Rosmim

Moshe Rynecki, "Família judia fabricando brinquedos" (antes de 1939)
Instituto Histórico Judaico, Varsóvia

Myriam Scotti

Volta e meia, me pego repetindo expressões e frases escutadas na infância. Algumas vêm do dialeto sefardita que minha avó empregava no dia a dia, filha de um judeu marroquino tradicional como era. Por exemplo, se me flagrasse mal-vestida para determinada ocasião, vovó logo me interpelava: “ai, essa roupa está muito rosmim, minha filha. Não tem outra não?”, querendo dizer que eu estava bem mixuruca, aquém da festa.

Boa parte do meu vocabulário vem da ancestralidade. A formulação das frases, o uso da segunda pessoa, as expressões antigas, o dialeto, as repreensões e até os preconceitos foram sendo moldados a partir da escuta das minhas ancestrais. Os preconceitos, inclusive, são uma desconstrução diária, tendo em vista que o que pensamos ser absurdo hoje em dia, no século passado era normal e completamente aceitável. E como é bom saber da plasticidade do nosso cérebro, portanto, adaptável, de modo que comemoro o avançar do pensamento social em relação às necessidades de mudança da língua.

Afinal de contas, tal qual a humanidade, a língua precisa evoluir para representar o momento, o agora. Lendo um jornal de 1910, deparei-me com “ontem” sendo escrito hontem, entre outras curiosidades. Se disséssemos para um professor da época que essa palavra sofreria mudanças, provavelmente ele não acreditaria e riria da nossa cara. Portanto, entendo a dificuldade da maioria das pessoas quando escuta sobre a necessidade de se ampliar a representatividade pelo uso da linguagem neutra. É difícil mesmo aceitar mudanças que rompam com o que já nos é confortável. É preciso tempo para absorver e inserir o estranho que, pasmem, um dia, quando menos esperamos, deixa de ser estranho e passa a ser natural.

Já dizia um filósofo que a língua pode ser fascista pois obriga a dizer algo de determinada forma já codificada. Mas ele nos apazigua quando, em seguida, explica que a literatura é capaz de dobrar a língua e fazê-la (res)surgir em outro formato, de modo que, se é penoso compreendermos a necessidade das mudanças, inclusive em relação à língua que se fala, abracemo-nos à literatura, ferramenta capaz de nos despertar para o novo de forma mais branda. Evoluir é preciso.

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Uma conto-crônica

“A [morte] dos outros, se não tomamos conhecimento dela, jamais acontece”. Uma conto-crônica de Ivanes Freitas.

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