Miguel Forlin
A dialética da obsolescência:
um ensaio sobre a história e o desastre dos streamings de filmes (parte 1 de 3)
Poucas revoluções tecnológicas na história da cultura audiovisual produziram um impacto tão profundo — e tão ambíguo — quanto o advento dos serviços de streaming. A narrativa dominante, repetida com disciplina quase higiênica em artigos, conferências corporativas e campanhas publicitárias, tenta vender a ideia de que o streaming é a culminação natural de um processo evolutivo que começou com o cinematógrafo dos Lumière, passou pelos palácios de exibição do início do século XX, pelos estúdios clássicos de Hollywood, pela televisão doméstica, pelo VHS, pelo DVD e pela internet banda larga, e que agora encontra seu ápice no ato de assistir a qualquer filme, em qualquer lugar, a qualquer hora, na superfície brilhante de um dispositivo portátil. Essa história — polida, linear e otimista — não apenas é falsa, como serve para ocultar aquilo que é talvez a maior reconfiguração predatória da economia do cinema desde os anos do declínio do Código Hays.
Dito com clareza: a ascensão dos streamings não representa a evolução do cinema; representa a sua domesticação comercial, sua neutralização política, sua comoditização total. Trata-se da captura, por conglomerados gigantescos e indiferentes à arte, de um meio que nasceu como experiência coletiva, urbana, ritualística e pública, e que agora é remodelado para caber dentro de algoritmos destinados a maximizar assinaturas, aumentar o tempo de tela e extrair dados de comportamento.
Este ensaio, ao contrário de tantos textos conciliadores e mornos que circulam por aí, não pretende encontrar equilíbrio, nuance ou conciliação. Não é um texto para “entender os dois lados”. É um libelo, um ataque direto, uma constatação daquilo que vem ocorrendo debaixo de slogans amigáveis e telas de abertura coloridas. Não sobrará pedra sobre pedra — e ainda assim, paradoxalmente, não tratarei aqui do impacto criativo e artístico dos streamings, pois esse será o tema do próximo ensaio. Aqui, limito-me à história e às consequências estruturais, econômicas e sociais dessa nova ordem audiovisual.
É verdade que a cultura audiovisual já vinha se afastando das salas de cinema antes de o streaming assumir o trono. A televisão, desde meados do século XX, havia plantado a semente da desagregação da experiência coletiva. O VHS, por sua vez, inaugurou a prática da posse doméstica de filmes. O DVD aperfeiçoou o ideal de arquivo pessoal. O Blu-Ray apontou para a alta definição privada.
Mas nenhum desses formatos ameaçou aniquilar a experiência cinematográfica pública. Todos eles coexistiam com o cinema; nenhum pretendia substituí-lo. A televisão era um meio distinto, com outros ritmos. O VHS e o DVD fortaleciam a cinefilia ao permitir revisões, coleções, comentários, extras, análises. O Blu-Ray era o paraíso dos obsessivos pela qualidade técnica. Nada disso ameaçava, de modo sistêmico, a existência da sala escura.
A internet, entretanto, alterou o jogo. Primeiro, com a pirataria: o Napster, o Kazaa, o eDonkey, o Torrent, os sites de streaming ilegal. Depois, com o surgimento de plataformas semirreguladas, como o YouTube, que criaram o hábito de consumir vídeo com um clique, gratuitamente, rapidamente, distraidamente. A cultura da instantaneidade se formou não para servir ao cinema, mas para corroê-lo.
A verdadeira virada, porém, ocorreu quando empresas perceberam que poderiam centralizar, padronizar e comercializar esse consumo globalizado. A Netflix, iniciada como uma locadora por correspondência, foi a primeira a entender que o futuro não estava no DVD: estava no controle total da janela de exibição. Ao lançar seu serviço de streaming em 2007, inaugurou-se aquilo que alguns chamam de era da conveniência, mas que talvez devêssemos chamar de era da desistência — desistência da experiência comum, do ritual, da tela grande, da pluralidade de espaços de exibição, da diversidade de modelos de distribuição.
Conveniência para quem? Para o espectador, talvez; para a indústria, certamente; para a história do cinema, jamais.
Desde sua primeira década, o streaming se apresentou como um milagre da democratização audiovisual: acesso ilimitado a milhares de títulos por um preço fixo mensal. Uma ilusão cuidadosamente cultivada, pois esses catálogos iniciais, tão vastos, eram compostos por restos de distribuição, obras baratas, filmes antigos sem circulação, licenças esquecidas. O streaming apareceu como um buffet ilimitado, quando, na realidade, servia pratos que os grandes estúdios haviam abandonado.
Com o tempo, porém, os estúdios perceberam que estavam entregando sua história e seu catálogo à Netflix e seus clones. Era inevitável que decidissem retomar o poder — e foi assim que surgiram as plataformas proprietárias, cada qual com seu ecossistema fechado, seus conteúdos bloqueados geograficamente, suas assinaturas individuais e seus acordos de exclusividade.
