O agente secreto, de Kléber Mendonça Filho

Miguel Forlin

Há filmes que se oferecem ao espectador como enigmas a serem decifrados, e há filmes que se escondem atrás da promessa de enigma, como se essa promessa fosse suficiente para sustentar uma experiência estética. O agente secreto (2025), de Kléber Mendonça Filho, pertence dolorosamente ao segundo grupo. Não porque lhe falte intenção — intenções, na verdade, sobram —, mas porque nele há uma crença quase ingênua de que a simples recusa ao ritmo tradicional do thriller seria, por si só, uma reinvenção do gênero. O filme nasce da vontade de ser um “thriller às avessas”, um thriller desacelerado, anticlimático, deliberadamente arrastado, que fornece migalhas de informação como se estivesse construindo uma rede de tensões subterrâneas. No entanto, na prática, essa recusa ao movimento, ao clímax e ao desenvolvimento dramático não cria tensão ou mistério, mas um esvaziamento incômodo, uma sensação de que há um descompasso fundamental entre o que o filme diz querer ser e aquilo que efetivamente consegue realizar.

O problema não está na escolha de um ritmo lento ou em sua opção por diluir a narrativa. O problema é que o filme exige do espectador uma entrega que ele próprio não recompensa. A lentidão, no cinema, pode ser um recurso expressivo potentíssimo, capaz de transformar gestos mínimos em acontecimentos, de colocar luz sobre aquilo que escapa à narrativa convencional. Mas, para isso, é necessário um rigor estético que dê espessura ao tempo, que o torne palpável. Quando esse rigor falta, a lentidão se transforma em inércia. E é exatamente aí que O agente secreto tropeça.

Desde os primeiros minutos, Kléber Mendonça Filho aposta na fragmentação como estratégia narrativa: o protagonista aparece aos poucos, suas relações são nebulosas, os espaços parecem reticentes. As informações chegam em pequenas doses, como se cada recuo e cada silêncio fossem gestos calculados de uma coreografia do mistério. No entanto, essa parcimônia não gera densidade dramática. A fragmentação, em vez de sugerir um mundo rico, complexo e cheio de opacidades, apenas reforça a sensação de que muito pouco está realmente acontecendo, ou melhor, de que o que acontece não encontra forma suficientemente contundente para se transformar em cinema.

Essa economia extrema de informação poderia funcionar caso o filme trabalhasse com algum tipo de tensão subterrânea – algo que se move, mesmo quando nada parece se mover. Mas Mendonça não constrói esse subsolo dramático. Tudo fica na superfície, em uma superfície uniforme, lisa e sem vibração. O filme pede, então, um envolvimento que ele não sabe cultivar; pede uma suspensão de expectativas que não compensa; pede atenção, mas não sabe o que fazer com ela. Como consequência, aquilo que poderia ser enigma se converte em confusão; aquilo que poderia ser silêncio se torna vazio.

Entre seus temas mais ostensivos, O agente secreto investe na reflexão sobre a memória – sobretudo a memória política – e na forma como ela se materializa por meio de objetos: documentos, gravações, jornais, papéis, fitas envelhecidas, fragmentos de um passado ainda pulsante. O filme trata esses objetos como portadores de uma verdade perdida, como se o simples ato de filmá-los fosse suficiente para evocar densidade histórica.

Aqui reside outro equívoco. A memória, no cinema, não se sustenta apenas no objeto: ela surge da relação entre o objeto e quem o manipula, entre o passado e o presente, entre aquilo que é lembrado e aquilo que é reprimido. Em O agente secreto, essa relação não é construída. O filme exibe materialidade, mas não a encarna. Seus personagens não vivem o peso dessas memórias: apenas orbitam ao redor delas. A presença constante desses vestígios objetivos do passado – documentos, imagens, áudios – não serve para revelar algo sobre os personagens, mas para tentar conferir ao filme uma profundidade que ele não sabe articular dramaticamente. O resultado é que a memória aparece não como processo, mas como fetiche. Ela não se infiltra na narrativa: apenas a decora.

