Revista de Cultura

Search
Close this search box.

Revista de Cultura

Search
Close this search box.

Dois contos de Ana Vargas

"The Automat", de Edward Hopper (1929)

Ana Vargas

Volta Layla

Não sei pra onde você foi, Layla. Olho pro seu rosto e ele parece o cerrado que a gente vê quando passa nas rodovias que o atravessam. Quem não conhece acha tudo feio, mas lá longe, vemos que um ipê amarelo explode suas flores, mas ele é mirrado demais e não consegue iluminar tudo. Iluminar cantos devastados é uma necessidade desse nosso mundo, Layla. Mas eu estava falando é do seu rosto, daquele seu rosto da fotografia de criança em que você está correndo quase pra fora da imagem e você tinha só três anos e estava tão alegre e vivaz que seu vestidinho vermelho aparece todo molhado e a mãe até falou “olha, a Layla até babou no vestido, olha que linda ela está aqui… correndo sem pensar em nada, só correndo…”. Nesse dia eu me lembro do piquenique e do povo que queria fotografar tudo porque havia o sol de domingo, a máquina fotográfica nova e você, aos três, com a vida escorrendo sobre o vestido… Você feliz foi conseguindo ser até os vinte e poucos, Layla… Você acreditando e querendo ou brava, mas ainda acreditando e querendo; raivosa e quebrando coisas, mas ainda sorrindo um pouco e querendo; isso foi até um pouco antes dos trinta, Layla… Você “você” era a menina que gostava de pescarias e nem se importava com aquelas minhocas horrorosas que ficavam se contorcendo enquanto eram colocadas no anzol.  Mas então, você se perdeu de “você”… Quando foi isso Layla? E por quê, Layla? Sabia que esse seu nome é por causa daquela música daquela banda de antes de você vir com seu querer pra esse mundo? As origens dos nossos nomes não significam nada quando nossas peles, unhas e pelos recobrem a estrutura morfológica destas letras que, por acaso, nos nomeiam. O seu é Layla por causa da música; o meu não interessa porque isso aqui é somente pra você. Pra “você” que hoje está em um lugar escuro da sua cabeça de mulher de quarenta. Pra você a quem nem os ipês amarelos, brancos ou azuis causam a mínima comoção na pupila desses seus olhos que sequer se movem, nem que seja um tiquinho. Layla, porque tudo ficou assim desse jeito tão ruim que você até quis não estar mais nesse mundo aqui, esse nosso, sem pais e sem um país; sem o frescor das esperanças mais bobas? Eu não sei, mas apenas te peço: volta, Layla.


The song is over – The Who

Um famoso crítico literário disse que os poemas válidos não podem ser sobre amores, tristezas ou emoções e que tudo isso é tão piegas quanto assistir a novelas ou frequentar karaokês. Isso foi dito com bastante conhecimento e seriedade por Sir John alguma coisa, um teórico inglês pós-doutor em letras imemoriais destas que devem ornamentar pântanos bem fundos ou telas de Turner. Assim, todos os que se sentiam imbuídos pelo desejo pungente de escrever poesias tinham que, obrigatoriamente, ler o manual desse tal Sir John alguma coisa… E todos liam/leram, menos ele. Menos ele, esse poeta com olhos de louco não domesticado e nariz adunco _ chamava-se Townshend _ este não se preocupou em seguir regra nenhuma e apenas escreveu e se sentou bem ali, na cadeira velhíssima que pertenceu a um parente seu morto em 1965 por implicações causadas pelo vício em cervejas irlandesas, e, ao se sentar bem ali, no final da tarde de um outono feito dos mais execráveis clichês – sóis alaranjados se pondo e uns pássaros que poderiam ser gaivotas ou andorinhas voando sobre tudo – ele escreveu sobre espaços feitos das liberdades mais ansiadas nos quais sua louca alma sedenta poderia vagar até a prostração ou a morte; sobre o amor, o vivido, o não vivido e aquele que deixa marcas arroxeadas sobre/sob a pele. E quando este poeta _ chamava-se Townshend _ deu por encerrada sua escrita de poesias desregradas, o sol há muito já havia partido e ele se sentia pacificado como deve ter sido esse nosso mundo antes de toda e qualquer civilização.

Compartilhe: