Rafael Senra
Iremos nos ater aqui a uma demarcação da história dos quadrinhos considerada como a oficial por diversos pesquisadores e historiadores. Nessa perspectiva, os quadrinhos se iniciariam em meados do século XIX, a partir de algumas publicações em jornais e periódicos, e, por isso, sua gênese estaria intrinsecamente conectada com a expansão do jornalismo. A sofisticação que possibilitou aos jornais imprimir fotogravuras e heliogravuras foi a porta de entrada para os quadrinhos e as tiras, tudo isso permitindo que a atividade jornalística se tornasse um produto rentável na sociedade industrial, fornecendo, em um só pacote, o consumo de informação, entretenimento e publicidade.
Para Román Gubern, as “literaturas de imagem” (categoria em que ele abarca tanto os quadrinhos – chamados por ele de comics – quanto as fotonovelas) são fruto da indústria cultural, e não podem ser dissociados de seu papel na cultura de massa (apesar do histórico da arte sequencial envolvendo imagens e textos anteceder o contexto da era industrial):
Tal como outras formas expressivas criadas pelos modernos meios de comunicação de massas, os comics e as fotonovelas são produtos industriais, independentemente do seu significado cultural. Isso implica que, no processo que vai desde sua criação, geralmente iniciado com a redação de um texto pelo guionista, até à difusão pública em exemplares múltiplos e em forma de papel impresso, intervêm pessoas em grande número e diversos processo técnicos. […] O comic existe enquanto tal sem necessidade de multiplicação e difusão massiva, pois de fato o produto artesanal e único surgido do pincel ou da pena do ilustrador já o é. No entanto, para que tal produto atinja o estágio da comunicação de massas, é necessário proceder à respectiva reprodução em exemplares múltiplos, função própria da indústria jornalística ou editorial. Só a partir daí sua criação assume um interesse sociológico.
Portanto, certas formas artesanais que se julgam precursoras estéticas dos comics – narrativas iconográficas sobre papiros egípcios ou cerâmica grega – carecem de interesse num estudo sociológico dessa forma expressiva (Gubern, 1979, p. 17).
Rodolphe Töpffer (Suíça, 1799-1846) é apontado por Scott McLoud como o pai dos quadrinhos modernos. Suas histórias, feitas em meados do século XIX, supostamente foram os primeiros exemplares que efetuaram uma combinação interdependente de palavras e figuras (McLoud, 1995, p. 17). Apesar disso, o próprio Töpffer assumiu seu trabalho como um hobby, talvez tomado pela noção de que a matéria prima literária seria superior aos signos imagéticos, ou por críticas como a de seu contemporâneo Johann Wolfgang von Goethe, que afirmou: “se, no futuro, ele [Töpffer] tivesse escolhido um assunto menos frívolo e se limitasse um pouco, produziria coisas além de toda a concepção” (Goethe, em McLoud, 1995). Para José Alberto Lovetro (Jal), o fato de Töpffer ser um professor e pensador, longe de ser um dado gratuito, “demonstra o quanto essa profissão tem, em suas características, não apenas formar informando mas criar novas linguagens de comunicação para sua comunicação” (Lovetro, 2011, p. 12).
Um dos pioneiros das histórias em quadrinhos em todo o mundo morava no Brasil: Angelo Agostini era um italiano radicado no país. Apesar de nem sempre ser lembrado no exterior por estudiosos de quadrinhos, o nome de Agostini batiza um dos mais importantes prêmios do gênero no Brasil (Troféu Angelo Agostini), além do fato de que o Dia do Quadrinho Brasileiro (30 de janeiro) é uma homenagem ao dia em que o autor publicou o primeiro capítulo de As Aventuras de Nhô Quim, em 1869, tida por alguns especialistas como a primeira novela gráfica em quadrinhos do mundo (Lovetro, 2011, p. 12).
