Pedro Rocha Souza
Benvenuta
Car c’est vraiment, Seigneur, le meilleur témoignage
Charles Baudelaire
Poente.
O Itacorubi ruma, lento e inexorável,
à baía norte.
Desaguará,
como nós um dia, em qualquer outra Eternidade,
vida eterna ou silêncio último.
A água pardacenta do manguezal,
ter-se-ia por quase imóvel, graças à continuidade lentíssima de seu curso não-sentido.
Nas águas,
porém,
uma garça branquíssima jaz,
imóvel,
no manguezal.
A arte tem qualquer coisa disso:
alvura impassível num rio pardacento.
Onde deságua o mangue
Manhã de inverno.
A avenida estira-se
para dentro da manhã.
A manhã que ainda não tocou a lua,
apagando-a.
Manhã que sobe lenta por detrás dos morros,
no despertar vagaroso das moças.
Chegará, inexoravelmente.
Venta um vento frio de
tristeza. Varre o mundo, e
que me sussurra um amor perdido.
Na rua algo deserta
o calçamento estala,
melancolicamente,
sob o ritmo dos passos secos.
Um só só só só fazem soar
no concreto os solados, num
ruído lento e compassado.
Cruzo o Itacorubi.
Como o meu desejo,
o rio segue pardacento,
no vagar dos manguezais,
rumo à Baía, onde desagua o mangue
no infinito do mar.
Desencontro
Como Apolo a correr por Dafne,
também nós perseguimos o sonho.
Um truque, nada mais:
a flecha irresponsável de Eros move-nos.
A imagem sonhada, quimera ardente, cáustica,
no entanto, está-nos sempre além:
um rio-deus nos a proíbe — o real, o tempo ou a vida.
E seguimos Apolo angustiados.
Somos a angústia marmórea de Bernini:
eternamente em busca e eternamente imóveis.
Tudo o que nos restará será o louro amargo a coroar-nos a fronte.
Poliédrica
Aquele poema fala de ti.
Naqueles sete versos,
cada palavra pesada à tua medida.
Cada verso quis entrever um gesto teu,
gesto que desconheces por intimidade.
Cada verso quis talhado a ti.
Naqueles sete versos, no entanto,
nenhuma imagem que te guarde,
forma alguma que conforme tua figura.
Entre a rigidez dum verso e outro,
tua carne: múltipla, inafixável.
Mnemônico
A memória se inicia confusa,
c’o marulho mesclado à algaravia das gentes.
Era um verão dos de Sorolla.
Caminhávamos.
Caminhávamos, sem contar passos,
alheios ao destino
— um destino que, mais certo, depois sobreveio,
inexoravelmente…
A tarde barroca, tão adolescente…
Hoje, revejo as mesmas ondas quebrarem;
hoje, vejo que de ti o vento já nada traz ou toca:
e o mundo inteiro é um quebranto…
Em algum lugar, porém,
as águas te banham
os ventos te tocam.
Em algum lugar, no entanto,
tua presença preenche o vazio que encontro.
Em algum lugar,
caminhamos, no infinito da memória.