular ou o golpe. Como o povo não se levantasse, para a frustração de Chico e todos seus camaradas do PCB, restava o golpe e o que viesse com ele, coisa que Storch, com seu pensamento cartesiano, imaginava de que maneira poderia enfrentar. E estavam no sul, no Vale, um lugar onde os fatos não decorrem como em outras partes do país. Chico ainda não sabia ler essas entrelinhas. Ele vinha da capital do estado, onde tudo era mais claro, mais dito, mais ouvido, mais cheio de significado. Ali, não. No Vale, as palavras são ditas entredentes e decodificadas por ouvidos afinados. Storch, de origem alemã (alemão tcheco, para adiantar a pesquisa que se possa vir a fazer), sabia muito bem se expressar nessa estranha linguagem cifrada, embora preferisse a língua clara do povo, a língua verdadeira do povo, que se falava no chão das fábricas, nos cafés da rua 15, nas pequenas propriedades rurais, já tão escassas, dos arredores da cidade. E foi por saber ouvir o que se dizia sem querer que fosse ouvido, que Storch soube que os milicos do 23º RI estavam se preparando para deixar a cidade. O destino ainda era incerto, mas ele imaginava que Criciúma e Itajaí fossem os destinos. Vão descer o cacete nos carvoeiros e nos estivadores, é isso?, perguntava Chico, e Storch dizia É isso, é isso, como quem pensa numa estratégia para evitar o que é, afinal, inevitável.

— Vou te deixar de volta no centro — diz Storch a Chico — e vou atrás dos outros para alertá-los e para ajudar no que for preciso.

— E eu faço o quê? Fico olhando o trem passar sobre as nossas cabeças?

— Tu vais trabalhar, porque tem trabalho, e atender o telefone e responder com impropérios se não falarem nada do outro lado.

Nada convencido, Chico acata a ordem e entra no carro. Enquanto descem o morro do Boa Vista em direção ao centro, Storch lhe mostra um jornal e pede ao amigo que o leia.

— Eles já sabem. Nós é que demos uma de avestruz.

— Eles sabem porque o golpe vem deles, também.

Antes mesmo de a imprensa oficial começar a perseguir os advogados, já o jornaleco católico vinha fazendo sua parte, semana após semana. O Luzeiro Mariano reunia o que de pior poderia haver entre os conservadores católicos — porque havia os demais conservadores, os luteranos, mas esses não se expunham, agiam por baixo dos panos e do alto das diretorias das fábricas — e largava ameaças e teorias da conspiração aos quatro ventos, uma vez por semana. Sua origem estava nesses “homens de Maria”, uma seita conservadora dentro de uma igreja conservadora, liderados por frei Eufrásio, um conservador maior, perverso, que não ouvia as palavras que ele mesmo repetia sobre a bondade de Cristo, mas estava mais preocupado do que o papa Paulo VI em manter distante qualquer pensamento que soasse à esquerda. Com teses anticomunistas e cristãs — uma das tantas faces que o cristianismo tem —, buscavam um inimigo invisível: Stálin, Tito, Marx, o Exército Vermelho, Brizola, Jango, e quando finalmente puderam trazer esse inimigo para perto nas figuras de Chico e Storch, então nada poderia ter saído melhor. Estavam ali dois advogados trabalhistas; melhor: dois homens de carne e osso, lutando contra A FÁBRICA, em sentido amplo — e em amplo sentido também um território mais sagrado do que a igreja —, e que por isso mesmo deveriam ser combatidos. Semana após semana, saía um artigo escrito por Frei Eufrásio, o editor do jornal, apontando como comunistas entre nós farão o possível pra desestabilizar a vida ordeira que construímos até aqui, ou como certos advogados, filhos da terra e vindos de fora, estavam plantando a discórdia entre patrões e empregados, desestabilizando uma relação que sempre fora frutífera e balanceada (familiar, portanto), vindo a tornar esta cidade um porto de paz e de produção de qualidade, coisa que todos sentíamos e de que deveríamos nos orgulhar, em um lugar mais brasileiro do que alemão. Grande problema, pois o Brasil todos sabemos como vai.

