Revista de Cultura

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Reencontro

Diego Alencar

Apurei a vista, mas não foi suficiente. Tive que empenhar os óculos para poder enxergar melhor e ter certeza: era ele mesmo. Usava, inclusive, a mesma camisa, sem a qual talvez eu não pudesse excluir a dúvida: mais inesquecível alguém usando uma camisa amarela com listras azuis do que alguém que nos insulta? No caso, não esqueci nem uma coisa nem outra e esses foram os fatores que me ajudaram a memorizar o seu rosto, que, mesmo amadurecido pelos anos e pela barba, não perdeu a arrogância.

Ficaram na memória tanto o brilho incômodo do tecido que refletia de forma exagerada a luz do domingo ensolarado, quanto o incômodo sonoro gerado pelo “paspalho” o qual me dirigiu com firmeza e prepotência após ter me fechado na saída do estacionamento no supermercado, me forçando a frear bruscamente sacudindo o corpinho da minha filha Camile, que estava no banco de trás e na época tinha acabado de fazer nove anos.

Outro fator: véspera de Natal. Uma data da qual nem os incrédulos conseguem escapar se torna elemento que contribui muito para que um instante, no qual uma camisa grita e um insulto ofusca, não seja retirado da lembrança assim por qualquer motivo. 

Nem mesmo a descontrolada tristeza que me assolou quando Catarina disse que voltaria para casa da mãe, levando consigo Camile e finalizando efetivamente o nosso relacionamento. Três vésperas depois, uma garrafa inteira de whisky, o sentimento de fracasso e de culpa, o choro. Na memória, Catarina se foi, ficou a ofensa e a camisa.

Anos depois, também no dia 24, Camile anunciou que já havia se mudado para a casa da Heloísa, e que estavam pensando em adotar uma criança. “Seremos uma família como todas as outras, pai”, ela disse, se antecipando a qualquer reação conservadora ou preconceituosa que eu pudesse elaborar. 

Na verdade, eu só consegui pensar que a oração “como todas as outras” se baseava no ideal das relações contratuais convencionais, homem e mulher, oficialmente convertidos em marido e esposa, relações as quais seria melhor que nenhuma família que se formasse na intenção de dar certo tivesse como referência (mas isso é puro ressentimento).

Diante de tal anúncio, pego de surpresa, mais uma vez a véspera se tornou marcante. Explico: o aspecto negativo neste caso, se existe, diz somente à surpresa, pois sendo um pai do meu tempo é preciso saber lidar com as expectativas reacionárias e enraizadas que insistem em negar a gritante realidade, as mudanças de arranjos, e a verdade que afirma: nem o amor, nem a família podem se converter em produto padronizado.

Tudo isso só pra dizer que aquele cara, a ousadia de sair com aquela estampa, e a covardia daquele ataque foram específicos o suficiente para que, treze vésperas depois, eu ainda sentisse a bofetada verbal me humilhando mais do que me sentir inútil à minha ex-esposa e passado para minha filha. 

Não tinha reclamações a serem feitas a Catarina por ela ter me deixado, nem à minha filha por sempre estar sem tempo pra mim. São coisas da vida e do dia a dia. Agora, como que alguém pode se sentir poderoso e confiante o suficiente para dirigir um “paspalho” a alguém que nem conhece?

“Pai, o que é paspalho?”, Camile me indagou ao estar crente que a emoção não mais me habitava.

Certamente, nunca destilaria sobre minha pequena o veneno com o qual queria besuntar meu inimigo, mas talvez tenha sido muito enfático e não des-emocionado o suficiente para definir suficientemente o verbete.

“É a mesma coisa que babaca, filinha, ou seja, exatamente o que eu sou!”, disse, chateado também por ela ter feito aquela pergunta.

E ela refez:

“Mas por que o homem falou que você é ‘paspalho’?” 

“Filha”, disse eu, “aquele imbecil não sabe o que é ser paspalho, pois ele mesmo é um, e se soubesse o que é um paspalho, se reconheceria melhor no espelho e não diria isso sobre os outros, entende?!”

“Não… não entendo…, mas achei que era igual palhaço”.

Ali eu deveria ter me apegado à astúcia da minha menina, que queria saber o que era “paspalho” justamente para me proteger de tal acusação; ou até mesmo quisesse ela ver o lado positivo de ser um “paspalho”, caso eu o fosse, lembrando “palhaço”, o qual, via de regra, é um agente do riso e da alegria. Mas, me sentindo diminuído, só conseguia pensar em desmontar a autoridade com a qual aquele irresponsável me definiu na frente da minha filha. 

Ser definido por outra pessoa é naturalmente humilhante porque diz que somos incompetentes para conhecer bem a única pessoa da qual poderíamos falar com propriedade, com a qual passamos tempo demais para não saber detalhadamente quem “ela é”.

