Tatuí

Katsushika Hokusai, "A grande onda" (1830-32)

Luiza Conde

Era um sacolejo sem fim ali na escuridão daquele ônibus, e eu sentia comichão na areia do meu pé, como se um tatuí tivesse se enterrado debaixo da pele e agora não quisesse sair, e a mulher do meu lado me sacudia. — Ei, tá me ouvindo, tá me escutando? — A voz da mulher saiu rouca de muito tempo sem falar, estávamos todos há tanto tempo sem falar, e a areia no meu pé não me deixava dormir, o tatuí parecia se enterrar cada vez mais fundo, e quando eu fiz menção de limpar, o ônibus deu um tranco e eu bati com a cabeça na parede de metal e desmaiei de fadiga e de fome e só acordei porque a mulher do meu lado me sacudiu. — Você sabe o que são jogos de crash test dummy? — Ela nem esperou que eu respondesse antes de começar a me explicar, tinha ânsia de falar, como eu tinha ânsia de catar cada grão de areia do meu pé. — São uns joguinhos em que você pega aqueles bonecos de teste de carro, aqueles que servem pra evitar as mortes horríveis da gente, e basicamente inventa mortes horríveis pra eles, e aí tem umas conquistas, do tipo carbonizar o boneco, decepar todos os membros do boneco, explodir o boneco em mil pedacinhos, enfim, uma vez eu passei horas jogando um desses joguinhos, e quando terminei de jogar percebi que eu estava molhada, assim excitada mesmo, sabe, terrivelmente úmida. — Dessa vez ela esperou minha resposta e eu fiquei em silêncio, enquanto sentia cada grão de areia do pé rangendo contra o chão, o tatuí se retorcendo na ponta do dedão, e tinha que ser justo uma louca do meu lado debaixo das janelas que não serviam pra nada no ônibus, as janelas trancadas e pintadas de preto, o ar pouco, parado, os bancos removidos pra caber mais de nós, e a gente respirando aquele ar enjoado, a gente com a bunda no chão, a gente com o cotovelo na cara, um ombro numa costela, um suor num suspiro, cada freada me custava um dente e o tatuí se enterrava mais e mais na minha carne. — E depois do dia em que eu passei horas jogando eu sonhava que cavalgava bonecos enquanto despedaçava eles inteiros, e a chuva de espuma me fazia gozar. — Senti que ela me encarava na escuridão, éramos muitos e uma pele roçava na outra e eu já não aguentava o cheiro moribundo e a areia entalada debaixo das unhas e o tatuí que ria de mim, e eu percebi que ela esperava uma resposta e quis pedir para ela não fazer de mim o seu boneco, em vez disso murmurei “hum”, eu precisava ouvir mais ainda do que ela precisava falar. — E agora sempre que eu toco uma, e às vezes até no sexo com outras pessoas, eu fecho os olhos e me imagino abrindo a costura do boneco ponto por ponto, bem devagar, devagarinho mesmo, e depois eu vou rasgando o tecido, e o barulho gostoso me faz suspirar, encharca meus dedos, e quando a espuma começa a se mostrar eu já não aguento mais de tesão, ajoelho na cama, mordo o lençol, meus dedos se afogam e eu arranco a cabeça do boneco de uma vez só, e quando ela sai inteirinha na minha mão eu gozo tão forte que grito, e eu queria que alguém soubesse. — Eu soube e ela caiu num choro contido, muitos dormiam ao redor, e apoiou a cabeça no meu ombro, eu retribuí o gesto e apoiei a minha cabeça também embora ela fosse louca, e acho que o tatuí se comoveu, parou de revirar e revolver na minha pele e sossegou um pouco, ainda que os grãos de areia espreitassem todos entre os dedos do pé. Acho que peguei no sono e ela também, ali no ônibus estávamos todos bêbados, e às vezes o trepidar quente e escuro era como a mão da mãe balançando o berço. Acho que peguei no sono e quando acordei o tatuí tinha cravado os seus dez pés no meu, a areia fazia coçar meu pé inteiro e a cabeça da mulher não estava mais lá, o ônibus parou e um homem de farda abriu a porta, e se ainda me sobrassem lágrimas eu tinha chorado, e eu não sabia onde estávamos, já não sabia nem de onde tinha vindo, só sei que ali tudo era cimento e ferro e fumaça, e quando o homem de farda nos mandou sair um por um do ônibus, a mulher não veio porque estava morta, eu finalmente vi a louca, a cara da louca, que era bonita, o pé da louca, sem areia e sem tatuí, o corpo morto da louca que já não podia mais despedaçar os seus bonecos, e se ainda me sobrassem lágrimas eu tinha chorado. A mulher estava morta e eu também matei o homem de farda, ele se recusou a limpar a areia do meu pé e a tirar o tatuí dali, e o sangue do homem me lavou os pés descalços, mas a areia não saiu. Outros homens me cercaram e pensei que talvez fossem me matar também. Em vez disso só me fizeram atravessar o portão.

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