Yan Rego
“Se eu chegar em casa e encontrar, você vai ver só”.
“Mas não tá aqui. Você nunca acredita em mim”.
Odeio quando acham que tô mentindo. E eu odeio muito pouca coisa, quase nada. Que bom, porque odiar é pecado. A irmã Iêda que disse. A irmã Iêda sabe um montão de pecados. Minha mãe disse que eu não preciso ter medo de pecado, a gente só tá lá porque é uma escola tradicional – uma coisa velha que não fica velha do tipo que a gente tem que jogar fora. É uma coisa velha que é bom usar, como meu pijama do Naruto. Meu pai diz que escolas católicas são boas e tão acabando porque tem muita escola protestante vagabunda por aí. Protestante é alguém que reclama muito. Meu pai não é protestante nem católico, e não gosta quando eu reclamo que ele pode falar vagabunda e eu não posso. Que a Totoia pode provar cerveja e eu não posso, que a Mafê pode ir no barco viking e eu não posso, ele não gosta de ouvir nada disso. E meu pai odeia quando eu falo que odeio as duas. A última vez que eu falei isso foi porque a Mafê falou que eu ia me machucar vendo tevê de cabeça pra baixo e minha mão escorregou e eu quebrei o dente e ela falou:
“Viu?”
Eu odeio quando me falam viu. Pode contar pra irmã Iêda, tô nem aí. Odeio mesmo. Isso e ficar doente. Não tem que ir pra escola, tá bom, mas tem que fazer gargarejo. Eu odeio fazer gargarejo porque tem que ser com vinagre. E o que eu mais odeio é vinagre. Por isso minha mãe não acreditou quando eu disse que não achei a garrafa de plástico com aquele galinho na frente e aquele cheiro de vomitar. Mas não tava lá mesmo. Se a Socorro estivesse em casa ia ficar tudo bem, porque minha mãe sempre acredita na Socorro. Na verdade ia ficar tudo mal, porque minha mãe ia mandar ela no mercado pra comprar outra garrafa. A Socorro não veio por causa dos protestos, meu pai me disse antes de sair de manhã. Perguntei por que ele contratou alguém que não é católica, ele riu e foi embora. E eu fiquei um dia inteiro sozinho pela primeira vez. Pra inveja do Wellinton, o filho da Socorro, que sempre vem pra cá quando não tem aula. Minha mãe já pediu pra madre superiora deixar ele estudar de graça comigo. Não sei pra quê. A escola do Wellinton é muito boa, a minha é que uma droga, porque tem aula todo dia. E é legal brincar com ele, a gente joga bola no vídeo game e joga beyblade no play. Só foi ruim quando eu achei que ele tinha roubado minha beyblade que solta faísca, chorei pra minha mãe e ela encontrou embaixo da minha cama.
“Viu?”, ela disse e me fez sentir que eu tinha feito um pecadão maior que os da irmã Iêda.
A Totoia também ficou muito brava quando eu fiz isso, porque depois que ela entrou na faculdade começou a dizer que a gente trata mal a Socorro. Mas a Socorro sempre diz que eu sou muito bonzinho. Na verdade, ela é quem foi muito malvada de me deixar em casa sem ninguém. Porque eu tava doente. Mas a Mafê chegou da escola e me contou que a Socorro faltou porque tinha gente no bairro dela reclamando no meio da rua da passagem cara e os ônibus não podiam passar atropelando todo mundo. A Mafê esquentou o almoço e depois saiu pro curso de inglês. Meu pai me ligou, perguntou quanto o termômetro tava dando e se almocei. Mas eu não consegui engolir nada e ele não acreditou que o vinagre tinha sumido.
“Para de frescura e faz logo, pra sarar. Já te disse que gargarejo com coca-cola tá proibido”.
“Mas funciona bem melhor, sempre sai um monte de catarro e o gosto não é nojento”.
“É, só que pode derreter seus dentes”, meu pai disse e eu não acreditei.
Ele desligou e depois me mandou no Facebook um link que dizia assim: Dente é desintegrado dentro de lata de coca-cola. Depois ele me mandou um link de um dicionário pra dizer que desintegrado é o mesmo que derretido. E depois ele escreveu:
“Viu? Faz logo o gargarejo direito que eu não tô de brincadeira”.
De novo ninguém acreditando em mim. Por isso eu pedi pra Mafê, assim que ela voltou, procurar na cozinha e ver que eu não tava mentindo. Ela nem foi me ver no meu quarto, porque ficou um tempão no telefone falando baixinho o nome da Totoia. Até que desligou e eu disse que tava com fome. Aí a Mafê foi no mercado, voltou com uma sopa de macarrão e uma garrafa de vinagre. Eu comi, fiz o gargarejo, vomitei a sopa e me arrependi de ter falado a verdade. Como eu tava com muita fome, a Mafê me deu banho e pegou o pijama do Naruto. Ela sempre me zoa quando uso o pijama porque meu cofrinho fica de fora, mas dessa vez ela mesma me falou pra usar. Atendeu o telefone, falou bem baixinho durante um minuto e desligou. Depois disse que meus pais iam chegar tarde e me mandou dormir. Acordei com o meu pai dizendo “um monte de vagabundos”, alto, um monte de vezes.
“Faz diferença sim, vinte centavos faz muita diferença pra muita gente, tá?”, a Totoia gritou. A voz dela tremia daquele jeito que treme quando tá com raiva e faz força pra não chorar.
“Porra, eu não te dei um carro pra ir pra faculdade? Que você vai pra fazer qualquer merda menos estudar, aliás”.
Eu apareci pronto pra reclamar que meu pai tava xingando, mas vi as caras da Totoia e dele bem vermelhas. Minha mãe viu minha cara bem branca, me levou até a cozinha e me fez um mingau. Não tive que ir pra aula no dia seguinte, mas minha mãe ficou trabalhando em casa e a Socorro também. Eu fiz a droga do gargarejo e depois fui atrás do meu cofrinho. Entrei no quarto da Totoia com duas moedas de dez centavos, mas ela já tinha ido embora e eu deixei as moedas em cima do travesseiro com um azão preto dentro de um círculo branco, numa letra pior que a minha. Na hora do almoço a Mafê chegou e a Socorro serviu um bifão pra ela e sopa pra mim. Eu tive que fingir que ia chorar, dizer que ninguém me conta nada. Minha mãe entrou na cozinha e ficou olhando, fizemos cara de nada não e ela voltou pro escritório. A Socorro disse pra gente deixar de cochicho, eu cochichei, “sua enxerida”, fiquei com os olhos abertos até cair uma lágrima e fingi mais forte a cara de choro.
Aí Mafê falou, baixinho bem baixinho, que a Totoia foi presa porque tava com uma garrafa de vinagre. Eu sabia que aquele negócio era do mal. Fiquei muito feliz, não consegui segurar e gritei:
“Viu, mãe? Falei que não fui eu!”