A luz demais: sobre Frankenstein (2025)

Miguel Forlin

Há cineastas que, ao longo da carreira, constroem a reputação de artesãos meticulosos, de criadores cuja imaginação visual suplanta fragilidades narrativas. Guillermo del Toro, apesar do entusiasmo que seus seguidores lhe atribuem, sempre oscilou entre o impulso de criador fabular e certa propensão à obviedade simbólica. Em Frankenstein (Idem, 2025), essa ambivalência não apenas se mantém como se expõe sem pudor. O filme parece querer, a todo instante, reafirmar a sua importância temática, a sua ambição emocional, a sua relevância contemporânea — e é justamente essa ânsia por significação que o leva a resvalar no didatismo, no sentimentalismo e, sobretudo, na previsibilidade.

O que poderia ser uma releitura rica do romance de Mary Shelley se converte em uma espécie de estudo dramatizado sobre traumas paternos, repetição cíclica da violência e busca pela redenção — temas válidos em si mesmos, evidentemente, mas tratados de maneira tão insistente, tão sublinhada, tão ansiosa por reconhecimento moral, que ficam esvaziados de potência. Del Toro escreve e dirige com a postura de alguém que não confia no espectador; tudo precisa ser explicado, reiterado, iluminado e depois lembrado. O resultado é um filme cuja espessura emocional jamais se realiza plenamente porque a superfície — retórica, imagética, estrutural — está sempre interferindo no que deveria emergir com naturalidade.

O eixo central da narrativa é a relação entre Victor Frankenstein (Oscar Isaac) e a Criatura (Jacob Elordi). Del Toro insiste em estabelecer paralelos entre o gesto de criação científica e uma dinâmica familiar falida, em que o pai transforma o filho em depósito de expectativas, frustrações e crueldades herdadas. Essa equivalência — Criador como pai abusivo, Criatura como filho coagido à perfeição — possui a sua legitimidade dramática, mas é apresentada com tamanha obviedade que o filme raramente alcança nuances verdadeiras.

Victor Frankenstein é retratado menos como um cientista movido pela curiosidade ou pela hýbris intelectual — dimensão essencial do mitológico Frankenstein — e mais como uma figura emocionalmente castrada, cuja rigidez e agressividade são explicadas pela figura de seu pai: um médico renomado que projetava sobre o filho a mesma violência pedagógica hoje repetida compulsivamente por Victor sobre seu Monstro. Mas essa repetição, em vez de surgir organicamente, é exposta como argumento, como tese, como um conceito dramatizado com pouca sutileza.

A Criatura, por sua vez, encarna todas as dores, frustrações e falhas que Victor se recusa a admitir em si próprio. Elordi trabalha fisicalidade e fragilidade de maneira admirável — e ainda assim o filme não lhe permite estabelecer um arco psicológico complexo. O Monstro, aqui, torna-se menos uma criatura descoberta pelo mundo e mais um paciente submetido a terapias traumáticas, como se del Toro enxergasse a narrativa apenas mediante lentes psicologizantes contemporâneas. Não há estranhamento filosófico, não há terror cósmico, não há desajuste existencial: há, sobretudo, a simplificação do mito a uma metáfora terapêutica.

O filme estabelece, com clareza quase ensurdecedora, que a violência intergeracional é o grande inimigo moral da história. A mensagem, contudo, é menos sugerida do que proclamada. A cada ato, a cada virada narrativa, o roteiro insiste em explicitar que apenas amor, compaixão e perdão podem romper o ciclo abusivo. Essa insistência tem o efeito contrário ao desejado: esvazia a densidade simbólica do tema e transforma a narrativa em um panfleto emocional.

Quando del Toro afirma, pela enésima vez, que “o verdadeiro monstro é Victor”, não está apenas ecoando a leitura já clássica da obra, mas reduzindo-a a um slogan previsível. Não há descoberta para o espectador; há apenas confirmação. Não há nuance; há reforço. É como se o diretor temesse que o público não fosse capaz de interpretar o que está diante de seus olhos — temor esse que o leva a sublinhar moralmente todos os acontecimentos da história.

Essa ansiedade em ser compreendido transforma a jornada emocional do filme em um itinerário telegráfico e esquemático. A progressão do enredo — agressão, trauma, tentativa de redenção, recaída, esperança — obedece a uma fórmula tão rígida que o filme parece se adaptar não ao mito literário, mas ao manual emocional de uma sessão didática sobre saúde mental. Nada contra a preocupação com o trauma; o problema é a falta de risco formal, a incapacidade de permitir que o espectador participe da criação de sentido.

Se a relação central é tratada com excesso de explicações, o restante do elenco praticamente não existe como entidade dramática. Nenhum personagem coadjuvante — absolutamente nenhum — é desenvolvido além do mínimo funcional. Todos entram em cena com papéis pré-determinados: facilitar uma descoberta, impedir um avanço, provocar uma crise, fornecer uma informação expositiva, criar uma ponte narrativa. E então desaparecem. Não deixam marcas, não possuem complexidade, não influenciam o imaginário do filme.

Essa ausência de personagens secundários robustos não é mero detalhe estrutural; é sintoma de uma visão cinematográfica que não confia no mundo diegético. O universo criado por del Toro parece existir apenas para reforçar a trama emocional de Victor e da Criatura — e tudo o mais, desde cenários até figuras humanas, é sacrificado no processo. Há, aqui, um empobrecimento claro: o mito de Frankenstein sempre se beneficiou de sua rede social, política, filosófica. Essa rede, reduzida a um punhado de figurantes com falas ocasionais, compromete a densidade da adaptação.

