Luiz Eduardo de Carvalho
Um capítulo da obra cedido com exclusividade para a Revista Littera 7:
Sudário de Jornal
Nos primeiros anos da década de 1980, a Pastoral do Menor já acompanhava a vida de um grande número de crianças desamparadas, entre elas a de Joilson de Jesus, garoto franzino, com 15 anos de idade, que vendia santinhos nas escadarias da Catedral da Sé, a fim de suplantar o parco sustento de menos de um salário mínimo que sua mãe auferia com faxinas. Tinha três irmãos menores e morava em uma favela da Zona Norte de São Paulo.
Aos gritos de pega ladrão, após ter furtado uma correntinha de ouro do pescoço de uma senhora, o menino saiu correndo, perseguido, quando foi interceptado por um procurador do Estado, Jeferson de Azevedo Figueira, que o golpeou, derrubou-o ao chão e pisoteou-o até a morte bem em frente à Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
A notícia logo chegou à Pastoral do Menor e, alarmado sem saber de qual criança se tratava, o padre Júlio Lancellotti chamou um colega com quem foi ao Instituto Médico Legal – IML. Após obter a identidade da vítima, eles se dirigiram à Favela da Funerária, nome que, pelas circunstâncias, parecia cheio de sarcástica e mórbida coincidência, mas correspondia à comunidade onde, num barraco que mal se sustentava em pé, estava dona Iraci, a mãe do menino assassinado. Diante do desespero da mulher ao receber a notícia fatídica, o padre Júlio assumiu encarregar-se do enterro e retornou ao IML para reclamar o corpo e providenciar o sepultamento.
Ao chegar ao IML, o padre foi verificar a situação do corpo antes de a mãe o ver e encontrou o menino defunto nu e ensanguentado sobre uma bancada, pois os funcionários recusaram-se a limpá-lo e vesti-lo sob a alegação de que um trombadinha não merecia tais cuidados. A fim de poupar dona Iraci da cena chocante, o padre Júlio pediu panos para que ele próprio fizesse a ablução do corpo inerte à sua frente. Mas parece que Joilson não era merecedor sequer de uns trapos velhos que lhe foram negados. Foi com folhas de jornal que o padre limpou o corpo ensanguentado da criança.
A tal autópsia determinou que a causa da morte foi por insuficiência respiratória aguda, luxação traumática da coluna vertical por “provável” compressão do pescoço. Revelou, também, que Joílson estava sem comer há três dias.
Enfim liberado do IML, padre Júlio pretendeu levá-lo à Catedral da Sé, em cujas escadarias Joilson fazia seu comércio diariamente. O cura, no entanto, alegou que a Catedral Metropolitana de São Paulo não era lugar para o velório de um delinquente: “de jeito nenhum vão colocar um trombadinha dentro da Catedral. Nunca ninguém foi velado aqui, não vai ser um trombadinha o primeiro”. Nem a sede da Igreja paulistana, nem nenhuma outra igreja aceitou acolher o velório de um trombadinha.
O corpo de Joílson foi velado no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Padre Ezequiel Ramin e foi nessa sede da Pastoral do Menor que uma missa foi celebrada por Dom Luciano Mendes de Almeida. “Foi a primeira vez que vi Dom Luciano chorar ao terminar o evangelho daquele dia”, conta padre Júlio. A partir desse fato, ambos receberam da mídia a pecha de “defensores dos trombadinhas.”
De acordo com o depoimento emocionado de Marilda dos Santos Lima, “o velório do Joilson foi um ato político inserido nos momentos finais da ditadura militar, um ato profético de dizer que a vida dessas crianças valem muito e que existiam pessoas preocupadas com elas. O velório marcou a reunião de todos os agentes da Pastoral do Menor, todas as autoridades voltadas às questões humanitárias. Isso teve muita repercussão, foi uma tomada de consciência de que algo precisava mudar, pois havia um Código de Menores que os tratava como objetos de intervenção de segurança e só.”
A Comissão Justiça e Paz liderou as denúncias, houve um ato ecumênico na Catedral da Sé comandado pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Jeferson de Azevedo Figueira, o executor de Joilson, procurador do Estado, findos os trâmites judiciais de praxe, devidamente amparado pelos seus pares, foi inocentado pelo Tribunal de Justiça em 1987.
E a tal correntinha, supostamente de ouro, nunca foi achada.
