Revista de Cultura

Search
Close this search box.

O * de Esther

Marcelo Labes

Não é possível dizer que George acordou estranho porque na verdade ele nem chegou a pregar os olhos. Havia discutido feio com a esposa na noite anterior. A discussão, que havia partido do fato de ele não ter reparado no novo corte de cabelo dela, avançou para a falta de cabelo dele, e daí progrediu para os votos que haviam lido no casamento, vinte e poucos anos atrás, e como falhavam diuturnamente no compromisso do matrimônio – os filhos, os carros, a casa na praia, tudo neles era falho, e George assentia, dizia mesmo que sim, mas se não achava maneira de mudar as falhas nas coisas, tampouco seria capaz de consertar o que havia de torto em sua vida. Suas vidas.

Não foi pensando exatamente nisso que tomou café nem quando tomou assento no carro que dirigiria até o trabalho, num prédio hermético de Telavive onde pouca gente entrava, de onde pouca gente saía. Tomou mais um café na cozinha do escritório – “Será que ela disse divórcio?” –, e só então se dirigiu à sua mesa: um computador, apenas. Nenhum papel anotado, nenhum post-it, apenas a máquina e a tela diante de uma cadeira confortável. Todos os dias tomava assento ali à espera de que lhe pedissem para pôr em prática o projeto em que vinha trabalhando nos últimos onze meses.

George trabalha no Mossad, o serviço secreto internacional de seu país. É programador, e seu trabalho consiste em escrever versos em um idioma tão próprio que ninguém à sua volta jamais lhe considerará um poeta. Aquelas pessoas querem apenas o resultado, e o resultado vem depois de ele escrever muitas linhas na linguagem secreta do idioma que poucos dominam. E vem. O resultado sempre vem.

O projeto em questão consistiu num código de duas mil linhas com o objetivo final de fazer explodir baterias de pagers – como são conhecidos agora os bips dos anos oitenta – de integrantes da facção inimiga Hezbollah, situada no Líbano, país fronteiriço ao norte. Quando tinha o código pronto, embora fechado, entregou-o aos homens que vestem fardas e fazem testesQuando retornaram, disseram que George havia feito um ótimo trabalho e que logo avisariam para que tornasse o código aberto, ou seja, operável, e o colocassem em prática.

Mas os meses foram passando, e nada. Até hoje.

George estava sentado diante da tela preta quando apareceram dois daqueles homens do exército. Disseram que o primeiro-ministro estava no aguardo, que se apressasse e lhes entregasse o código. George fez que sim com a cabeça, mas antes pediu apenas para olhar novamente, não levaria tempo, a fim de ver se nada tinha saído do lugar.

É de um código que estamos falando, e os códigos são escritos em códigos, por isso tantas abreviaturas. Onde dizia >pag>, no intuito de dizer pager, George colocou >cel> porque lembrou das pernas carnudas e esponjosas da mulher. Não as detestava, mas sabia como ela odiava que ele reparasse nos buracos da celulite em suas coxas e panturrilhas e bunda. E onde o código dizia >he> ele escreveu >*e>, querendo dizer “Fuck Esther”, porque todos os códigos são escritos em inglês, e é nesse idioma que se precisa pensar a maior parte do tempo, esquecendo-se que “*” quer dizer todos. Salvou, gravou em um disquete e entregou aos dois homens. “Agora está pronto”.

O resto é história.

Ao xingar a bunda da esposa, George trocou pager por cellphone, e ao omitir o “h” – que somado ao “e” dava das iniciais de Hezbollah – e trocá-lo por um cu gráfico, ou seja, um asterisco, fez com que seu código ativasse a sobrecarga, até a explosão, das baterias de lítio em todos os aparelhos celulares de todos os países que tivessem a letra “e” ao final de seus endereços eletrônicos. Em horas diferentes do dia, por causa do fuso horário, aparelhos de celular começaram a explodir mais ou menos perto do rosto das pessoas.

Em .de (Alemanha), .ie (Irlanda), .be (Bélgica), .se (Suécia), .ne (Níger), .ee (Estônia), .ge (Geórgia), .ke (Quênia), .pe (Peru), .ve (Venezuela), .ae (Emirados Árabes Unidos), .me (Montenegro), .ye (Iêmen) e nas pequeninas ilhas de .je (Jersey) e .re (Réunion) houve mortos e feridos. Muitos feridos. De motoristas de aplicativo a crianças entretidas por vídeos coloridos no aparelho celular dos pais. De estudantes a médicos. Pelo menos dois aviões caíram. Dezenas de milhares de pessoas ficaram cegas. Milhares de casas simplesmente pegaram fogo no meio da noite. Nunca terminaram de contar todos os mortos.

Depois de ter entregado o código aos militares, George olhou no relógio: faltavam vinte para as seis. Tinha de pedir desculpas duplamente a Esther: por aquilo que nem sabia que tinha feito na noite passada e por tê-la xingado com veemência, e sem direito a resposta, num idioma que somente ele conhecia. Pensou em levar a mulher para jantar, que assim fariam as pazes, beberiam vinho e ele poderia espalmar a mão na bunda portentosa da esposa mais tarde. Mas achou o plano um tanto ousado, pelo menos naquele momento. Levaria para Esther um buquê que peônias vermelhas. Claro, peônias. Ela adorava aquelas flores.


Publicado originalmente na newsletter do escritor.

Compartilhe:

Translate