Fernando Morato
Pra trás ficou a corte, pra trás a tortura, o mundo, o grande mundo, pra trás a futura breve glória já acabada da grande Florença... pra trás ficou até a inabalável crença nalguma providência, humana ou divina... Existe alguma coisa, então, pra frente? Um vórtice de história, silencioso, entre a escolha quase cega e a fatalidade. O que resta parece ser, na realidade, o jogo de alguns dados que ninguém controla. Pelas noites me visto com roupas solenes, para encontrar meus mestres no alto do Hipocrene e discutir sozinho co’as augustas sombras que de longe nos chamam, guiam, nos assombram nas das páginas dos livros, às palavras vivas... Já de dia, muito além da solenidade, em meio aos camponeses, longe da cidade em ruínas, acompanho o verdadeiro jogo que se joga na aldeia, que diverte e logo se esquece, porque então a vida puxa à vida. Ele não reivindica a gloriosa nobreza ancestral do xadrez, que pretende sua mesa um campo de batalhas só da inteligência que controla, pondera, antecipa a iminência do xeque e que por fim decide o movimento. Até no tabuleiro há mais diversidade: com mais que duas cores, a falsa unidade do espaço se desfaz em ângulos agudos, pungentes, sanguinários ainda que mudos, ameaçando as peças que neles se esquivam. No voo aleatório do futuro néscio (semelhante ao dos átomos desse Lucrécio que copiei à mão já faz uns tantos anos) os destinos se chocam mas não são tiranos de algum caminho único, fechado ou certo. As peças se dispõem desigualmente, e então, no momento em que os dados saltam, o gamão se torna o verdadeiro tabuleiro-mundo que materializa o ensinamento profundo de que o acaso dirige a vida incerta para...