Grande Mar Oceano

Jean Baptiste Debret, "Vista do Theatro São João do Rio de Janeiro"

Leonardo Almeida Filho

Rio de Janeiro, janeiro de 1788

Há algumas horas aguarda na escuridão. É madrugada sobre a cidade. Faz um calor tremendo, mas uma brisa insiste em passar correndo. As ruas vazias, escuras e silenciosas. Um cachorro latindo ao longe, outro respondendo aqui perto onde ele aguarda pacientemente. Confere a lâmina da faca que traz à cintura. Passou parte do dia afiando-a meticulosamente, testando seu fio, cortando-se no teste. Encostado ao muro de uma casa, ele observa os últimos clientes de Manuel Gago embriagando-se, sorrindo alto, cuspindo no chão. Seus olhos embaciados e vermelhos concentram-se na figura obesa de um português falastrão que cambaleia em direção à rua. O suor lhe escorre pela testa, o coração aos pulos. A tensão crescendo em suas veias. O homem vem em sua direção sem perceber sua presença. Ele se encosta ao muro, quase sem respirar, puxa a faca e se prepara para o bote. A vítima, visivelmente embriagada, não percebe que ele se aproxima por trás. Ei, porco, ele fala. O homem, irritado pela ofensa, se volta e reconhece seu algoz. Negro safado, ele não teve tempo de terminar a frase, sentiu a faca perfurar seu umbigo. Um gemido abafado. Hora de morrer, desgraçado. Puxou a faca para cima, na direção do peito, abrindo-lhe o ventre. O homem, ferido de morte, caiu no chão estrebuchando, como fosse realmente um porco sacrificado. O assassino ainda cuspiu sobre ele, antes de sair às pressas, mergulhando na escuridão quente daquela noite de janeiro.