Apesar das publicações desses e de outros pioneiros das HQs, como Wilhelm Busch com a série Max und Moritz, em 1865 (Lovetro, 2011), importantes críticos americanos de quadrinhos defendem que os quadrinhos nasceram nos Estados Unidos através das histórias de Yellow Kid (publicado quase 30 anos depois do Nhô Quim de Agostini e mais de 70 anos depois das publicações de Rudolph Töpffer):
Nos EUA, em 1895, era criado o personagem Yellow Kid, na verdade uma charge de um garoto de bairro periférico de Nova York que fazia crítica social. O feito desse personagem, criado por Richard F. Outcault para o Sunday New York Journal, foi a inclusão dos textos para dentro dos quadrinhos. Até então, os textos vinham separados, na parte de baixo dos quadrinhos. As falas do Yellow Kid estavam na bata que ele vestia. Anos mais tarde, essa charge se transformaria em quadrinhos. Alguns historiadores americanos logo aclamaram que aí estaria o nascimento das histórias em quadrinhos. Isso por ser a primeira vez que o texto entrou dentro dos quadrinhos. É o mesmo que dizer que o cinema mudo não é cinema. Sabemos bem que os americanos reivindicam para si muitas coisas como, por exemplo, a invenção do avião. Não seria diferente com as ditas HQs (Lovetro, 2011, pp. 12-13).
Poucos anos depois de Yellow Kid, surgiriam iniciativas esteticamente mais ousadas, como Little Nemo in Slumberland, uma tira lançada em 1905 por Winsor McCay. Esse trabalho é considerado ainda hoje como um dos mais altos momentos da história dos quadrinhos, inovando ao introduzir elementos de perspectiva, figuração, além de influências do layout da art nouveau, tão em voga na época. Foi uma das primeiras ocasiões em que um autor de quadrinhos tentava realizar algo mais pretensioso e elaborado artisticamente. Paralelo a todo esse contexto (e dialogando com ele), ocorre o que Waldomiro Vergueiro define como uma tendência naturalista dos quadrinhos feitos no início do século XX, pela qual os “traços estilizados e o enfoque predominantemente cômico” das primeiras tiras de jornais davam lugar a desenhos que arriscavam “uma representação mais fiel de pessoas e objetos, ampliando o seu impacto junto ao público leitor” (Vergueiro, 2012, pp. 10-11).
Para Claude Moliterni, até mesmo o nome comics alude a um aspecto mais cômico que permeou as narrativas sequenciais em seus primeiros vinte anos. Paralelo à crise norte-americana da bolsa de Wall Street, surge o primeiro comic realista, Tarzan, de Harold Foster (a data do surgimento do personagem é controversa; Moliterni afirma, como a maioria dos estudiosos de quadrinhos, que Tarzan surgiu em 1929; Moliterni, em Gubern, 1979, p. 10). Contudo, em um artigo que busca desvendar erros em pesquisas sobre o gênero, Sérgio Codespoti afirma que o verdadeiro surgimento de Tarzan foi em novembro de 1928, na revista Tit-Bits. Dois meses depois, houve o lançamento nos EUA, o que pode ter gerado a ambiguidade sobre o dado (Codespoti, 2014).
Nessa época, histórias de aventura tornam-se a nova tendência dos quadrinhos, e personagens como Tarzan, Flash Gordon, Buck Rogers e outros alcançam amplas vendagens (Lovetro, 2011, p. 13). Essa época é considerada como o início da Era de Ouro dos quadrinhos, impulsionadas pelo surgimento de um novo formato para a comercialização das histórias, emancipando-as do suporte jornalístico. Agora, os quadrinhos eram publicados periodicamente em comic books, denominação que foi abreviada para comics e, no Brasil, essas revistas ficaram conhecidas como gibis (Vergueiro, 2012, p. 11). Por causa dos papéis baratos e do tamanho reduzido das revistas, foram também chamadas de pulp magazines, denominação que não perdurou e que, na verdade, acabou marcando as publicações dos anos 20 e 30, aludindo aos personagens e temáticas próximas a gêneros como aventura e ficção científica. Os heróis de máscara e fantasia, como o Fantasma, Mandrake e outros, sinalizavam uma nova tendência.
Nessa mesma época, os quadrinhos europeus não tiveram tanta expressão, resumindo-se a histórias como Les Pieds-Nickelés, com textos ilustrados e desenhos, que não podiam ser consideradas como comics. Só anos depois autores belgas surgiram com personagens e histórias que conseguiram uma expressão tão considerável quanto as republicações de HQs norte-americanas na Europa. Os maiores exemplos disso são Tintin, de Hergé, e Spirou, de Robert Velter (Moliterni, em Gubert, 1979, p. 12).
