Miguel Forlin
A estética da neutralização: como os streamings assassinaram a linguagem cinematográfica (parte 2 de 3)
Se, no primeiro ensaio, tratei da destruição estrutural, econômica e institucional do cinema promovida pelos streamings, aqui é preciso avançar para o coração do problema: a linguagem. Pois nenhuma indústria que realmente respeite uma arte começa por destruir as suas instituições; começa por destruir a sua forma. A Netflix — e, em menor grau, os demais streamings produtores de “conteúdo original” — compreenderam isso com uma clareza assustadora. Não foi preciso censurar, proibir ou interditar o cinema. Bastou esvaziá-lo por dentro, torná-lo reconhecível demais, confortável demais, inofensivo demais. Bastou transformar a linguagem cinematográfica em um produto neutro, padronizado, intercambiável, moralmente asséptico e visualmente anódino.
O resultado está diante de nós: uma produção audiovisual massiva em que filmes parecem trailers de outros filmes, em que imagens parecem rascunhos de imagens, em que roteiros parecem preenchimentos automáticos de formulários narrativos, em que o cinema — essa arte fundada no risco, na ambiguidade, no silêncio, na duração e no olhar — foi reduzido a um ruído elegante de fundo. Nunca se produziu tanto audiovisual com tão pouco cinema dentro.
O cinema sempre se redefiniu a partir de suas tecnologias. O som não foi apenas uma adição; foi uma reconfiguração ontológica. A cor não foi um adorno; foi um novo regime sensorial. O widescreen não foi capricho; foi resposta histórica à televisão. O digital, no entanto, especialmente na forma como foi apropriado pelos streamings, não produziu uma nova linguagem: produziu uma regressão estética.
O problema não é o digital em si. Cineastas como Michael Mann, David Lynch, David Fincher, Tsai Ming-liang, Apichatpong Weerasethakul ou Jean-Luc Godard (em sua fase tardia) demonstraram que o digital pode ser radical, inquietante, instável, poético. O problema é o uso corporativo, econômico e preguiçoso do digital, transformado em padrão industrial.
A Netflix consolidou um visual que se tornou imediatamente reconhecível — e imediatamente esquecível. Uma fotografia lavada, excessivamente iluminada, pensada não para a sala escura, mas para telas de celulares vistas em ambientes claros. Um uso obsessivo de câmeras digitais de altíssima resolução que paradoxalmente elimina qualquer textura. Um cinema sem grão, sem sombra, sem mistério. Um cinema que tem medo do escuro.
Um dos sinais mais evidentes da pasteurização da linguagem cinematográfica promovida pelos streamings é a dissolução do enquadramento como decisão ética e moral. No cinema clássico e no cinema moderno, enquadrar era escolher. Escolher o que mostrar e, sobretudo, o que excluir. Cada enquadramento carregava uma visão de mundo, uma hierarquia de valores, uma tomada de posição.
No cinema produzido sob a lógica da Netflix, o enquadramento é frequentemente apenas funcional. Ele existe para “entregar informação”, para garantir que o espectador não perca nada, para assegurar que tudo seja visto, entendido, reconhecido. Não há mais fora de campo ameaçador, não há mais ausência significativa, não há mais invisível.
A câmera não toma partido. Ela se comporta como um funcionário obediente, registrando eventos de maneira limpa, clara e politicamente neutra. Mas não existe neutralidade no olhar. Toda imagem que se recusa a escolher já escolheu: escolheu não incomodar.
A “imagem Netflix” não quer ser vista; quer ser compreendida instantaneamente. Não quer sugerir; quer informar. Não quer provocar; quer tranquilizar. Cada plano é desenhado para não incomodar, não confundir, não exigir reaprendizado do olhar. A imagem deixa de ser experiência e se torna interface. O cinema, a arte do que escapa, passa a ser a arte do que se explica sozinho.
