Caio Cesar Esteves de Souza
Doze atores sentados em um tabuleiro olhando fixamente para nós. Entrei, busquei uma cadeira no canto e me sentei. Não havia uma plateia propriamente dita – o público se dividia pelo tabuleiro, cinco ou seis em torno de cada ator. Na minha frente, sentado no chão, estava o Daniel Tonsig, que nos olhava fundo nos olhos por longos segundos. A plateia era assistida pelos atores e atrizes ao passo em que os últimos da fila andavam pelo tabuleiro buscando um lugar livre para se sentar. Quando todos finalmente se sentaram, lotando mais uma vez o Teatro Manás Laboratório, Flávio Pacato se levantou com a sua sanfona e deu início a O que meu corpo nu te conta?, uma das melhores coisas a ocorrer na cena cultural de São Paulo nos últimos anos.
Não vou descrever a peça em detalhes porque isso iria contra tudo o que há de mais vibrante na experiência que senti na pele durante aqueles setenta e cinco minutos. Também porque não faria sentido descrever um espetáculo que é construído como um percurso individual único para cada pessoa da plateia. E não uso “único” da mesma forma frouxa como alguns colegas da crítica usam “imenso” ou “indispensável” para se referir a uma infinidade de livros e filmes cujos títulos esquecemos ao acordar. O percurso de fato é programaticamente único. Cada cena dura cerca de quatro minutos. Depois disso, todos os membros da plateia têm de se mover em percursos não óbvios e não lineares que nós mesmos escolhemos. Quando achamos que entendemos a dinâmica da peça, tudo é virado de ponta-cabeça e os atores se movem. Isso significa que é possível que um membro da plateia assista a uma mesma cena mais de uma vez; e também que é impossível assistirmos a todas as cenas durante uma sessão. No dia 20 de setembro, assisti duas vezes à cena de Eduardo Godoy, por exemplo. No dia 21, duas vezes à de Daniel Tonsig.
Não bastasse isso, o elenco também muda de sessão para sessão. Eu assisti à sessão das 18h do dia 20 de setembro e, tendo decidido escrever sobre a peça, retornei no dia 21 para assistir à sessão das 20h. O elenco no primeiro dia era composto por Agmar Beirigo, Ana Bahia, Bruno Rods, Creão, Daniel Tonsig, Eduardo Godoy, Flavio Pacato, Letícia Alves, Renan Rezende, Silvia Suzy, Thiene Okumura e Vini Hideki. Já no dia 21, Creão e Silvia Suzy estavam ausentes e, em seus lugares, entraram João Ricken e Julia Leite. Nos dois dias, houve uma participação especial de Bruno Ferian como ator convidado.
A peça é um exercício de autoficção que quebra a expectativa do público a cada passo. As cenas, representadas por atores e atrizes inteiramente nus, ocorrem em simultaneidade e têm, em sua maioria, um tom confessional. Aqueles corpos, despidos de qualquer tipo de proteção, expõem segredos para o público sobre as experiências mais diversas. Iniciação sexual, velhice, gordofobia, relações raciais, maternidade, pedofilia, estupro, homofobia… os temas por si só não bastam para entender essas histórias. Elas lidam sim com eles, mas projetam a sua sombra sobre a plateia. Cada riso ou cada lágrima nossa se revelam confissões dos nossos impulsos aos atores. As cenas, construídas com uma fineza poética rara, apresentam peripécias que nos deixam por vezes horrorizados com o riso de segundos atrás. O que há de sombrio no segredo sendo revelado por eles se encontra com a nossa própria sombra, que passa a nos observar atentamente durante o espetáculo. Sem revelar o enredo, devo admitir que o riso que dei nos primeiros momentos de uma cena de Renan Rezende voltou para me atormentar algumas vezes durante a parte final do texto e nos dias que se seguiram.
Durante as cenas, outros atores e atrizes gritam frases de seus textos, fazendo com que os colegas interrompam a sua cena e olhem para eles, nos lembrando do todo que se apresenta diante de nós. Estamos constantemente confrontados com a ideia de que aquele segredo que nos é apresentado é um dentre vários e que não conseguiremos jamais ter a visão una do todo desse tabuleiro que nos cerca. Nessas quebras da ilusão dramática da confissão somos lembrados de que estamos num teatro. E em seguida voltamos a esquecer. A troca de cenas faz com que o espectador se torne um ator. Nos levantamos e seguimos para o próximo lugar no tabuleiro como se nada tivesse ocorrido, como se nada daquilo tivesse nos afetado e como se tivéssemos prontos para a próxima cena. Seguimos a nossa atuação de normalidade enquanto os atores nos olham nos olhos e nos desnudam (metaforicamente) nesse processo. Eles sabem o que sabemos e fingimos não saber. Eles viram as nossas reações, perceberam nossos incômodos ou excitações… talvez até melhor do que nós.
A peça é entrecortada por momentos que expõem o artifício dramático por meio de músicas e intervenções textuais e produzem a ilusão de que o enredo (se é que podemos utilizar essa palavra no singular) é constituído por um fluxo de confissões mesclado com intervenções artificiosas. Eu me seduzi por essa ideia algumas vezes durante a peça, apenas para ter novamente o tapete puxado pelos atores e me encontrar perdido naquela narrativa. Em determinado ponto, estava assistindo a uma cena e ouvi outro ator representar uma cena a que eu tinha assistido minutos antes na boca de uma atriz. A confissão, portanto, pertence a qual corpo? Foi ali que eu percebi que os momentos de metalinguagem explícita, quando os atores nos fazem cantar “mas não é tudo que eu posso controlar”, imitando movimentos das suas mãos, são os momentos mais próximos de uma ausência de artifício. São intervenções que explicam (com a intenção de nos confundir) o que acontecerá diante de nossos olhos.