Em junho de 1938, a revista Action Comics lança um personagem que se tornaria o fundador definitivo de elementos essenciais para o arquétipo do super-herói de quadrinhos. Criado por dois autores judeus, Jerry Siegel e Joe Shuster, o Superman tornou-se um enorme sucesso, inspirando personagens como o Capitão Marvel (Shazam), Marvelman e tantos outros. Em Superman, podemos observar características que passavam a definir todo o gênero dos super-heróis, como uniformes, identidades secretas, supervilões, e, claro, superpoderes – o que diferenciava os personagens pós-Superman daqueles que surgiram nas primeiras revistas pulp. Apesar de a demanda por super-heróis ter incentivado a criação de personagens como Lanterna Verde, Mulher Maravilha, Capitão América e tantos outros, foi um personagem baseado nos antigos quadrinhos pulp que acabou rivalizando com a popularidade do Superman: o Batman, criado por Bob Kane em 1939, e que, em vez de superpoderes, combatia o crime com armas de fogo (poucos anos depois, essa característica das armas seria substituída por uma infinidade de apetrechos tecnológicos).
Alguns apontam que o fim da Era de Ouro dos quadrinhos ocorreu quando histórias de terror e suspense passaram a angariar altas vendagens e dominaram uma parte considerável do mercado das comics. Porém, o evento que definitivamente iria interromper a ascensão da indústria de HQs na primeira metade do século XX aconteceu em 1954, ano da publicação do livro A sedução dos inocentes, do psiquiatra alemão Fredric Wertham. Ao se radicar nos Estados Unidos, Wertham pretendeu impulsionar sua carreira defendendo a tese de que os quadrinhos eram veículos maléficos para os jovens norte- americanos. De acordo com Waldomiro Vergueiro,
Generalizando suas conclusões a partir de um segmento da indústria de revistas de histórias em quadrinhos – principalmente as histórias de suspense e terror – e dos casos patológicos de jovens e adolescentes que tratou em seu consultório, ele investiu violentamente contra o meio, denunciando-o como uma grande ameaça à juventude norte-americana (Vergueiro, 2012, p. 11).
Entre as ideias defendidas por Wertham, estava a de que a parceria entre os personagens Batman e Robin poderia levar os jovens ao homossexualismo (sic) ou a de que as leituras das histórias de Superman poderiam incitar as crianças a tentar imitar o herói e saltar da janela de seus apartamentos (Vergueiro, 2012, p. 12). O estudo do psicanalista cativou a atenção de alas conservadoras da sociedade norte-americana, como associações de professores e grupos religiosos, que se mobilizaram contra as histórias em quadrinhos. A consequência disso foi a criação do “Comics Code”, uma política que criava regras morais estritas que condicionavam a publicação e veiculação das revistas em quadrinhos. Na capa de cada revista, era estampado o selo do código, garantindo que aquela revista tinha “qualidade” para ser consumida. Diversos países, incluindo o Brasil, se inspiraram nessa iniciativa, elaborando também seus mecanismos de controle de conteúdo das histórias em quadrinhos. Isso não só comprometeu gravemente o conteúdo das histórias (uma vez que os autores e as editoras não poderiam ferir as normas do código), mas também “fez com que qualquer discussão sobre o valor estético e pedagógico das HQs fosse descartada nos meios intelectuais, e as raras tentativas acadêmicas de dar algum estatuto de arte aos quadrinhos logo seriam encaradas como absurdas e disparatadas” (Vergueiro, 2012, p. 13).
É nesse contexto moralizante que se inicia a chamada Era de Prata dos quadrinhos. Antigas editoras de terror e suspense, como EC Comics, passaram por apertos financeiros, enquanto outras, como Harvey Comics, aproveitaram para focar em personagens infantis, como Riquinho e Gasparzinho (Jackson e Arnold, 2007). Os quadrinhos de super-heróis, contudo, iniciam uma ascensão ainda maior, principalmente ao reformular personagens da Era de Ouro como Flash, Lanterna Verde e outros. A Marvel Comics, por sua vez, consegue um amplo destaque ao introduzir personagens novos, cujas temáticas pareciam representar um novo salto na identificação do público leitor com os super-heróis. Os casos mais notáveis são os de personagens como Homem Aranha (que cativava os jovens ao mostrar um jovem estudante universitário tímido que, ao vestir sua máscara, tornava-se um bem humorado e corajoso vigilante mascarado) e X-Men (um grupo de mutantes tentava sobreviver e combater o crime a despeito da perseguição pública que sofriam; o contexto das histórias desse núcleo de personagens chegou a ser comparado com os dilemas das minorias representativas, como os gays, negros, mulheres etc.).