Brasília, dezembro de 1971

Invadiram a sede da empresa no Setor Comercial Sul. Sem qualquer gentileza, homens usando óculos escuros e escuras intenções procuravam por dois funcionários, engenheiros do Departamento de Estrutura e Cálculo. Chegaram, como sempre nessas incursões, sem aviso, chutando porta e honra, humilhando, aterrorizando. Salvador, assustado com a ação daquele pequeno comando da repressão, ficou de longe observando a movimentação. Diziam que o Sr. Alberto, o mais velho deles, chefiava um núcleo do Partido Comunista na cidade satélite de Taguatinga. Onde está esse cidadão? Berraram. É um homem perigoso, afirmaram. Mentira! Não existe pessoa mais doce, mais humana, mais fraterna que o Sr. Alberto. Pergunte a qualquer um e vão lhe dizer o mesmo, reagiu Dona Maria, a copeira. Deram-lhe um safanão sem qualquer respeito pela sua idade e ordenaram que mantivesse a boca fechada. Quanto ao Sr. Diniz, afirmavam, a acusação era a de integrar um grupo guerrilheiro. Ele é o braço visível de um grupo radical de esquerda que assalta bancos, ouvi daquele que parecia chefiar a operação ao conversar com o Chefe do nosso Departamento. Ora, pensei, o Diniz é o sujeito mais calmo que conheço. Vida regrada, mulher, filhos, cachorro. Não tem tempo nem para acompanhar os jogos do seu Flamengo na televisão, avalie integrar aparelho comunista. Papo furado dessas antas. Há muito disse-me-disse nessa história toda, o que de concreto existe nessa ação é que agora podemos ter a certeza de que há gente da ditadura infiltrada na empresa. Disso desconfiávamos há tempos. Gente que anda bisbilhotando a vida da gente. Há dedo-duro por aqui, tremeu Salvador. Ele conhecia o Sr. Alberto e sabia, sim, que ele promovia reuniões do Partido em sua casa. Ele mesmo, Salvador, havia sido convidado algumas vezes a participar dessas reuniões e gentilmente se desculpara alegando falta de tempo. Vou numa próxima reunião, ele prometera sem vontade de cumprir. Além do mais, andava muito cansado ultimamente. O médico aconselhara que se aposentasse. Se quiser viver mais alguns anos, retire-se, seu coração está pedindo descanso. Salvador não levou em consideração o conselho e agora pagava o preço dessa recusa. Subir um lance de escada era tarefa extenuante. Não podia e nem queria deixar o trabalho. Mariana temia pela saúde do marido, mas não se metia em suas decisões. Era um homem com os dias contados, assim se julgava Salvador. A morte está logo ali na primeira esquina e vai me alcançar com a sua mão fria, chova ou faça sol. Respirar profundamente é coisa complicada, os pulmões parecem ter encolhido, uma tortura só. No fim do dia o corpo parece implorar por uma cama e uma longa noite de sono. Seu Alberto se entregou sem protesto, em silêncio, não era a primeira vez que o detinham. O Diniz tentou se esconder no banheiro das mulheres e de lá o retiraram à força, sob protestos, palavras de ordem. Abaixo a ditadura, ele gritava a plenos pulmões. Levou umas boas pancadas e saiu arrastado. O chefe daquela quadrilha de malfeitores do Estado tentou explicar que era apenas uma entrevista no comando do exército, nada sério, alguns esclarecimentos, coisa de praxe. Identificou-se como Tenente Jair, mas quem se arriscaria a duvidar do sujeito?  Quem não deve, não teme, disse um dos homens, o mais escroto deles. Filhos de uma puta, pensou Salvador. Esses safados andam torturando, matando, e têm a desfaçatez de achar que não sabemos. Pobre senhor Alberto, pobre senhor Diniz. Teve vontade de intervir na detenção, de chamar os colegas para uma reação. Imaginou-se subindo na mesa e conclamando todos para uma revolta. Mas nada. Era só vontade e muita impotência. De que adiantaria? O destino daqueles homens já estava nas mãos do Estado, em seus caninos. O que restava a Salvador se não o silêncio e as horas vertendo peçonha em seu dia a dia? O rebanho, assustado pela presença de uma serpente, reage imediatamente, se espalha, afasta-se, berra e, ausente o perigo, volta a pastar mansamente, em silêncio, abanando a cauda. Ali estavam todos pastando em suas mesas, seus grampeadores, máquinas de datilografia e máquina fotocopiadora de enormes plantas e projeções. Quase mugindo, a secretária voltou a anotar as ligações para o Chefe do Departamento: Novacap, boa tarde. Salvador foi à copa, Dona Maria chorava em silêncio, lavando xicaras e copos. Um café, seu Salvador? Disse enxugando as lágrimas com as costas da mão ensaboada. Por favor, Dona Maria, assentiu. Ficaram em silêncio cultivando suas dores, abanando suas caudas.