Quando isso ocorre numa sala, numa conversa, sendo dito por um especialista, a gente tende a aceitar melhor. Ali há ética, sigilo e garantia: caso você seja um paspalho terá todo o suporte para deixar de ser um. Ou para se aceitar.

Mas o meu “poeta” fez aquilo tão somente para se atestar e se sentir melhor do que eu. Veio, me definiu como paspalho e eu, com a expressão característica de um, nada fiz; para piorar, minha filha querendo saber se o pai dela é “paspalho”, “outra forma de dizer palhaço”.

“Não, querida, é só uma forma perversa de ofender os outros”, arrematei, agora mais calmo, porém sério, fingindo estar concentrado no trânsito.

Ela ficou em silêncio e eu me arrependi de não dizer dos custos e da deselegância de insultar alguém daquela forma. 

Claro, não acho que isso seja meu maior erro como pai. Certamente, se entrevistada, ela listaria outros bem mais significantes; porém, qualquer pai sempre poderá dizer que fez o seu melhor e apontar para erros saboreando o falso álibi do “se errei foi tentando acertar”. Naquele momento errei, mas após ser chamado de “paspalho” a única coisa que eu queria acertar era a face rosada do meu algoz; portanto, não consegui equilibrar tão facilmente a situação.

Avalio até que, com sua curiosidade, Camile me fez mais apegado à violência daquele xingamento. Ser classificado como “paspalho” na frente daquela para a qual se quer ser a máxima referência não é fácil. Não ter força ou habilidade para reagir à altura da grosseria é humilhante. Até aquele dia, eu acreditava ser um herói indestrutível para ela. Minha explicação diante da pergunta dela corroborou com a destruição do mito. Aquele cara tinha desencadeado o fim daquela religião na qual eu era Deus e não se pode destronar uma divindade assim e sair por aí sem sofrer consequências.

A meu ver, Camile, a partir dali, passaria a me enxergar pelo menos como um “paspalho em potencial”.

E talvez tenha entendido que eu de fato fosse um quando sua mãe disse que eu o era, e mesmo ela talvez tenha notado que ela mesma chegar a essa conclusão em nada afetava seu amor por mim.

Hoje, depois de alguns anos refletindo sobre os desmoronamentos em série da minha vida, tantas frustrações e humilhações das quais sou agente direto e todas as minhas reações passivas a tudo, até mesmo eu digo com alívio que sou de fato um “paspalho”. Aliviado, entendo isso e posso eu mesmo me definir como tal.

No entanto, nada muda a respeito do cara da camisa cintilante e do seu atrevimento de vir revelar quem eu era de forma precoce, antes que eu mesmo me desse conta disso. De algum modo, creio, aquele ataque fez a minha autoestima desmoronar, influenciando minha já péssima atuação como marido e a questionável atuação como pai. Agora, ele está ali sentado, se divertindo, cercado de amigos, rindo, muito provavelmente, ao se lembrar do cara que ele chamou de “paspalho” treze vésperas atrás.

“Precisa ver a cara dele: ficou me olhando com exata expressão do paspalho”, diria, enquanto beberica a cerveja e solta gargalhadas.

Por um momento pensei como um sujeito consegue preservar uma camisa por tanto tempo. Mas, considerando a pluralidade de rituais, superstições e mitos, pode ser que se tratasse menos de uma camisa e mais de um amuleto. O que poderia ficar sem resposta é como uma peça de roupa pode durar tempo, mas usando a criatividade podemos imaginar que, sendo amuleto, só sai do cabide em dias especiais, talvez só na véspera de Natal, como quando me insultou. Quem sabe seja só para me irritar.

Mas caso a camisa funcione como uma espécie de catalisador de sorte hoje perderá essa magia. 

Mais uma vez, véspera do feriado que homenageia o santo nascimento, e nesta, agora que não me sobrou muita coisa, tenho a oportunidade de mudar uma trilha de ocorrências que já se tornaram uma espécie de destino. Diante dos olhos incrédulos daqueles que achavam que eu morreria como um personagem linear, farei algo inesperado, surpreenderei e me tornarei redondo. Posso até seguir sendo um paspalho, mas a partir de hoje nenhum qualquer de camisa estranha vai me impor essa verdade. E isso precisa ser rápido: faltam somente trinta minutos para a meia-noite.

A garrafa empunhada pelo pescoço se torna algo parecido com uma marreta. 

Aproximo-me da mesa onde está o cara, que quase se engasgou ao beber e rir ao mesmo tempo. Coloco a mão sobre o seu ombro.

“Boa noite!”, digo polidamente.

“Opa, camarada! Boa noite!”, reponde depois de pigarrear para realinhar a garganta.

“Você por acaso lembra de mim?!”, pergunto, calmo e amigável.

“Você?!… Você não é o… Não, não… Poxa, cara desculpa, não lembro”, diz, esperando que eu me apresente e refresque sua memória.

“Uma pena…”

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