Foi também nos anos 1960 que surgiram os Underground Comix, quadrinhos independentes editados pelos próprios autores. O pioneiro desse movimento foi o norte-americano Robert Crumb, seguido por autores como Gilbert Sheldon e David Sheridan, entre muitos outros. As revistas muitas vezes eram xerocadas e vendidas pelos próprios autores na rua (algo parecido com o modelo da “geração mimeógrafo” brasileira e também com o que depois viria a ser chamado de fanzine). A feitura semiartesanal das revistas refletia muito o espírito hippie que também inspirava o conteúdo das histórias, com elementos psicodélicos, fantásticos, caricatos e quase sempre questionando o status quo e as instituições dominantes.
Ao longo dos anos 1970, inicia-se a Era de Bronze dos quadrinhos norte-americanos, em que as histórias em quadrinhos buscavam um amadurecimento em diversos aspectos. Não só as temáticas das histórias eram mais adultas, mas também houve bem sucedidas tentativas de se vender quadrinhos em formatos mais bem acabados. Com a obra Um contrato com Deus, Will Eisner populariza o formato graphic novel, que evocava o acabamento costumeiramente dado a produtos literários: capa dura, histórias longas (também chamadas de “romances gráficos”) e ausência de conteúdos publicitários. Na ocasião, Eisner afirmou que o nome e o formato das comics não se adequava à obra, que, apesar de ser em quadrinhos, não se pautava pelo humor (Patati e Braga, 2006).
Em uma entrevista publicada em 1979, Claude Moliterni fala do contexto dos quadrinhos europeus nessa mesma época. Assim como nos Estados Unidos, havia autores europeus que buscavam um tratamento mais refinado tanto para o texto quanto para a imagem. Ele cita Hugo Pratt (autor de Corto maltese) como um quadrinista vinculado à tradição literária de Melville e de Stevenson, Jean-Claude Forest (autor de Barbarella e Hypocrite), e até mesmo autores como Guido Crepax e Jules Feiffer (Moliterni, em Gubert, 1979, p. 12).
Mas o movimento de quadrinhos que talvez mais tenha reverberado nessa época veio de um coletivo intitulado Humanoides Associados (Les Humanoïdes Associés). Tratava-se de um grupo de jovens artistas que se inspiravam na independência do Underground Comix, mas sofisticando e elaborando alguns aspectos editoriais e, principalmente, artísticos. Juntos, artistas como Jean Giraud (mais conhecidos como Moebius), Phillipe Druillet, Bernard Farkas e Jean-Pierre Dionnet criaram a antológica Metal Hurlant, conhecida em todo o mundo como Heavy Metal Magazine. Boa parte dos artistas cujos trabalhos figuravam na revista se tornavam estrelas mundiais dos quadrinhos, sobretudo a partir de 1977, quando ela ganha uma versão publicada nos Estados Unidos. No Brasil, diversas revistas, como Chiclete com Banana, Porrada e Animal, tentam adaptar o estilo da publicação francesa (até mesmo republicando algumas histórias de seus autores, como Moebius ou o espanhol Alfonso Azpiri).
Nos anos 1970, temáticas adultas começaram a despontar também nos quadrinhos de super-heróis. O divisor de águas nesse aspecto aconteceu em 1973, quando a personagem Gwen Stacy, que era a namorada de Peter Parker na revista Spider Man, amarga uma trágica morte nas mãos do vilão Duende Verde. Para Arnold Blumberg, esse é o evento mais lembrado pelos fãs de quadrinhos da época e significou o fim da inocência que parecia caracterizar as histórias de super-heróis. Em um artigo de 2003 intitulado “The Night Gwen Stacy Died: The End of Innocence and the Last Gasp of the Silver Age,” fica claro já pelo título que esse evento teria sido o marco zero da Era de Bronze dos quadrinhos (Blumberg, 2003).
Outros marcos relevantes desse aspecto envolvem as histórias politicamente incorretas que os autores Denny O’Neil e Neal Adams executavam com os personagens Lanterna Verde e Arqueiro Verde, e mesmo a publicação de Conan, o Bárbaro, HQ com grandes doses de violência e erotismo.
Nos anos 1980, o realismo das HQs de super-heróis torna-se ainda mais intenso e sofisticado e boa parte das histórias parece empreender uma verdadeira desconstrução do gênero. Graphic novels como The Dark Knight e Watchmen apresentam heróis em contextos mais humanizados: envelhecidos, doentes, fora de forma física, com falhas de caráter e inseridos em tramas cada vez menos maniqueístas.