Rio de Janeiro, março de 1808

Anastácia não dorme direito há algum tempo. Acorda assustada. Sempre foi uma criatura muito sensível, impressiona-se facilmente com qualquer coisa. Tem medo de assombração. Andam dizendo que a Onça, uma tal Bárbara dos Prazeres, fez outra vítima, o filho caçula de um alfaiate da Rua do Piolho. Encontraram a criança com a garganta cortada, amarrada a uma árvore, lá para os lados da Rua da Vala. Pobrezinha. Um anjinho. A cidade anda assustada. Nas esquinas, vielas, casas de pasto, no comércio, não há outro assunto. Dizem que é uma bruxa e que bebe o sangue das crianças para viver eternamente. Contaram-me que veio de Portugal ainda nova, com o marido, exatamente como eu. Aqui, enrabichou-se pro lado de um negro malando e matou o marido, passando a viver com o assassino. Depois de traída pelo amante, que lhe roubou tudo que tinha, passou a prostituir-se lá pras bandas do arco do Teles. Dizem que foi uma mulher bonita e tinha muitos clientes. A doença alcançou sua juventude e consumiu sua beleza. Perdeu seus clientes, passou a pedir esmolas. Contam que os bruxos ciganos lhe ensinaram o feitiço que a mantém jovem e bonita: sangue de inocentes. É o que dizem pelas ruas. Ela mata crianças e bebe o sangue. Cruz credo. Rezo muito para que a prendam. Pedro diz que ela costuma andar à noite, pelos becos escuros, procurando vítimas. Disse que sempre leva uns doces para enganar os miúdos que encontra. Desde o incêndio, evito passar no arco do Teles, lá se vão bem quinze anos ou mais. Aquele lugar fede demais, cheio de mendigos muito sujos e doenças e feridas. Muita gente ruim se esconde por ali. Malandros, ladrões, assassinos de aluguel, negros fugidos, capoeiristas. Um horror. A vinda da Corte parece não ter adiantado muito. A podridão continua. Todo o embelezamento que fizeram para receber a Rainha e o Príncipe Regente é falso, vai sumir com as chuvas. Coisas bonitas, mas sem serventia alguma. Foi Pedro que chegou correndo dando a notícia, dizendo que um grumete do brigue “Voador”, que chegou em janeiro, confidenciou-lhe que a Corte estava de mudança para o Brasil. A cidade andou muito excitada desde então e o vice-rei tratou de dar jeito nas ruas mais esburacadas, nas casas mais feias e em ruínas, enfeitando o largo, pintando os prédios do Paço. Mas nem tudo correu tão sorridente para nós do Rio. O pior foi marcarem as melhores residências com as iniciais P.R., que significa Príncipe Regente, denunciando aquelas que seriam desapropriadas para abrigar gente da Corte. Nessas horas é bom habitar longe dos olhos gordos da realeza, uma praga de gafanhotos. P.R. significa, para todos nós, Ponha-se na Rua. Isso sim. Penso que se a vinda de toda nobreza para o Rio de Janeiro significar o bem da cidade, ótimo, mas a primeira impressão é a de que chegará um bando de parasitas que vem sugar nossas economias, comer nossa comida e tirar nosso sossego, dormir em nossas camas. O que de melhor me aprouve nessa história toda foi ter reencontrado, quase cinquenta anos depois de o haver perdido, o meu irmão Gaspar. Gloria a Deus, gloria a Deus! Julgava que há muito estivesse morto em algum lugar do grande mar oceano. Que surpresa! Montei uma barraca com comida perto do porto, para aproveitar a chegada de tantos marujos. Mantenho sempre uma banca com comida ali por perto, pois os esses homens do mar sempre chegam famintos das longas viagens. Nesse dia, um deles chamou-me a atenção. Cabelos grisalhos, grande entradas na testa queimada de sol, mancando de uma perna, barba enorme, com uma fome sem tamanho, me pareceu familiar. Devia ter uns sessenta anos e surpreendentemente ainda na lida nas embarcações. Fiquei observando seus modos, seu jeito. Ele em silêncio, muito concentrado em devorar numa volúpia tremenda um pedaço de pão, um bolo. Suas feições não me eram estranhas. Quem era aquele homem, meu Deus? A memória foi acordando devagar e de repente, num estalo, deparei-me com o vulto de meu pai. O tal marinheiro lembrava-me o velho Pedro Sapateiro. Perguntei-lhe o nome: Gaspar, dona, disse-me cuspindo farelos. Então era ele, o meu Gaspar, meu irmão. Não me reconheceu à primeira vista, mas eu desabei em lágrimas, assustando-o. Um milagre encontrá-lo vivo. Segurei-o pelos braços, sou eu, sua