Apresentada com linguagem objetiva, predominantemente jornalística, salpicada com pontuais incursões literárias, que conferem emoção a alguns episódios narrados, Mãos de Deus – Biografia autorizada do Padre Júlio Lancellotti conta a história do enfermeiro, pedagogo, teólogo e sacerdote Júlio Renato Lancellotti em tom quase memorialista, uma vez que é repleta de depoimentos e declarações do protagonista biografado a respeito de si mesmo, dos fatos que transcorreram em sua vida e das interações com pessoas que foram fundamentais para sua história e que, em todos os casos, marcaram sua trajetória positiva ou negativamente. Somam-se a isso dezenas de outros depoentes a acrescentar visões diversificadas por pontos de vista coadjuvantes.
Considerando entrevistas, livros, periódicos, artigos, matérias, reportagens e participações em programas televisivos e radiofônicos, além dos artigos que ele publicou em jornais paulistanos, a monta de registros jornalísticos, bibliográficos ou acadêmicos envolvendo o relato a respeito do padre Júlio ultrapassa a casa de 900 ocorrências que foram cuidadosamente consultadas, decupadas e compiladas em Mãos de Deus com o fito de fornecer um conjunto de informações articuladas que representa o mais largo e profundo perfil, na forma de uma biografia autorizada, já escrito a respeito desse importante personagem humanista contemporâneo.
A obra principia com um preâmbulo, no qual o autor expõe as motivações voltadas ao coletivo, seguidas das decorrentes de fomento pessoal e apresenta uma premiada crônica composta em homenagem ao biografado. Mãos de Deus, a partir disso, deriva para a narrativa dos fatos circunstanciados pela história da vida do padre Júlio, desde a infância no período pré-escolar, atravessando toda sua formação, até se consumar com seu ordenamento como sacerdote. A seguir, abre-se aos tópicos que mais marcaram sua vida eclesiástica, desde a influência de fatos históricos, de movimentos ideológicos, de mestres e ídolos, até a sua atuação junto às detentas do Presídio Feminino do Tatuapé, onde foi capelão por muitos anos; junto aos internos das diversas unidades da Febem, onde trabalhou por muitos tempo como funcionário direto e, depois, lotado na Pastoral do Menor, cuja fundamentação acompanhou desde o princípio; seu envolvimento visceral com a formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente; a histórica luta pela abertura e manutenção da Casa Vida para o acolhimento de crianças portadoras do vírus HIV, o protagonismo expoente, desde a nascente e até os dias de hoje, na Pastoral do Povo de Rua, da qual é o vigário há exatos trinta anos.
Sempre sob duas vertentes são apresentadas sua prédica e sua práxis: a metodológica, que apresenta seus pensamentos e suas ações norteadas pelo embasamento teórico em todas as frentes em que atuou e a política, que determinou as tentativas, muitas delas exitosas, de consolidação dos resultados de sua luta como um legado permanente, mediante a instauração de marcos legais ou a incorporação em políticas públicas para assegurar a continuidade dos avanços pelos quais tanto se debateu.
Não poderiam faltar, decerto, os tantos reconhecimentos e as muitas oposições ao seu trabalho, desde os expressos em simples descontentamentos ou em orquestradas intrigas, passando pelos que tentaram constrangê-lo, denegri-lo ou derrubá-lo e culminando com circunstâncias em que ele esteve realmente em grande perigo de vida, sob ameaça de morte.
No encerramento, após um rol de mais de trinta depoimentos de pessoas e entidades, com juízos de cunho valorativo a respeito de sua pessoa, de suas ideias e de sua luta, são apresentadas ementas dos 268 artigos e crônicas que escreveu e publicou semanalmente por mais de cinco anos em um jornal de grande circulação em São Paulo.
O desfecho fica em aberto na expectativa dos próximos anos de sua vida que, certamente, renderão muitas outras histórias que, emanadas das mãos de Deus, convergirão para um reconhecimento ainda maior do que o juízo a respeito dos fatos narrados em Mãos de Deus possam criar na mente dos leitores dispostos a conhecerem o padre Júlio Lancellotti que, para muitos, é o mais representativo profeta vivo de nossos dias.
O lançamento ficou por conta do novo selo Calêndula, do experiente editor Wilbett Oliveira, e o livro tem 432 páginas, com costura, numa edição que privilegia a facilidade da leitura tanto no tamanho do corpo quanto na distribuição da mancha de texto na página. A foto da capa é do fotojornalista Daniel Kfouri que acompanha o padre Júlio cotidianamente.