Uma das maiores violências cometidas contra a linguagem cinematográfica pelos streamings é a obsessão pela legibilidade. Tudo precisa ser claro. Tudo precisa ser decodificável. Tudo precisa ser compreendido sem esforço, sem contexto, sem silêncio, sem ambiguidade. Planos longos são vistos como risco. Elipses são vistas como defeito. Silêncios são tratados como falhas de ritmo. Ambiguidades são percebidas como ameaças à retenção do espectador. O resultado é um cinema que não confia no olhar de quem assiste — e, ao não confiar, forma espectadores cada vez menos capazes de olhar.
O roteiro, nesse contexto, torna-se um instrumento de controle absoluto. Não há mais espaço para o acaso, para o gesto inexplicável, para o plano que existe por si. Tudo precisa “servir à história”, entendida não como construção dramática, mas como fluxo narrativo contínuo e ininterrupto, sem zonas mortas, sem respiração, sem resistência. O cinema vive daquilo que não se diz. Os streamings vivem do excesso de explicação. Personagens verbalizam sentimentos que antes seriam encarnados no corpo, no gesto, no enquadramento. Conflitos são anunciados antes de serem sentidos. Temas são sublinhados com a delicadeza de um martelo. Não há confiança no espectador porque o espectador deixou de ser sujeito; tornou-se usuário.
O roteiro de um filme produzido para a Netflix raramente é escrito; ele é preenchido. Trata-se de uma dramaturgia por checklist, em que cada elemento precisa cumprir uma função previamente estipulada por relatórios de desempenho, métricas de engajamento e testes A/B invisíveis. Há um arco emocional obrigatório. Um ponto de virada cronometrado. Um clímax projetado para maximizar a sensação de encerramento, não de inquietação. Um final que não ecoa, não reverbera, não deixa ferida — apenas encerra. O conflito nunca pode ser radical demais. O mal nunca pode ser estrutural demais. A violência nunca pode ser verdadeiramente traumática. A dor precisa ser administrável; a experiência, controlada.
Esse modelo não é apenas narrativamente pobre; ele é politicamente conservador. Pois, ao contrário do que sugere o discurso progressista das plataformas, um cinema que elimina conflito real, ambiguidade moral e tensão irresoluta não emancipa ninguém. Ele apenas ensina a suportar o mundo tal como ele é. O cinema pode ser perigoso porque detém o poder de mostrar aquilo que não se encaixa. O cinema dos streamings mostra apenas aquilo que já está previsto.
Poucos fenômenos foram tão mal compreendidos — e tão cinicamente instrumentalizados — quanto a incorporação de pautas identitárias pelo cinema de streaming. Em tese, tratar-se-ia de uma abertura histórica: mais vozes, mais experiências, mais narrativas. Na prática, o que ocorreu foi a mercantilização da diversidade, convertida em selo de qualidade moral e, sobretudo, em ferramenta de blindagem crítica. A diversidade não aparece como tensão, como conflito, como reconfiguração formal da linguagem, mas como camada decorativa sobre estruturas narrativas absolutamente burocráticas e acadêmicas.
Personagens pertencentes a grupos historicamente marginalizados passam a ocupar o centro da cena — mas a cena continua sendo filmada, escrita, montada e ritmada segundo os mesmos códigos normativos e publicitários de sempre. Muda-se o corpo; preserva-se a (não) forma. E é a forma que importa. O politicamente correto, nesse contexto, funciona como anestésico. Ele substitui o risco estético por um conforto moral. Filmes passam a ser elogiados não pelo que fazem com a linguagem, mas pelo que representam. A crítica estética é desarmada em nome da boa intenção. Cria-se, assim, um cinema moralmente higienizado e artisticamente covarde.
Outro efeito devastador dos streamings sobre a linguagem cinematográfica é a eliminação do lugar. Filmes produzidos em países distintos, com culturas distintas, histórias distintas e conflitos distintos, passam a compartilhar a mesma gramática visual, o mesmo ritmo, o mesmo vocabulário narrativo. Um filme “brasileiro” da Netflix se parece mais com um filme “coreano” da Netflix do que com qualquer tradição cinematográfica brasileira ou coreana. O local vira cenário exótico; a linguagem permanece globalizada.
