Luciana Lubiana
O que eu sabia
chegava por lábios alheios.
Quem de fato conheci,
foi por meus próprios olhos.
Cresci ouvindo relatos de família, frequentemente inflamados pelo álcool. Por vezes, esses causos também surgiam de lábios molhados por lágrimas – os de minha mãe – e não eram como as histórias que lemos em livros, das quais podemos escolher nos distanciar ou dar o tom da narrativa. Quando as ouvia, especialmente de mamãe, eu comprava na hora o enredo.
Acho que vivia tão ocupada pensando em meu pai que não notava as angústias diárias dela. As mazelas dele sempre me pareceram maiores, suas dores encontravam um jeito de me alcançar, por histórias que ouvia dos meus tios, da minha mãe ou por ele próprio, especialmente quando narrava seu cotidiano nos tempos vividos com os pais e irmãos.
De tanto ouvir tanta coisa, por anos nutri raiva de minha avó paterna, e me restam dúvidas se ainda nutro. É que eu achava difícil escutar tudo aquilo sobre ela. Minha criança só queria a vovó que a presentearia com doces, agendas e algum dinheiro em datas festivas.
Eu tinha que adorar aquela mulher, colocá-la num pedestal por ter me dado a pessoa que me foi mais cara. Mas cresci com raiva dela. Porque, mesmo sendo adorada como santa aos olhos de meu pai, em outras versões ela era algoz de mamãe, impondo situações que não desejo a nenhuma mulher. Lugares de intimidação, de silenciamento. Para alguém já carregada de traumas, tamanha violência parecia cimentar as expectativas de uma vida feliz para minha mãe.
Mas, se for confiar na memória de criança, trago uma ou outra lembrança de vovó, que morreu vítima de um câncer devastador. Eu devia ter oito anos, estava ao lado de meu irmão, andando com ela pelas ruas de asfalto nos fundos de casa. Dali dava para enxergar um mar de mato e plantas selvagens, sem indícios de mãos zelosas a lhes cuidar. Capim alto, algumas árvores de espinhos, que decidiram crescer sem encontrar impedimento. Junto ao matagal avistávamos algumas casas, espalhadas entre os enormes lotes de terra e vestígios de areia branca da praia, com pequenas conchas escondidas.
Era um dia comum, sem nada de especial. Aposto que havíamos acabado de almoçar e vovó decidiu dar um passeio com a gente. Ou… talvez estivéssemos ali para nos afastar de algum rebuliço dentro de casa.
Íamos os três, vagarosos pelo asfalto quente, meu irmão segurava um pedaço de graveto que certamente usaria mais tarde em uma de suas invenções. Eu só caminhava, mãos dadas a vovó, de cabeça baixa, como era meu costume; cabeça baixa e ombros arqueados, a postura de um corcunda. Foi assim que, em algum ponto da vida colegial, ganhei um apelido.
Olha, lá vem a corcunda!, diziam algumas crianças, hoje sem rostos, porque só lembro da zombaria.
Vovó procurava algo. Remexia o mato e olhava pelo canto do olho o pequeno portão de madeira da nossa casa. De repente, ela encontra o que busca e, como quem anuncia a hora do jantar, se abaixa junto a mim e meu irmão, numa roda de confabulação e anuncia:
“Vejam crianças, vamos comer essa plantinha, pra ver se a gente morre?“
Era uma planta rasteira, com folhas de um verde-escuro e frutos pequenos, minúsculas bolinhas pretas grudadas umas às outras, como um cacho de uva.
Essa memória nunca saiu de mim. Achava que o motivo lógico – se existiu alguma lógica ali – de vovó nos propor tamanho ato mórbido era sua própria condição. Um câncer que já lhe anunciava o fim. Mas nunca entendi por que ela precisou dividir esse desejo com a gente, o porquê do convite descabido a um evento aonde ninguém deveria querer ir, muito menos duas crianças. Por um olhar mais maduro penso que, talvez, vovó estivesse tendo uma conversa consigo mesma e foi infeliz em fazê-la em voz alta, nos envolvendo em sua insensatez desesperada.
É difícil confiar na memória, seja de quem parta. Veja bem: as lembranças que possuo de minha avó são difusas e atrapalhadas porque raramente foram minhas de verdade. Quando papai a lembrava, pintava um retrato grandioso, quase inalcançável. Uma mulher de coragem única. Forte, elegante, mãe exemplar. Eram muitos adjetivos para uma pessoa possuir.
Quantas vezes o ouvi dizer: mamãe era cozinheira de mão cheia. Vocês não sabem o que é comida boa. A gente não sabia o que era aquela comida, mas podíamos ver o desagrado de nossa própria mãe ao ouvir a ladainha de sempre. Era ela quem acordava na madrugada para fazer a marmita, e nos dar de comer o que tinha. E em sua memória, havia uma sogra algoz.
Essas foram as histórias que eu conheci, memórias terceirizadas de pessoas feridas, e precisei de um tempo para entender que não devia carregá-las como minhas, pois possuíam outros donos.
E seremos mesmo donos daquilo que lembramos? A memória me parece cada vez mais com algo que pegamos emprestado e esquecemos de devolver. Como um livro, largado num canto da casa, juntando a poeira dos anos e, quando encontrado, pode voltar ao seu dono ou ficar ali, para sempre.
Na minha família, comumente os livros eram devolvidos aos destinatários errados.