Malu Garcia
É sempre no primeiro sorriso que sabemos se estamos no lugar certo
Quando um avião aterrissa em qualquer pista de aeroporto do mundo, esse momento de alívio, digamos, nunca dá noção do país que se vai encontrar depois do balcão da imigração. Mas em Cuba dá.
E mais: acontece antes. Na cabine mágica — sim, porque para mim são pura magia aquelas luzinhas todas acesas —, o comandante anuncia Bienvenidos a la Ciudad de La Habana, aeropuerto José Martí, e a minha pressa de desatar o cinto, tal qual em outras aterrissagens, acaba por completo. Ah, como me entretenho observando as cubanas da gema, tão distintas para quem está prestes a desembarcar a passeio.
Coreograficamente, elas sacam de suas bolsas de todo tamanho, preço e marca um pequenito vidro de perfume e se abundam em espirrar-se; todos os esguichos se misturam numa névoa cheirosa que atravessa a garganta. Não raro, devido ao cansaço pelas horas de voo, o aroma pode despencar como chuva no estômago, tamanha a quantidade dos cheiros dispersos ao mesmo tempo em espaço tão exíguo.
Com o tempo, essa atmosfera perfumada funciona como uma espécie de boas-vindas, e vou percebendo que a memória olfativa é uma poderosa senhora a me dominar. Em mim, parece que os cheiros ficam em algum lugar, guardados, esperando o clique do olfato para explodirem em riso ou em saudade. Toda vez que aterrisso em Havana, me tocam os dois: sorrio e respiro satisfeita. Sinto nostalgia.
Lá se vão anos. Em todas as aterrissagens, me vejo com o coração pulsando forte só porque um dos cheiros aspergidos pelas cubanas esborrifando seus perfumes me faz lembrar as delícias que vivi depois de ultrapassar o balcão da imigração.
A simplicidade do ambiente, do mobiliário antigo, meio ultrapassado, as roupas militares dos agentes que circulam pelo espaço, dos monitores de computador ao tipo de piso ladrilhado, tudo remete à sensação de estar entrando nas cenas de um filme antigo.
E isso é assim ainda hoje.
Em 2005, primeira vez que desembarquei na ilha, uma sucessão de acontecimentos generosos foi se encadeando, e, quando dei por mim, saquei que minha bússola interna, indomável, sempre me norteou para voltar. Voltei mais oito vezes. A última, creio, me salvou a vida.
Já na imigração se é atendido por jovens, apesar de muito sérios, meninos e meninas, simpáticos, acolhedores: te olham nos olhos, conferem o visto que você comprou por 20 dólares e preencheu no balcão da companhia aérea e, sem delongas, te carimbam o passaporte caso não tenha o visto estadunidense. Se o tiver, eles carimbam no próprio visto. Esse cuidado se deve ao antigo e severo bloqueio econômico norte-americano contra a Ilha. Teoricamente, se houver carimbo de Cuba no passaporte, a pessoa tem “problemas” para viajar aos Estados Unidos.
Ao cruzar a porta do aeroporto, o bafo quente caribenho é capaz de alcançar até as amígdalas. Todos os lenços, blusas e jaquetas que você vestiu para encarar o ar-condicionado durante o voo vão se tornando estranguladores com o poderio de uma píton. Qualquer manga cola, qualquer gola é demais. Sempre cabeluda, até minha nuca solicita um pouco mais de ar para respirar e continuar sua rotina inglória de ver a vida com o delay eterno de só enxergar as coisas depois que meus pés já passaram.
Todo o corpo, na verdade, já quer desenroupar-se, e isso é algo bem automático. Fazendo uma relação bem sem-vergonha aqui, não me levem a mal, e não é à toa que mormaço tem namoro, amorico, rabicho, xodó como sinônimos: despir-se em Cuba é quase imperativo. Nunca estive em outro lugar onde sensualidade e calor combinam tão refinadamente. “Sensualizar” é um verbo nacionalmente muito bem conjugado, de ponta a ponta da ilha, diga-se. Cubanos e cubanas sabem bem disso. São campeões em sedução e em generosidade. A música, a dança e a lábia são por excelência acessórios inatos, além do sorriso fácil, claro.
E é sempre no primeiro sorriso que sabemos se estamos no lugar certo. Ou não.
Em mim, é isso que tem o poder de me fazer ir ou ficar em qualquer lugar. Em Cuba, permaneci. Fisicamente, partia da ilha, mas a cada vez ia embora mais envolvida. Trazia as músicas recém-descobertas e passava a ouvi-las repetidamente, como uma forma de me sentir um pouco ainda lá.
Descobri Silvio Rodríguez, Liuba María Hevia, Pablo Milanés, Compay Segundo, Carlos Varela. Passei a ler os autores locais. Descobri preciosidades e vou me apaixonando, diversa e ecleticamente, por Leonardo Padura, Roberto Fernández Retamar, Pedro Juan Gutiérrez, José María de Herédia.
No geral, cubanos e cubanas são pessoas essencialmente generosas com quem fica fácil criar laços. Os novos afetos, em especial, me apresentam mais músicas e escritores, mais artistas admiráveis, lugares singulares, vivências e pores de sol de um tipo tão intenso que fui contemplando como preces capazes de me salvar nos amanheceres seguintes, caso despertasse agonizante. Com eles, in loco, vou me envolvendo e me emocionando ao desvendar a história dessa ilha, indomável por séculos, seja por espanhóis, russos ou norte-americanos.
A cada descoberta, me entrego mais. E muito mais Cuba me oferece: culinária deliciosa, bebidas incríveis, cinema genial, charutos que eu amo. E gente. Gente boa pra caramba. Com tudo isso como porta de entrada, mesmo morando a sete mil quilômetros de distância, despojada, eu vivo mesmo é na Ilha.