Dizer, no entanto, que tudo é artifício está longe de solucionar o dilema do tom confessional da autoficção criada pelo Coletivo Impermanente sob direção de Marcelo Várzea. Sabemos que os atores e as atrizes são autores e autoras dos textos que nos são apresentados ali. E há sim elementos autobiográficos que nos são apresentados, e não são em hipótese alguma simples de digerir. Os traumas e as experiências intensas que eles representam foram vividos, em alguma medida, por algum daqueles corpos que se desnudam diante de nós. Nus, esses corpos falam os seus segredos ou ouvem outros corpos contarem os seus segredos para estranhos que reagirão de alguma forma a essas histórias. Há uma confidencialidade complexa nessa confissão. O segredo é contado, mas não sabemos de quem ele é. O corpo nu que nos conta esse segredo simultaneamente protege e desnuda o seu autor. Nada impede que os atores estejam representando cenas que eles mesmos escreveram – mas nada tampouco o garante. A verossimilhança da representação é inteiramente baseada em nossos pressupostos e, por vezes, em nossos preconceitos. Não podemos julgá-la sem nos depararmos com uma crise ética. Como julgar se a representação de um texto sobre estupro é verossímil sem inevitavelmente confessar que estamos julgando se acreditamos que aquele corpo nu diante de nós é “estuprável”? Acreditar ou suspeitar da veracidade da cena é inevitavelmente um ato de confissão da plateia – e essa confissão nos faz olhar nos olhos de nossa sombra diante de um corpo que potencialmente já sofreu as consequências das ações de uma sombra parecida.

O dilema da veracidade das confissões está na própria origem da peça. Durante a pandemia, Marcelo Várzea apresentava com um grupo ainda maior de atores o espetáculo Inconfessáveis pelo Zoom. Os espectadores votavam ao fim de cada apresentação se aquela confissão era verdadeira ou falsa e isso gerava uma competição entre os atores e atrizes para ver quem receberia mais votos afirmando a veracidade de sua cena. Ao fim desse jogo, o público acreditava ter ganhado aquele que tinha convencido a maior parte das pessoas de estar dizendo a verdade na frente da câmera. Já entre os atores, o que mais interessava era chegar o mais próximo possível do 50% ideal, tendo confundido o público de tal forma que metade achava se tratar de uma confissão sua e metade julgava ser um texto ficcional ou de outra pessoa. Após essa experiência, Várzea convidou alguns atores a reescrever os textos e compor um novo espetáculo, agora entrelaçando a confissão com o nu como elemento narrativo. A pandemia tinha nos mostrado o quão frágeis e impermanentes eram nossos corpos. Associando a impermanência dos corpos com a da memória, Várzea compôs o Coletivo Impermanente e estreou, em 2021, O que meu corpo nu te conta?
A peça está agora em sua décima temporada, que se encerra no dia 28 de setembro. Há chances de que essa seja a sua última temporada, devido à completa ausência de patrocinadores. O coletivo atualmente está contemplado pela Lei Rouanet e busca empresas e indivíduos interessados em destinar parte de seus impostos à peça. Terei o maior prazer em ajudar os interessados a entrar em contato com eles para garantir a longevidade do projeto (me chamem no email ou Instagram!). Esse é o tipo de projeto que nos enche de orgulho e que deve ser levado para todas as capitais do país.
Queria, no entanto, encerrar este texto não com um resmungo sobre a falta de patrocínios ou com o pedido de arrecadação, mas com uma tentativa de resposta. O que o meu corpo nu te conta?, perguntam os atores e atrizes do Impermanente. Posso segredar o que os seus corpos me contaram, ou melhor, me fizeram viver. Os corpos de vocês me fizeram voltar a respirar arte durante algum tempo, em meio à aridez da vida. Me fizeram lembrar o prazer quase indescritível que sinto ao ver um artifício tão bem empregado a ponto de estar presente onde se finge ausente e de tirar as minhas ações do meu controle. Eu me lembro que durante a graduação eu li um texto de Kant sobre o sublime e passei dias tentando entender o que seria aquele sentimento. Se não me falha a memória – e ela ama falhar – uma das definições do sublime terrível que ele dava propunha que esse sentimento era aquele que tínhamos quando, diante de algo que pode aniquilar a nossa existência material, percebíamos a infinitude de nossa capacidade de apreender esse perigo com a razão. Um dia, muitos anos depois, no topo da torre de um castelo em uma viagem, senti isso. Vi aquela natureza terrível e o abismo aos meus pés; percebi a minha pequenez diante da natureza que me cercava; e senti uma espécie de prazer indescritível em poder observar aquilo que poderia me destruir num piscar de olhos e apreender, em um único instante, aquela imensidão. No dia 20 de setembro, quando a peça encerrou, continuei sentado por alguns momentos, abismado com o fato de que tinha, pela segunda vez na vida, me deparado com esse sentimento. Em suma, os seus corpos nus me contaram o abismo – mas o abismo de quem?