Se o filme fracassa em sustentar a sua própria lentidão, isso se deve, em grande parte, a uma falha mais profunda: a ausência de uma mise-en-scène capaz de dar densidade a esse tempo expandido. Uma obra que se propõe a ser um thriller anticlimático exige precisão coreográfica – uma precisão que Mendonça não alcança. Nenhum movimento de câmera parece carregar uma intenção clara; nenhum corte sugere avanço; nenhum enquadramento revela o que está oculto. Em outras palavras: falta cinema, no sentido mais rigoroso do termo.

Os personagens, por sua vez, também sofrem com esse desinvestimento geral. Deveriam ser tridimensionais, cheios de contradições internas, carregando em seus gestos o acúmulo de anos de experiências políticas e afetivas. Mas não há profundidade neles – apenas sinais vazios de profundidade. Suas relações, que poderiam sustentar a narrativa, permanecem esquemáticas. Seus diálogos, que deveriam revelar nuances, surgem artificiais, rígidos, quase sempre buscando uma gravidade que não conseguem atingir. Nenhuma conversa soa real; nenhuma palavra parece habitada.

E aqui chegamos ao ponto crucial: em um filme em que nada acontece de maneira explícita, os personagens precisam ser o motor do mistério. Se eles são opacos por falta de construção – e não por excesso de complexidade -, toda a estrutura da obra desmorona.

O thriller às avessas, ao abdicar do clímax tradicional, exige, como compensação, uma atmosfera irresistível, algo que envolva o espectador mesmo quando a trama parece suspensa. É assim em certas obras de Chantal Akerman, em certos momentos de Theo Angelopoulos, em passagens inteiras de Andrei Tarkóvski. Mas O agente secreto não compreende essa exigência. A atmosfera, em vez de ser construída com precisão e paciência, é apenas postulada. O filme quer ser misterioso, mas não sabe produzir mistério; quer ser atmosférico, mas não domina a textura do tempo cinematográfico.

O silêncio não tem tensão. O vazio não tem força. A opacidade não guarda nada dentro de si. Quando, enfim, as revelações chegam – e chegam de maneira extremamente didática -, o filme destrói o pouco de ambiguidade que ainda preservava. Tudo se revela simples, direto, maniqueísta, desmontando a promessa inicial de complexidade. O mistério não se desfaz: ele se revela inexistente.

É quase impossível assistir a O agente secreto sem lembrar de Michelangelo Antonioni. Não por proximidade estética – afinal, Mendonça não chega nem perto de reproduzir o rigor do mestre italiano -, mas porque a sua tentativa de construir um thriller desidratado ecoa, ainda que involuntariamente, os caminhos que Antonioni percorreu décadas atrás em Profissão: repórter (1975) e Identificação de uma mulher (1982). São filmes que, assim como O agente secreto, partem da recusa ao esquema tradicional do suspense: neles, a ação se dilui, a trama se dispersa, a investigação torna-se pretexto para sondar zonas indefinidas da subjetividade humana. A diferença é que Antonioni sabia o que fazer com esse material.

Em Profissão: repórter, a narrativa é um labirinto do qual o espectador não sai com respostas, mas com uma consciência renovada do mistério que é a existência humana. O filme renuncia ao clímax, mas a sua mise-en-scène é tão precisa que cada gesto, cada deslocamento, cada silêncio, torna-se carregado de significado. O grande plano-sequência final, frequentemente citado como uma das maiores realizações da história do cinema, não é gratuito: é a culminação inevitável de uma forma de pensar a imagem que sabe transformar a ausência de ação em excesso de presença.