Em poucos anos, a promessa de acesso universal se dissolveu. Em seu lugar, instaurou-se um modelo de feudos corporativos, em que cada estúdio operava como senhorio digital, concedendo ou negando títulos conforme estratégias de marketing, contratos, negociações e planos de expansão. O espectador, antes supostamente empoderado, passou a ser refém de pacotes, bundles, assinaturas múltiplas e promoções sazonais.
A consequência mais grave, porém, não está na confusão logística nem na multiplicação de senhas: está no empobrecimento radical da paisagem cinematográfica. Catálogos são rotativos, instáveis, fluidos. Filmes entram e saem sem aviso. Obras clássicas desaparecem de um dia para o outro. A história do cinema é desmontada e remontada conforme planilhas trimestrais. A memória audiovisual, outrora preservada por cinematecas, colecionadores, programadores e críticos, é agora administrada por executivos que jamais verão os filmes que decidem remover.
Se Orwell estivesse vivo, seria obrigado a reconhecer: a reescrita do passado não precisou de Ministérios; bastou uma atualização de catálogo.
Mas nenhum aspecto da revolução do streaming é tão destrutivo quanto seu impacto nas salas de cinema. Durante décadas, o cinema resistiu às tempestades tecnológicas com admirável resiliência: resistiu à chegada do som, da cor, da televisão, do multiplex, do home video, da internet, da pirataria. Resistiu não porque fosse economicamente insubstituível, mas porque era ritualmente insubstituível.
A experiência coletiva, pública, comunitária e irrepetível da sala escura fundamentava a existência do cinema enquanto arte e enquanto instituição social. O cinema não era apenas ver um filme: era participar de um acontecimento. Era estar diante do outro, no meio do outro, com o outro. Era uma forma de urbanidade, de civilização, de vida social.
Os streamings, com sua lógica de disponibilidade permanente, atacaram precisamente esse pilar. O argumento — entorpecente, repetido, sedutor — era que “agora não é mais preciso ir ao cinema”, “agora o cinema vem até você”. O que parecia uma democratização era, na verdade, uma privatização. Da experiência pública passamos à experiência privatizada; da tela comunitária à tela individual; do coletivo ao solipsismo.
As consequências estão diante de nós: salas fechando em todo o mundo, principalmente as independentes; redes inteiras endividadas; cidades perdendo seus marcos culturais; bairros se tornando desertos simbólicos. A pandemia de 2020 acelerou esse processo, mas não o criou: apenas revelou a fragilidade de um setor que já estava sendo minado pelo avanço corporativo das plataformas digitais.
Os streamings não apenas oferecem uma alternativa ao cinema: eles oferecem a substituição do cinema. E substituem com orgulho, com marketing, com slogans que celebram aquilo que deveria causar vergonha. A retórica da comodidade serve para mascarar o fato de que estamos assistindo, em tempo real, ao assassinato deliberado de um dos espaços culturais mais importantes dos últimos 130 anos.
Se a destruição das salas já seria suficiente para condenar moralmente os streamings, há ainda um fenômeno mais grave: a onda de fusões, aquisições e incorporações que tem transformado Hollywood em um tabuleiro controlado por um punhado de conglomerados globais.
O século XX conheceu monopólios, mas jamais monopólios dessa magnitude. A Paramount dos anos 1930, a MGM dos anos 1940 ou a Fox dos anos 1950 eram gigantes, mas eram gigantes com limites. Dependiam de cadeias de cinema, de censura, de regulamentações federais, de um ecossistema cultural e econômico complexo. Nada disso existe hoje.
As big techs — algumas iniciadas como lojas virtuais, outras como mecanismos de busca, outras como livrarias digitais — tornaram-se donas de estúdios clássicos, de catálogos inteiros, de marcas históricas. A compra da Fox pela Disney, a compra da MGM pela Amazon, a formação de conglomerados que englobam a Warner, a HBO e múltiplas empresas de telecomunicação: tudo isso não apenas centraliza o poder, mas redefine o cinema como subproduto dentro de corporações gigantescas.
O cinema deixa de ser fim; torna-se meio. Meio para obter assinaturas, consolidar poder de mercado, inflar cifras na bolsa, enriquecer acionistas. Monopólio antológico, e ainda pior: monopólio silencioso, apresentado como inevitável, moderno, eficiente.
O que está em curso não é apenas concentração econômica: é uma operação de alastramento, uma espécie de imperialismo digital que transforma a história do cinema em ativo financeiro. Estúdios com quase um século de vida passam a ser departamentos dentro de empresas que vendem eletrodomésticos, servidores em nuvem, roupas, livros, softwares, cartões de crédito.