irmã, não me reconhece? Ele ficou me observando desconfiado, mas num primeiro momento não parou de mastigar o bolo de milho verde que lhe dei. Ficou me olhando, da cabeça aos pés, muito atentamente. Lúcia? Sim, sim, eu gritei num alegria sem controle, Lúcia dos Prazeres, filha de Pedro Sapateiro e Maria do Pote. Ele sorriu, exibindo uma boca sem dentes na frente. Salve, salve, Jesus menino, se não é a minha irmã, meu sangue. Abraçou-me estabanadamente. Fedia como um cão molhado. Contou-me que viera ao Rio outras vezes, em diversas outras naus, no tráfico de negros, comércio de azeite, de vinho, tecidos da Inglaterra, e agora numa nau inglesa que acompanhava a frota real. Disse-me ter passado, há uns cinco anos, uma temporada em Cabo Frio, no trabalho de recuperação de uma nau inglesa em que servia como contra-mestre. Devia estar beirando realmente uns sessenta anos, era um velho. Como ainda aguentava o trabalho pesado nessas embarcações? Fiquei pensando e querendo saber tudo sobre sua vida, suas viagens. Levei-o para casa. Banhou-se e fez a barba, ganhando nova cara. Pus a mesa, servi-lhe pão, carne, ovos. Tudo lhe descia pela garganta como se nela houvesse um poço sem fundo. Sua fome parecia não ter fim. Não tem vinho nessa esparrela? Ele brincou. Anastácia trouxe uma garrafa de vinho e entregou-lhe. Com a sede dos séculos, bebeu no gargalo, em goles enormes, deixando verter um pouco de vinho pelo canto dos lábios, manchando-lhe a camisola. Vendo-o ali a devorar a comida e a embriagar-se, pensei em como o tempo varre a face das pessoas, sulcando-a, costurando feridas de amor, de desencanto, de medo, desenhando cicatrizes. Meu irmão tornou-se um velho alquebrado e lembra-me muito meu finado Pedro Sapateiro, miúdo e curvado, na beira da partida. Perguntei-lhe sobre a perna manca. Disse-me que esteve entre a vida e a morte quando caiu do caralho de um navio durante uma tempestade. A queda rendeu-lhe muito sofrimento, costelas quebradas, a perna partida, dentes perdidos. Já faz tempo, Lúcia. Sobrevivi, ele me disse sorrindo. Sou um sobrevivente, minha irmã. Perdi a conta de quantas febres superei, quantas batalhas, quantas lutas, quantas feridas sérias cicatrizaram, quantas demoraram pra fechar e ficaram porejando, latejando, me fazendo tremer de frio. Hoje, apesar de minha idade, ou mesmo por causa dela, deixam-me ir nos navios por que sabem que conheço cada parte dessas embarcações, da quilha ao mastro. Conheço, como ninguém, o grande mar oceano, suas manhas, seus arroubos, sua mansidão. Sei o movimento de cada corrente marinha, conheço cada canto escuro onde se ocultam corais, pedras pontiagudas que afundam embarcações. Reconheço portos seguros, lugares de mansidão e de terror. Perguntou por Salvador e quando lhe contei sobre a sua morte não lamentou, restringiu-se a dizer: Deus o tenha! Senta, mulher! Ele me falou, apontando para o banco. Fica aqui do meu lado. Sentei-me e fiquei a observá-lo atentamente, notei que estava levemente embriagado. Era um homem bonito este meu irmão, um jovem viçoso quando lhe vi pela última vez. Tinha quinze anos quando sumiu de casa. Foram avisar a meu pai que ele partira numa embarcação para Goa. Agora, tornara-se aquele fiapo calejado de homem, sem dentes, coxo. Falava pausadamente, como se estivesse muito cansado. Dei voltas ao mundo, ele começou a divagar, falando sem olhar para nós. Vi coisas que a maioria de vocês nunca verá. Maravilhas e desgraças. Montanhas de gelo no extremo sul, como gigantes brancos e tremendos num silêncio assustador. Nenhum cristão passa impunemente por ali. O vento uivando nos paredões de gelo e nos envolvendo num frio extremo. Animais estranhos deitados sobre a neve, numa algazarra com milhares de pássaros de longas asas. Muito belos. Ondas gigantescas nas costas da África que faziam os navios parecerem cascas de nozes e nossos corações a dispararem de terror. Vagalhões que nos empurravam em direção a costa, às pedras, ao desastre. Homens chorando, rezando, desesperados. Vi cidades douradas na China, belos edifícios e suas cúpulas brilhando ao sol. Milhares de pessoas pelas ruas largas e limpas da grande cidade do imperador chinês. Gentes de todas as cores, tamanhos. Eu vi, eu vi. Negros enormes e reluzentes em Angola, homens