A previsibilidade não surge apenas da obviedade temática, mas também da maneira como del Toro organiza o roteiro. O filme progride como se estivesse cumprindo uma lista de requisitos:

  • Cena de origem traumática.
  • Conflito ético entre Criador e Criatura.
  • Repetição ampliada da violência paterna.
  • Momento de culpa.
  • Catarse emocional previsível.

Essa mecânica enfraquece qualquer senso de descoberta. Quando se descobre qual é o “objetivo” moral do filme — e isso ocorre nos primeiros vinte minutos — cada ato subsequente perde força dramática. Nada surpreende, nada desafia, nada rompe o fluxo esperado. O espectador passa a assistir não a uma narrativa, mas a uma execução obediente de uma tese.

A consequência dramática é devastadora: o filme fica tediosamente previsível. Não existe o terror existencial do romance original, não existe a angústia metafísica que caracterizou algumas adaptações anteriores, não existe o mistério. Existe apenas a enésima história sobre traumas familiares — tema não apenas saturado no cinema contemporâneo, mas aqui explorado sem as arestas necessárias para transformar repetição em reinvenção.

Visualmente, o filme revela outro problema: a incapacidade de conciliar artesanato prático com o abuso de CGI. Apesar da presença de próteses, objetos e cenografias físicas, o filme cede a uma dependência exagerada de efeitos digitais que sufocam a materialidade. Tudo parece revestido de um brilho plástico, como se tivesse passado por uma camada de verniz digital destinada a impressionar à primeira vista, mas incapaz de sustentar fascínio.

A artificialidade não é apenas estética; é conceitual. Ao recorrer ao CGI para intensificar atmosferas e ações, del Toro compromete justamente aquilo que tornou alguns de seus trabalhos anteriores minimamente interessantes: a sensação de que suas criaturas e ambientes tinham peso, textura, presença. Aqui, tudo se parece com um catálogo visual, um museu de cera eletrônico em que as formas deslumbram brevemente antes de se dissolver na superficialidade.

Esse excesso de efeitos também evidencia certa desconfiança do próprio diretor na força de sua narrativa e de seu elenco. É como se temesse que a história, por si só, não bastasse; que precisasse ser “encorpada” por imagens grandiosas ou ambientes digitalmente inflados. Essa insegurança formal revela-se como um dos maiores obstáculos do filme.

Despojando Frankenstein de sua retórica moralizante, de seus efeitos exagerados e de sua narrativa previsível, restam apenas fragmentos de força dramática. Alguns olhares de Oscar Isaac, alguns momentos de vulnerabilidade de Elordi, alguns planos em que a atmosfera gótica quase se impõe — quase. Mas o filme raramente permite que esses lampejos cresçam. Eles são imediatamente recobertos pela camada didática que domina a obra.

Victor não é complexo: é explicado.

O Monstro não é enigmático: é diagnosticado.

A relação entre ambos não é ambígua: é programada.

Essa redução sistemática das possibilidades simbólicas transforma um mito literário inesgotável em um drama contemporâneo genérico sobre pais e filhos problemáticos. É pouco para Shelley, é pouco para o próprio cinema de terror, e é pouco mesmo para o melodrama que o filme deseja ser.

O caso desse Frankenstein não é isolado. Insere-se em uma tendência clara do cinema que busca prestígio crítico: a transformação de narrativas clássicas em estudos psicológicos sobre trauma, abuso, cura e reconciliação. Essa tendência raramente oferece algo novo; na maior parte das vezes, recicla fórmulas emocionais reconhecíveis, esperando que a seriedade do tema substitua a ousadia formal.

Del Toro, aqui, não rompe com essa lógica; apenas a executa com zelo excessivo. A tragicidade da criação de Frankenstein, que deveria remeter à relação entre ciência e ética, entre ambição e responsabilidade, entre liberdade criativa e destruição, é comprimida em uma leitura estreita sobre paternidade tóxica. Não que tal leitura seja ilegítima, mas, isolada e sem dialogar com os demais níveis da obra, empobrece um mito que sempre viveu de ambivalências.

Ao final, o filme parece querer garantir que todos os espectadores tenham a mesma interpretação — e isso é exatamente o oposto do que um mito literário demanda.

Frankenstein (2025) não é desastroso — mas é raso onde deveria ser profundo, e grandiloquente onde deveria ser sutil. É um filme que tenta significar demais e consegue significar pouco. Tenta emocionar, mas emociona apenas nos momentos em que esquece a sua tese. Tenta revitalizar um clássico, mas o rebaixa ao didatismo de um seminário psicológico. Tenta ser íntimo, mas se perde em efeitos digitais. Tenta ser trágico, mas tem medo do silêncio.

O resultado é um produto cinematográfico que se leva mais a sério do que deveria, mas que não leva a sério o suficiente a sua própria complexidade. Há ambição — mas há também hesitação, redundância e certa ingenuidade estética. E é irônico que uma obra construída sobre a ideia de um Criador que falha na tentativa de produzir vida plena pareça ela própria um organismo incompleto, uma criatura feita de partes que não dialogam entre si.

Talvez esse seja o verdadeiro espelho que o filme oferece — não aquele entre Victor e a Criatura, mas o espelho que nos devolve a imagem de um cinema contemporâneo que, obcecado por relevância moral, esquece-se de sua força mais simples: a capacidade de sugerir, inquietar, deixar sombras.

Frankenstein (2025) não permite sombras.

E sem sombras, não há mito.

Há apenas luz demais — e nada mais opaco do que o excesso de luz.

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