Esse realismo não foi uma tendência apenas nas editoras de super-heróis. Em 1986, são publicados os primeiros capítulos da graphic novel Maus, do autor estadounidense Art Spielgelman. De origem judia, ele conta a história de seu pai na luta pela vida em meio ao Holocausto e os campos de concentração. Apesar de se situar no gênero biográfico, Maus foi agraciada com o Pulitzer e, por isso, a obra foi tida por muitos teóricos como o primeiro exemplar de jornalismo em quadrinhos (na verdade, o escopo do prêmio é mais amplo, contemplando pessoas de destaque nas áreas de jornalismo, literatura e música). Mas é em 1996 que surge efetivamente o gênero do jornalismo em quadrinhos, com a publicação de Palestina, do autor e jornalista Joe Sacco. Diferente do mero enfoque jornalístico ou do uso de interfaces com o real, o jornalismo em quadrinhos de autores como Sacco ou Lefrève envolve o uso da linguagem quadrinística efetivamente a serviço de uma reportagem (Santos e Cavignato, 2013, p. 215).
É necessário mencionar que, apesar de o jornalismo em quadrinhos ter se tornado uma tendência explorada de maneira mais aprofundada a partir dos anos 1980, é possível detectar outros momentos da história dos quadrinhos em que o meio foi utilizado para fins jornalísticos. O já citado ítalo-brasileiro Angelo Agostini é exemplo disso: em 1885, ele retratou um acidente ocorrido na estrada de ferro de São Paulo, mostrando uma sequência em que os frades de um seminário local socorriam os feridos (Santos e Cavignato, 2013, p. 212).
Esse processo mais realista na indústria dos quadrinhos que se inicia entre as décadas de 1970 e 1980 só foi possível devido a uma flexibilização do código de ética dos quadrinhos, o Comics Code. Além de a própria associação reguladora do código ter passado por uma revisão que o tornou menos rigoroso, diversas editoras passaram a ignorá-lo ao longo dos anos. Em 2011, as editoras que ainda seguiam o código, como DC, Archie e Bongo, anunciaram que não iriam mais veiculá-lo na capa de suas publicações (Assis, 2011).
Ao longo desses anos, houve uma valorização do caráter autoral dos quadrinhos. Os editores começaram a perceber que, se antigamente os fãs compravam um título apenas por causa dos personagens, agora cada vez mais a procura pelas revistas implicava nos autores responsáveis pelo seu conteúdo. Ainda que em alguns casos a comunidade de leitores (tanto nos EUA quanto no Brasil) pautasse boa parte de seu consumo segundo iniciativas editoriais específicas (como colecionar algumas sagas e minisséries), ficou cada vez mais claro que o sucesso de um título, a médio e a longo prazo, dependia do staff de autores. Em uma pesquisa quantitativa publicada pelo revista O Grito em janeiro de 2015, alguns leitores deveriam responder qual era o motivo principal que os motivava a comprar uma HQ. A maioria deles (76%) respondeu que era por causa do(s) autor(es), principalmente roteirista e desenhista (Silvestre, 2015).
A valorização do aspecto autoral começa a se fortalecer a partir dos anos 1980 como uma consequência do sucesso das graphic novels e de alguns premiados arcos de histórias. Ao longo da década, autores como Frank Miller, Neil Gaiman, Alan Moore e tantos outros se tornaram verdadeiras estrelas do gênero. Enquanto nos anos 1980 os roteiristas (em sua grande maioria britânicos, no que ficou conhecida como a “Invasão Britânica dos Quadrinhos”) tiveram maior evidência, os anos 1990 foram dominados pelos desenhistas. Artistas como Jim Lee, Todd McFarlane, Joe Madureira e outros se transformaram em ícones dos quadrinhos norte-americanos. Devido à sua enorme fama, esses ilustradores decidiram abandonar seus empregos nas editoras Marvel e DC e abraçar uma nova e coletiva iniciativa. Fundada em 1992, a Image Comics já exibia no nome que seu grande trunfo envolvia o acabamento gráfico das revistas, desde a diagramação, os layouts e, naturalmente, os desenhos. Diversos roteiristas elogiados trabalharam com a Image, que acabou por se firmar como a terceira maior editora norte-americana (Gabilliet, 2010, p. 149).