Hollywood tornou-se um apêndice, um ornamento, um playground corporativo. O cinema, antes o centro simbólico da cultura do século XX, hoje se reduz a “conteúdo”, essa palavra tóxica, rasteira, industrializada, que iguala um épico de David Lean a um vídeo de receitas rápidas, desde que ambos aumentem o engajamento.
Há um aspecto frequentemente ignorado na crítica aos streamings, mas fundamental: a lógica algorítmica que organiza seus catálogos e recomendações. Não se trata apenas de seleção, mas de formatação do gosto.
O algoritmo, vendido como ferramenta neutra, é um engenheiro cultural sorrateiro. Ele decide quais filmes “merecem” visibilidade; ele sugere, repete, reforça; ele transforma a navegação em bolha; ele cria circuitos fechados; ele dirige a curiosidade. Não há acaso nos streamings: há destino estatístico.
A suposta personalização é uma forma de confinamento. A tela inicial se adapta ao usuário para mantê-lo confortável, previsível, domesticado. Curiosidade — aquela virtude essencial da cinefilia — torna-se um obstáculo, um ruído, uma disfunção. A busca ativa é desencorajada; a recomendação passiva é incentivada. O algoritmo não apenas mostra filmes: ele molda espectadores. E molda-os para serem menos exigentes, menos aventureiros, menos críticos, menos atentos. A experiência cinematográfica é reduzida a palatabilidade, conforto e consumo contínuo.
Se outrora havia programadores, críticos, cineclubes, festivais, curadores, cinematecas e pesquisadores, agora há listas automáticas, thumbnails calculadas e trailers que começam a tocar sozinhos. A mediação humana, com toda sua imperfeição e subjetividade, era também abertura para o inesperado. A mediação algorítmica é um cerco.
O streaming não democratiza: padroniza.
Há outra perda — silenciosa, pouco comentada, mas profunda — provocada pelos streamings: a eliminação da cultura material do cinema. DVDs, Blu-Rays, discos de colecionador, edições restauradas, boxes comentados, livretos, extras, críticas impressas, pontos de venda, locadoras especializadas, videotecas universitárias — tudo isso está sendo substituído por uma nuvem volátil que não pertence ao espectador.
O usuário de streaming não possui nada; aluga tudo. Vive em uma precariedade digital permanente. Sua cinefilia é arrendada, nunca adquirida. Ele depende da boa vontade corporativa para ter acesso ao que vê. Filmes somem, reaparecem, são censurados, modificados, reeditados, cortados, tudo sem aviso.
O cinema deixa de ser objeto de estudo, coleção, arquivo, memória. Torna-se um fluxo. E fluxos não são preserváveis: são consumidos e esquecidos.
A morte da mídia física não é apenas nostalgia — é perda de autonomia, perda de soberania cultural, perda de capacidade crítica. Quem controla o arquivo controla a História. E hoje, quem controla o arquivo são empresas cujo único compromisso é o de aumentar margens trimestrais.
Outra consequência devastadora do streaming é sua inserção no ecossistema mais amplo da economia da atenção. Os filmes competem, na mesma tela, com séries, reality shows, videoclipes, entrevistas, tutoriais, anúncios, redes sociais e notificações.
Assistir a um filme tornou-se ato heroico. A atenção, fragmentada por design, não encontra mais repouso. E, sem repouso, não há cinema. A arte cinematográfica exige imersão, continuidade, concentração. Os streamings, porém, não foram feitos para espectadores atentos: foram feitos para espectadores fatigados, dispersos, desidratados pela avalanche de estímulos.
É uma ironia cruel: nunca houve tantos filmes disponíveis, e nunca foi tão difícil ver um filme de verdade.
No fundo, o que os streamings introduzem é uma lógica de obsolescência generalizada: obsolescência dos cinemas, dos estúdios tradicionais, dos modelos de distribuição, dos catálogos preservados, das mídias físicas, da cinefilia, dos espaços culturais, dos hábitos de atenção.
O cinema, que resistiu a tudo durante mais de um século, agora parece lutar contra um inimigo multiplicado: um inimigo que está em nossos bolsos, em nossa rotina, em nossa distração, em nossa pressa.
Nunca foi tão fácil destruir o cinema — e nunca o fizemos com tanta alegria.
Este ensaio é, por definição, uma denúncia. Não pretende consolar, sugerir soluções ou apontar caminhos de reconciliação. Meu objetivo não é compreender o streaming, mas expor sua violência estrutural — cultural, econômica, histórica.
E, ainda assim, deixo claro: não tratei aqui do streaming como linguagem, como sintoma estético, como fenômeno artístico ou antiartístico, nem discorri acerca do asqueroso processo de compra da Warner Bros. pela Netflix.
Esses temas — mais inflamáveis, mais profundos, mais intratáveis — serão o foco dos próximos textos.
Este foi apenas o primeiro de uma trilogia, e o mais brando deles.
A história da destruição continua.
E eu só estou começando…