Algo semelhante ocorre em Identificação de uma mulher. Antonioni, aqui, subverte o thriller romântico-policial, esvaziando-o de qualquer intenção de solução. O filme trabalha com um desaparecimento e com uma busca – mas a busca é interior, o desaparecimento é emocional e a investigação é apenas o rastro visível de uma crise existencial. A atmosfera é construída não pelo que acontece, mas por aquilo que poderia acontecer. Cada neblina, cada corredor, cada enquadramento carregado de silêncio é uma peça de uma arquitetura rigorosa.

E é justamente contrastando essas obras com O agente secreto que o fracasso do filme brasileiro se torna ainda mais evidente. Antonioni sempre soube que a recusa ao clímax exige precisão absoluta. Soube que um thriller reduzido ao osso precisa de personagens densos, de atmosferas construídas com paciência e rigor, de uma mise-en-scène que produza sentido mesmo quando a narrativa parece suspensa. Kléber, ao contrário, parece acreditar que negar o clímax é suficiente, que desacelerar já é reinventar, que sugerir é o mesmo que construir.

Não é.

Um conceito fundamental ajuda a compreender essa diferença: o vazio, em Antonioni, é produtivo; em Mendonça, é apenas ausência. Antonioni cria lacunas – espaços carregados de sentido, fissuras que revelam algo que não pode ser dito. Mendonça cria apenas buracos, zonas sem conteúdo. Nos filmes do italiano, a falta de informação é um convite à imaginação. Em O agente secreto, a falta de informação é um sintoma de falta de construção.

Enquanto Antonioni compreende profundamente o thriller para poder desconstruí-lo, Mendonça dá a impressão de desconstruí-lo sem compreendê-lo. Profissão: repórter e Identificação de uma mulher são filmes que rejeitam a lógica do suspense, mas que se sustentam sobre uma camada densa de significados. O agente secreto rejeita a lógica do suspense, mas não coloca nada no lugar.

Há uma cena hipotética que poderia ilustrar essa diferença: imagine um personagem caminhando lentamente por um corredor estreito. Em Antonioni, o corredor diria algo sobre a condição existencial desse personagem; as paredes seriam opressivas, a profundidade do campo sugeriria incerteza, o som ambiente reforçaria a sensação de desorientação. Em Mendonça, não se sabe o que o corredor representa – talvez nada, talvez apenas a ideia abstrata de que o personagem está “indo a algum lugar”. Falta densidade simbólica. Falta mundo.

É por isso que O agente secreto não funciona nem como thriller, nem como antithriller, nem como drama político, nem como ensaio sobre a memória. Ele não é radical o suficiente para ser experimental, nem rígido o suficiente para ser clássico. É um filme hesitante, que se esconde atrás de gestos formais que não domina, que aspira à profundidade, mas produz apenas aparência de profundidade.

Seu fracasso é retumbante – não por falta de ambição, mas por falta de rigor. Tudo aquilo que seria necessário para que a sua proposta funcionasse está ausente: precisão formal, personagens vivos, diálogos com espessura, uma atmosfera que realmente respire, um mistério que não se dissolve.

O mais triste, talvez, é que O agente secreto parece acreditar que a intenção basta, que tematizar a memória é o mesmo que construir uma relação viva com ela, que sugerir mistério é o mesmo que cultivá-lo, que negar o clímax é o mesmo que reinventar o cinema de gênero.

Antonioni – sempre ele – sabia que isso não era verdade. Ele sabia que o cinema, quando reduzido aos seus elementos mínimos, exige precisão redobrada. Sabia que o silêncio só é expressivo quando nasce de uma mise-en-scène que lhe dá forma. Sabia, enfim, que a ausência só é poderosa quando há algo que ela oculta.

Kléber Mendonça Filho, em O agente secreto, parece não saber.

E é por isso que o filme, apesar de sua ambição, fracassa. Porque lhe falta aquilo que distingue os grandes cineastas daqueles que apenas desejam sê-lo: não a inteligência, não a sensibilidade, não a intenção, mas o refinamento formal que transforma intenção em cinema.

Compartilhe:

Translate