Meses antes, Chico já havia delatado os marianos: são os integralistas que Vargas não deu jeito de extinguir. Essa conversa de pátria, de Deus, de família, essa perseguição aos comunistas. A gente luta por quem, pombas? De fato, não apareciam no jornal os carteiros, os ferroviários, os comerciários, os operários. Quem escrevia aquele tanto de lixo era gente estudada, que sabia como convencer o povo, botar medo no povo. Os trabalhadores apenas consumiam o jornal e, obviamente, temiam as botas vermelhas de Moscou — palavras dos filhos de Maria — que esmagariam as cabeças dos trabalhadores e de suas proles. Storch sempre se divertia quando a discussão chegava a esse ponto: Tu estás falando bem de Vargas, é isso?, ao que o outro respondia quase que automaticamente com um Vá pro diabo que te carregue, Storch, que tu sabes o quanto nos custou a perseguição tola daquele filho da puta.

Storch passa na rodoviária a fim de obter alguma novidade. No restaurante do Klüger sempre parava alguém vindo da capital. A pressa em avisar os demais companheiros é confrontada com a necessidade de ter o que dizer a eles. Quando para o ônibus vindo de Florianópolis, o bar do restaurante ganha mais dois ou três clientes. Storch, no canto do balcão, beberica do seu bitter enquanto escuta as conversas.

— Pois aconteceu — diz um, o de jornal na mão.

— Já não era sem tempo — responde o velho Klüger.

— E já começou a limpa: queimaram uma livraria de comunistas que funcionava pertinho da catedral. Não é uma falta de vergonha desses ateus, pregar o comunismo debaixo do nariz do bispo?

Storch, que ouve a conversa alheia, perde a linha de pensamento com a menina loira que adentra o restaurante, filha do Klüger, que não sabe nem teme o que está acontecendo. Porque não está acontecendo nada diante de seus olhos azuis. Porque acabou de voltar da escolinha e tem dever de casa para fazer. Porque é ainda uma criança, e às crianças não cabe — ou não deveria caber — a responsabilidade de saber o que acontece no mundo à sua volta. Mas a aparição da filha do Klüger traz outra angústia às muitas que Storch já carrega no peito: a vida de seus próprios filhos. Que fariam com seus pequenos, caso fosse pego? E o que seria dos pequenos sem a presença do pai? Ele, um pai presente, tão diferente do velho Storch, a quem Bernardo temia mais do que respeitava, que respeitava porque nunca amou. Precisava pensar nisso, mas antes precisava comunicar os encaminhamentos aos camaradas, e assim o faz.

A primeira visita é na relojoaria do Fritz, final da rua 15, próximo da estação ferroviária. Entra e faz com a mão que o amigo se mantenha sério, que têm muito a conversar. Vão direto para o escritório, nos fundos.

— Já estou sabendo, Storch. Eles vêm com tudo.

— Mas estamos sem milicos aqui. Os caminhões saíram cheios deles, faz dois dias, em direção a Itajaí e Criciúma.

— E a polícia?

— A polícia continua quieta. Na verdade, tenho mais medo é dos civis. Acho mesmo que a polícia é que tem o poder de segurar o ímpeto dessa gente. Esteja atento, Fritz. Olho aberto em quem entra aqui, porque nunca se sabe.

— E tu, que vais fazer?

— Primeiro, vou tratar de avisar todo mundo. Mais uma coisa: nada de telefone. Se precisar falar comigo, vai até a minha casa. Se eu não estiver, pode deixar recado com a Ingrid.

— Devíamos ter evitado espiões também — ironiza Fritz, que nunca foi com a cara do tal Horst, aquele alemão gaúcho que apareceu todo prestativo e interessado.

