André Caramuru Aubert
a poesia que há
a poesia que há no que a pele sente quando sente
que há nela outra pele,
encostando, os corpos, a calidez, as pernas
entrelaçadas, mamilos entre dedos que apertam
(com força), a respiração. o cabelo, ora
solto, ora preso em coque, deixando ver, por inteiro,
o pescoço. e a poesia que há nos pequenos lábios, e
nos grandes. a respiração, a transpiração.
depois, o torpor. e a pele, cansada. a certeza
de que só a poesia redimirá nossos pecados
(que são muitos),
de que só a poesia nos poderá salvar.
(de A Poesia que há; Rizoma, 2023)
verbos
ergo os olhos e a cabeça, levanto os braços.
fito o horizonte. sereno, eu digo:
que venha dos céus o vento que destelhará
tua casa; do mar, venham as ondas que destroçarão
teu barco; e que tu te afogues uma, duas,
três vezes, e depois te afogues novamente; que a seca faça germinar
as pragas que te encherão o corpo de chagas e teu silo
de vermes; que em lama se desfaçam as rochas sob teus pés,
abrindo na terra as fendas por onde subirá o fogo que consumirá
a ti aos teus a tudo que é teu.
porque tudo isso são verbos, e os verbos são meus
desde o princípio são meus
porque podem ser,
porque as coisas são o que são porque são,
porque sou o que cria sou quem destrói,
porque sou bom e amoroso, o pai
porque sou o pai.
(de A Poesia que há; Rizoma, 2023)
o que eu vi
foi uma coisa grandiosa, trágica e épica. o vento
soprando de todos os lados para todas as direções,
o céu multicolorido com todas as cores, as cores da morte.
e os sons,
sons horríveis: graves estrondos e guinchos tão assim
agudos. nuvens espessas viajando feito loucas, árvores
arrancadas do solo, animais tentando enraizar-se.
cada homem um noé de olhar perdido, pois não havia arcas,
não havia socorro, não havia nada que trouxesse alívio.
animais correndo a esmo, pássaros presos ao chão. Pedras
rolando, ásperas ásperas ásperas como os poemas agrestes de
joão cabral de melo neto. chuva, enchentes e
caos. e as montanhas? até ontem sólidas como a eternidade,
agora desmoronavam como se fossem de areia.
e o galope, o louco tropel de animais e homens. tudo
isso eu vi. tudo isso.
(de Se / o que eu vi; Patuá, 2019)
de dolores haze,
nabokov teria dito, nesse
contexto, talvez,
não sou moralista,
sou artista,
e então
as cores, os sonhos, as carnes
a alma
de lolita.
(de A Poesia que há; Rizoma, 2023)