Paralelo a toda a sofisticação temática e gráfica pela qual o mercado de quadrinhos passou, o gênero passou a gerar um interesse que foi além da crítica especializada e dos leitores mais fiéis. Depois de anos de rótulos, como o de ser um passatempo infantil ou um veículo de deformação do caráter dos jovens, os quadrinhos finalmente se tornaram objeto de estudos sérios e aprofundados, que faziam justiça a suas possibilidades comunicativas. Desde meados dos anos 1960, intelectuais e teóricos tidos como vanguardistas começaram a perceber nos quadrinhos o que diversos artistas de outras mídias já tinham constatado. Marshall McLuhan, que foi um dos pioneiros nesse aspecto, fez a seguinte observação: “Picasso gostou durante muito tempo dos comics americanos. A intelligentsia, de Joyce a Picasso, prestou atenção à arte popular americana porque nela viu uma reação autenticamente imaginativa contra as formas oficiais” (McLuhan, citado em Gubern, 1979, p. 23). De acordo com Waldomiro Vergueiro,
O desenvolvimento das ciências da comunicação e dos estudos culturais, principalmente nas últimas décadas do século XX, fez com que os meios de comunicação passassem a ser encarados de maneira menos apocalíptica, procurando-se analisá-los em sua especificidade e compreender melhor o seu impacto na sociedade. […] O despertar para os quadrinhos surgiu inicialmente no ambiente cultural europeu, sendo depois ampliado para outras regiões do mundo. Aos poucos, o “redescobrimento” das HQs fez com que muitas das barreiras ou acusações contra elas fossem derrubadas e anuladas. De certa maneira, entendeu-se que grande parte da resistência que existia em relação a elas, principalmente por parte de pais e educadores, era desprovida de fundamento, sustentada muito mais em afirmações preconceituosas em relação a um meio sobre o qual, na realidade, se tinha muito pouco conhecimento. A partir daí, ficou mais fácil para as histórias em quadrinhos, tal como aconteceu com a literatura policial e a ficção científica, serem encaradas em sua especificidade narrativa, analisadas sob uma ótica própria e mais positiva. Isto também, é claro, favoreceu a aproximação das histórias em quadrinhos das práticas pedagógicas (Vergueiro, 2012, p. 17).
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Referências
ASSIS, Érico. Selo do código de ética é completamente abolido por editoras de quadrinhos. Omelete. 25/01/2011. BLUMBERG, Arnold T. The Night Gwen Stacy Died: The End of Innocence and the Birth of the Bronze Age. Reconstruction: Studies in Contemporary Culture, vol. 3, nº 4, 2003. CODESPOTI, Sérgio. Pesquisar quadrinhos: uma tarefa ingrata e desanimadora. Universo HQ. 10/07/2014. GABILLIET, Jean-Paul. Of Comics and Men: A Cultural History of American Comic Books. Mississipi: University Press of Mississippi, 2010. GUBERN, Román. Literatura da Imagem. Biblioteca Salvat de grandes temas. Rio de Janeiro: Salvat Editora do Brasil, 1979. JACKSON, Kathy Merlock; ARNOLD, Mark D. Baby-Boom Children and Harvey Comics After the Code: A Neighborhood of Little Girls and Boys. ImageText – Interdisciplinary Comics Studies, vol. 3, nº 3. Florida: University of Florida, 2007. LOVETRO, José Alberto. Origens das histórias em quadrinhos. História em Quadrinhos: um recurso de aprendizagem. Ano XXI, Boletim 01. Brasilia: TV Escola, abril de 2011. MCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. PATATI, Carlos. BRAGA, Flávio. Almanaque dos Quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. SANTOS, Roberto Elísio dos. CAVIGNATO, Deise. A renovação da linguagem jornalística no jornalismo em quadrinhos. Revista de Estudos da Comunicação, vol. 14, nº 34. Curitiba: PUCPR, maio/agosto 2013. SILVESTRE, Jota. Quem é o leitor brasileiro de quadrinhos? Coluna "Papo de Quadrinhos" de 30 de janeiro de 2015. Revista O Grito. VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: BARBOSA, Alexandre. RAMOS, Paulo. VILELA, Túlio. RAMA, Angela. VERGUEIRO, Waldomiro (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2012.
Este texto é uma versão ligeiramente modificada da tese de doutorado do autor, que pode ser encontrada aqui.