Sobre Anora

Thiago Francisco

Este texto contém SPOILERS do filme

Anora (2024), a comédia premiada de Sean Baker, começa com sua protagonista em seu ambiente de trabalho. Dançarina erótica de uma casa noturna, Ani circula pelo espaço oferecendo seus serviços, pega homens pelo braço, dança para eles — e, entre uma dança e outra, fuma com as colegas, conta piadas sobre clientes, faz suas refeições, discute com o chefe. Baker nos introduz, em poucos minutos, no universo muito particular dessa personagem com uma eficiência notável. Nesse tempo, um jovem russo chega e Ani é requisitada a acompanhá-lo. Ivan é um filho de oligarca russo que torra o dinheiro do pai com videogame, drogas e mulheres. Ani leva esse jovem para uma sala privada e durante a sua dança tira a calcinha para ele, num ato de gentileza, após uma gorjeta generosa. É quando somos introduzidos ao interesse romântico de Ani, e um dos protagonistas de Anora: o dinheiro de Ivan.

Depois desse começo, Ivan contrata Ani para serviços particulares. Eles transam, não poucas vezes, até ela ser contratada para ser namorada dele por uma semana. A sua versão contemporânea de Cinderela começa nesse instante: Ani passa a desfrutar uma vida de luxo, como nunca havia visto antes, com o seu namorado de mentira. Há um sentimento de carinho entre os dois, e ela parece realmente apreciar a companhia dele, mas o filme nunca é ingênuo em insinuar que haveria qualquer possibilidade de envolvimento entre eles se não fossem as abundantes condições materiais envolvias. Ao mesmo tempo, e ainda mais impressionante, Ani nunca é pintada como interesseira ou egoísta. Se ela fica deslumbrada com a vida de riquezas que lhe é oferecida, Baker convida os espectadores a se deslumbrarem com ela também. A sequência em que os dois jovens viajam para Las Vegas, esbanjam loucamente, usam drogas ilícitas, e, por fim, se casam irrefletidamente, é filmada com uma magia irresistível — mesmo com a indecência da riqueza de Ivan e com a certeza, cada vez mais latente, de que o sonho de Ani não deve perdurar.

E de fato, ele não dura muito tempo. A família de Ivan descobre que ele se casou com uma prostituta e enviam três funcionários (tutores de Ivan) para que anulem o casamento. Nesse momento, Anora faz uma curiosa transição de um conto de fadas subversivo para uma comédia clássica. Para demarcar essa mudança, a edição (também assinada por Baker) abandona os cortes frenéticos do primeiro ato e se torna bem mais contida e formalmente equilibrada. Curiosamente, Ani também é coberta com várias camadas de roupas nessa parte (a sua nudez era frequente, até então), e as cenas eróticas praticamente desaparecem — até a sequência final, pelo menos. É como se estivéssemos num sonho embriagado (frenético, insano, apaixonante e cheio de tesão) que gradativamente se transforma numa ressaca. A ressaca, porém, pode ser muito divertida de assistir para quem está do lado de fora.

Nesse segundo ato, o príncipe vira sapo (na verdade, apenas fica explícita a covardia e a completa falta de moralidade de Ivan) e desaparece. Ani é obrigada a encontrá-lo na companhia dos três funcionários russos (um trio que enriquece o filme comicamente) com o objetivo de anular o casamento. Ela ainda nutre alguma esperança de evitar esse desfecho, e novamente embarcamos junto com ela em seu estado de negação. Há uma resistência em aceitar a realidade após o sonho. Existem muitas situações divertidas nessa segunda metade, e Baker investiga formas de humor que seriam consideradas vulgares: uma forte dose de humor físico (sobretudo na hilária sequência da invasão) e até humor escatológico (como quando um personagem vomita dentro do carro, no meio dos outros). Aliás, Anora é um filme que parece não temer o adjetivo “vulgar”: além das várias cenas de sexo, há uma longa cena em que Ani dança com trajes minúsculos, com direito a aberturas de pernas e reboladas no chão, que parece ter sido retirada dos melhores momentos de Showgirls (1994). De modo semelhante, nenhum dos diálogos do filme é dotado de profundidade, e não há nenhuma ansiedade em cenas em que os personagens conversam sobre completas banalidades que levam a lugar algum (como na cena em que Ani e Igor discutem num restaurante). O realismo sujo de Baker, que parece um herdeiro de Raymond Carver, está interessado justamente nas banalidades e vulgaridades de vidas desprezadas e invisíveis, sem nenhum intento de forjar uma profundidade inexistente, e nem uma romantização inócua, mas extraindo humor e pathos justamente de situações corriqueiras e conversas prosaicas.

