Marina Alexiou
Kintsugi é a antiga arte japonesa de reparar o que se quebrou. No caso, as peças de cerâmica, que são ao mesmo tempo belas, frágeis e fortes. Essa reparação é feita com fios de ouro pelos mestres do Kintsugi, sendo Chojiro o primeiro deles, no século XVI, no Japão.
Cerâmicas são peças delicadas, únicas, ornamentando os prazeres da vida e fazendo parte da estética da existência. Adquirem um significado especial pela beleza com que “colorem” os hábitos cotidianos e, muitas vezes, sagrados, como os rituais do chá.
A restauração traz à luz um novo objeto, iluminado em suas marcas do acidente, mas, ainda assim, belo, de uma forma diferente, agora com um tom poético cheio de maturidade pela vitória em reconstituir um sentido.
A vida de uma pessoa, a sua individualidade e características são como se fossem os graciosos desenhos cheios de nuances das melhores peças de cerâmica, tão frágeis e fortes em sua presença, em seu imperioso estar ali… Enquanto o mestre do Kintsugi restaura a xícara, o vaso ou a peça que se partiu, ele pensa nas tantas vezes que também “se quebrou” e no quanto a sua arte de restaurar com fios de ouro essas cerâmicas o ensinaram a restaurar a si mesmo, contornando as suas cicatrizes e imprimindo novos desenhos, símbolos de um processo de reconstrução de si mesmo.
Assim é a sabedoria do Kintsugi: o artesanato cuidadoso e atencioso (visto que não é um simples remendo) a partir dos nossos sonhos, projetos e afetos partidos em busca de “costurar” como fios dourados os interstícios que aguardam por um preenchimento nobre e significativo das marcas e cicatrizes do corpo, mas, principalmente, da alma.
Nesse trabalho repleto de detalhes, como mestres de nós mesmos, aprendemos, aos poucos, a não estigmatizar a nossa dor e a nossa história. Entendendo o que se passou, alcançamos a recuperação ou a restauração que nos coloca novamente no jogo da vida ao lado das pessoas que olharão com admiração e espanto essa obra dourada com estranhas suturas, mas tão belas em seu conjunto.
A atitude de olhar para si mesmo e entender que esse “objeto partido” pode ultrapassar a adversidade a partir do momento em que nos perguntamos: por que se quebrou? Era o destino, quebrar-se? O que isso que me ensinou? Como encaramos a adversidade? O que dizemos a nós mesmos?
A maneira como dialogamos em nosso íntimo pode nos levar à escolha de outros não percorridos caminhos, que vão valer a pena pois os “pedaços estão partidos no chão”. E esse tipo de experiência nunca é vão. Dá-nos recursos para crescermos até o nível de mestre na arte da motivação, do autorrespeito, da coragem, da deliberação, da autoaceitação e da autopreservação.
O saber manusear os “cacos” sem se cortar, colocando cada um deles em seu lugar, suturando com vagar e delicadeza, cria mentalmente o desenho que imaginamos irá refletir esse “eu” restaurado. E, ao olharmos no espelho do quarto e no espelho da alma, orgulhamo-nos do trabalho que custou dores, marcas, sofrimentos, lágrimas, frustrações e dúvidas, mas que se reflete como uma imagem de alguém ainda mais querido, valioso e mais próximo do essencial.
Assim como as obras de arte restauradas nos museus que são limpas dos resíduos que se sobrepõem à pintura, revelam um original mais criativo, saudável e condizente com os propósitos do autor.
Concluindo, a filosofia do Kintsugi fala da obra vivificada pelo trabalho meticuloso de lidar com o passado e transformá-lo em belas memórias no presente, como fruto da distância emocional capaz de reinterpretar o que aconteceu conosco e tornar graciosas as nossas cicatrizes…
Ring the bells that still can ring forget your perfect offering There is a crack in everything that’s how the light gets inLeonard Cohen