— O que passou, passou, Fritz. Nosso problema agora é outro. Eles virão pra cima.

Bernardo Storch assumia a responsabilidade pelo espião, embora não gostasse de voltar ao assunto. Para ele, quem se interessasse pela causa deveria ser bem-vindo. O que incomodava Fritz não eram as anotações que o oitavo jogador fazia freneticamente numa caderneta — um espião não faria isso na frente de suas vítimas —, mas a maneira arrogante como ele os olhava, volta e meia, como se deixasse escapar o ar superior de quem sabe um segredo e tem a certeza de que ninguém mais o compartilha. Foi essa a explicação que Fritz tentou dar a Storch, mas o advogado era das coisas práticas e pouco se comoveu com a hipótese que o camarada volta e meia levantava, e de maneira confusa. Temos de deixar vir o povo, Fritz, dizia Storch, e depois aquela punhalada bem assentada nas costas quando, depois do desaparecimento de Horst, recebeu por telegrama a notícia de que haviam sido traídos e que tomassem cuidado, vindo sabe-se lá de onde.

Storch visitou os demais camaradas durante a tarde, passou em casa para avisar a esposa, e no início da noite já está de volta ao escritório, onde encontra Chico através da espessa nuvem de fumaça de cigarros que vinham sendo acesos um no outro.

— Ouvi no rádio que Jango capitulou — diz Chico.

— Esse cagão. Era claro que não seguraria o rojão, disso todos sabíamos. Em Florianópolis, já começaram a perseguir os nossos. Logo virão atrás de nós.

— Sem os milicos? Acho muito difícil.

Mal acabara o raciocínio, ouviram o vozerio de homens que, avistados da janela do escritório, assustavam pelo visual macabro que ostentavam. Empunhando tochas, tinham à frente frei Eufrásio com a batina roxa e tendo levantado diante de si o estandarte com uma imagem da Virgem Maria. Pararam no rés do chão, em frente ao edifício, e começaram a gritar Desçam, comunistas! Desçam, antes que a gente suba! Desçam, ou queimaremos vocês aí mesmo!, e gesticulavam com as tochas acesas em direção ao prédio.

Chico fez menção de pegar o .38 da gaveta (desde que começaram as ameaças, deixava o revólver no escritório para se fosse o caso de vir a utilizá-lo), mas Storch o dissuadiu alegando que não passavam de fanáticos conservadores da igreja, e que fossem enfrentá-los com argumentos. Chico perguntou se poderia levar a arma para se sentir seguro, mas Storch lhe disse que não há segurança maior do que aquela garantida pela firmeza das ideias.

Quando chegam ao térreo, veem os homens do lado de fora, eretos, iluminados pelas tochas, tendo à frente o frei Eufrásio com uma expressão dura na face. Patéticos, murmura Storch, e foi colocarem pés na calçada que se viram cercados pelos homens-tocha — todos conhecidos, gente que tomava café nos mesmos botecos do centro, gente com quem cruzavam em restaurantes, gente com quem sabiam divergir em ideias, inclusive um e outro trabalhador que haviam defendido na justiça trabalhista, mas que não imaginavam que pudessem assumir papel de destaque naquela inquisição encenada.

O primeiro a ser acertado é Storch. Na cabeça. Com um pedaço de pau. Chico vê o colega cair e não tem tempo de dizer palavra, pois alguém que se colocara à sua retaguarda vem a toda com os pés contra suas costas fazendo-o cair com violência para a frente. Os advogados desfalecidos são postos na caçamba de uma Ford Rural azul, com logomarcas nas portas, mas as tochas não iluminam o suficiente para que vejamos a que empresa pertence o veículo.

— Para onde, frei? — pergunta um dos homens.

— Toca para o batalhão! — responde o clérigo, que, após ver a camionete partir, se encaminha a pé de volta ao seu reduto, na sacristia da igreja matriz.

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