No final, a família de Ivan chega e o casamento é anulado. É um desfecho previsto desde o primeiro encontro entre Ani e Ivan (ela nunca poderia ficar com o dinheiro dele; ela nunca poderia ser parte da vida dele), mas a negação obstinada de Ani em aceitar esse desfecho gera em nós o mesmo tipo de esperança sem propósito — e o mesmo coração partido, quando Ivan diz, antes de entrarem no avião, com todas as letras, que o sonho acabou. Ani é obrigada a assinar os papeis do divórcio e concorda em nunca mais procurar Ivan. Ela fatura uma quantia considerável de dinheiro com essa brincadeira, mas nada comparado com o sonho que ela vivenciou em suas duas semanas de casada. Na cena final, ela é levada para casa por Igor, o único dos funcionários russos que sentiu algum nível de simpatia e respeito por ela. Os dois fazem sexo no carro antes de ela descer. Ani quebra em lágrimas no colo dele, ao perceber que voltou ao mesmo ponto do começo — alguém que fornece sexo como moeda de troca. A tela escurece com as lágrimas de Anora e o filme termina assim.

Entre as diversas qualidades de Anora, a maior delas é sua protagonista — e o trabalho extraordinário de Mikey Madison, merecedora de todos os prêmios possíveis. Madison encanta em cada instante de projeção: na desenvoltura das cenas de dança, no humor, no drama do segundo ato, no deslumbramento romântico do primeiro, na decepção arrebatadora dos minutos finais. A sua personagem evoca o brilho de uma protagonista de Billy Wilder em seus melhores momentos, com todo o seu charme e ambiguidade moral. E a jovem atriz, em sua mistura cativante de ingenuidade, sensualidade, personalidade forte e uma dose de histeria, traz à memória as grandes estrelas dos tempos áureos de Hollywood. Baker, porém, nunca coloca sua personagem num pedestal, e nem tenta justificá-la de forma alguma, mas tem a honestidade de filmar Ani como ela é (às vezes tola, às vezes inconstante, quase sempre explosiva). E é justamente nessa honestidade que o filme reconhece a dignidade de sua protagonista, principal razão para o seu êxito.

Sean Baker reconheceu em muitas entrevistas a sua inspiração em Noites de Cabíria (1957), de Fellini, para a criação de Anora. A inspiração é perceptível, não somente na construção da protagonista, mas também na estrutura das obras — Cabíria é um filme essencialmente episódico, enquanto Anora, apesar de uma construção mais tradicional em três atos e um epílogo, também é recheado de episódios que formam o seu todo. Os finais, no entanto, são bem diferentes. Cabíria tem um elemento religioso virtualmente ausente em Anora. Cabíria reza para a Virgem antes de sua catastrófica sequência final, clamando por uma mudança de vida. Quando ela se levanta à beira do abismo, após ser traída e abandonada, e sorri para os estranhos na estrada, ela presencia uma espécie de ressurreição dos mortos — exatamente o que ela havia rezado. Ela sorri para a vida novamente, ainda que com lágrimas nos olhos. Ani não presencia nada remotamente parecido. As suas lágrimas são de decepção, puramente, de frustração ao retornar ao mesmo lugar. Ela chora ao perceber que, para ela, sonhar não é permitido. E que, apesar de tudo, ela segue marcada, aos olhos da maioria, por uma indignidade inerente apenas por conta de seu ofício — alguém que faz sexo por dinheiro com estranhos, dentro de um carro. Ela chora porque percebe que, no final das contas, ela não é ninguém. E choramos com ela, porque, afinal de contas, não existe sentimento mais universal do que esse.

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