da cor de canela em vestes de linho costuradas com fios de ouro, mulheres de olhos verdes de esmeralda e corpos esculturais, crianças, mil crianças. Vi coisas, Lúcia, que, se pudesse, preencheriam livros e livros de escritura e tudo pareceria inventado. Quem acreditaria? Coisas belas e muito feias também. Maravilhas e desgraças, ele repetiu. Pode me arranjar outra, minha boa negra? Virando a garrafa seca na direção de Anastácia, que correu para providenciar mais vinho. Vi a morte em diversas situações, continuou, suas mil faces funestas. Estive em naufrágios e batalhas. Naufraguei com a nau Santo Alberto nas costas de Moçambique e ouvi os gritos desesperados de homens se afogando. Isso não se esquece nunca, é estarrecedor. O gemido de quem, ferido, sabe que está perto de ir-se irremediavelmente. Ah, como dói em nós a morte alheia, minha irmã. Pensava nas mães, esposas, filhas, irmãs, irmãos desses homens prestes a adentrar o mistério. Ah, minha irmã, quanto do sal do grande mar não se deve às lágrimas de Portugal? Dormi extenuado numa enorme praia branca, ao luar, ao lado de dezenas de corpos frios. Como somos iguais aos peixes que sucumbem na praia. Que diferença pode haver entre corpos sem vida se a mesma carne é pasto dos mesmos vermes? Um brinde aos mortos que nos faz ser quem somos. Ele levantou desajeitadamente o copo e bebeu de uma vez. Abaixou a cabeça. Nem sempre fui, só, sabe? Tive uma esposa em Goa. Jovem, carinhosa, pele quente, olhos negros puxados, cabelos lisos. Tive por pouco tempo. Ela me fez muito feliz e por causa dela cheguei a pensar em abandonar o mar, montar casa, criar raiz, gerar filhos, mas a morte a levou no parto, junto com meu filho, e o oceano me chamou de volta. Não me arrependo de nada do que vivi, Lúcia. O mar me ensinou tudo que sei. Aprendi coisas que só a experiência poderia ter me ensinado. Coisas que em lugar algum se pode aprender ou ensinar. Nem em Coimbra, nem no Porto ou Lisboa. Aprendi pra dentro de mim que tudo está ligado, nada está solto. As coisas do mundo estão costuradas por uma teia invisível. Uma só casa é o mundo. Um só povo somos no mundo. Todos sangramos igualmente, o índio, o negro, o padre, o contra-mestre, o grumete, o rei, o papa, todos sangramos igualmente, amamos igualmente e desejamos igualmente. A fome que tortura o marinheiro é a mesma que inferniza o soldado e escravo nos navios. O desejo que nos consome, a mim, a ti, é o mesmo que se esconde sob os hábitos, sob as coroas, no claustro, no Paço, no palácio, nas tribos… ele parou por instantes. Achei que ia dormir. Tornou a divagar. O que nos une é o mar, o grande mar oceano. A onda que bate aqui nas praias brancas de São Sebastião do Rio completa-se naquela que morre na praia escura da ilha inglesa e na outra que oscila no mar de Goa e mais uma que balança os barcos no extremo sul da África e outra que lambe com espuma as costas da América do Norte. É a mesma, entende? Uma enorme rede de água salgada ligando tudo, como uma manta líquida que cobre o coração quente de um gigante adormecido. A maré que sobe e baixa aqui é a mesma que sobe em Calicute, que baixa em Barcelona e sobe em Veneza e baixa em Cabo Verde. É a mesma. O mar que molha teus pés ali no porto é o mesmo mar que o Tejo beija em nossa Lisboa. Tudo está ligado, minha irmã. Inventaram nomes para aquilo que é uma e mesma coisa. O Grande Mar Oceano nos une a todos… a todos…une. Ele foi apagando como uma vela. A voz sumindo, a frase cortada ao meio. Dormiu como se estivesse morto, uma pedra. No dia seguinte, logo cedo, partiu. Despediu-se, apesar de meus apelos para que ficasse por uns tempos, descansasse. Estás velho, Gaspar. Fica. Tu podes me ajudar no comercio, preciso de um braço como o teu, meu irmão. Inutilmente insisti para que não ingressasse na tripulação do navio que partia para Angola. Disse-me que não tinha raízes para fincar na terra, que seu lugar era o mar. Tenho que ir, Lúcia. Meu coração está muito feliz em te ver bem, minha irmã. Foi-se, sumiu no fim da rua mancando e fiquei definitivamente só. Passa da meia noite, estou cansada deste dia que parece não terminar. Anastácia rola na cama, na certa tem pesadelos com a bruxa Bárbara, a onça.

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