Essa homogeneização não é fruto de diálogo cultural, mas de padronização industrial. Trata-se de tornar os filmes exportáveis, facilmente consumíveis em qualquer território, desprovidos de especificidade formal que possa gerar estranhamento. O streaming transformou o cinema em uma arte do não lugar.
A montagem, outrora coração pulsante da linguagem cinematográfica, foi transformada em mera ferramenta de fluidez. O objetivo não é criar sentido, choque, pensamento ou fricção, mas não ser percebida. Cortes invisíveis, ritmo constante, ausência de variações radicais de tempo: tudo conspira para manter o espectador em estado de consumo contínuo. O tempo do filme se adapta ao tempo do algoritmo, não ao tempo da experiência. Não há mais filmes lentos nem rápidos; há filmes constantes. A constância é o inimigo da intensidade.
Nada resume melhor o projeto estético dos streamings do que a palavra “conteúdo”. Conteúdo é aquilo que pode ocupar qualquer recipiente. Conteúdo não tem forma própria; adapta-se ao suporte. Conteúdo não exige atenção; exige apenas presença. Chamar cinema de conteúdo é esvaziá-lo de sua história, de sua gramática, de sua natureza simbólica. É reduzi-lo a mais um item no fluxo interminável da economia da atenção. Quando tudo é conteúdo, nada é cinema.
Defensores dos streamings gostam de repetir que “nunca houve tanta liberdade criativa”. O argumento é risível. Liberdade criativa não se mede pela quantidade de títulos produzidos, mas pela diversidade real de formas, ritmos, estruturas e experiências propostas. O que vemos é o oposto: uma produção massiva que simula diversidade enquanto reforça um único modelo estético. A liberdade existe apenas dentro de um cercado. É permitido falar de tudo, desde que não se filme de maneira diferente. É permitido representar tudo, desde que se narre do mesmo jeito. O que sai ganhando é a superfície: superfície visual, superfície moral, superfície narrativa. Um cinema que parece profundo apenas porque evita o vazio absoluto, mas que nunca toca o abismo. Tudo é bem feito. Tudo é correto. Tudo é aceitável. Tudo é esquecível.
Há ainda um dado mais inquietante — e talvez mais grave — nesse processo de padronização: o chamado “estilo Netflix” já não se limita aos filmes produzidos ou financiados pela própria empresa. Ele se alastrou como uma gramática dominante, contaminando obras que sequer pertencem à plataforma, infiltrando-se em produções independentes, em coproduções internacionais, em filmes feitos para salas de cinema que já nascem com cara, ritmo, fotografia e dramaturgia de streaming. Trata-se de uma hegemonia estética que ultrapassa a marca corporativa e se impõe como norma invisível, fazendo com que cineastas passem a filmar como se estivessem sendo avaliados por um algoritmo, como se a legibilidade excessiva, a fotografia neutra e o roteiro pasteurizado fossem pré-requisitos universais de circulação. O resultado é um empobrecimento ainda mais profundo: o cinema passa a se autocensurar formalmente antes mesmo de ser capturado pelas plataformas, internalizando seus vícios e antecipando sua domesticação.
No fim das contas, o maior triunfo da pasteurização promovida pelos streamings não está nos filmes, mas nos espectadores que ela produz. Um público acostumado à repetição, à previsibilidade, à ausência de risco. Um público treinado para confundir conforto com qualidade, representatividade com profundidade, clareza com inteligência. Esse espectador não exige mais cinema. Exige apenas que o próximo filme seja parecido com o anterior — mas não idêntico demais a ponto de gerar tédio. Uma variação controlada dentro do mesmo molde.
O algoritmo venceu.
No entanto, o cinema sempre foi maior do que a indústria que tentou domesticá-lo. E, se ainda houver alguma chance de sobrevivência, ela passará necessariamente por uma ruptura com esse modelo de neutralização estética. O cinema não desapareceu. Ele sobrevive como ruína. Uma ruína habitada por formas antigas esvaziadas de sua força original. A câmera ainda se move. O corte ainda acontece. O roteiro ainda estrutura conflitos. Mas tudo isso funciona como simulação. O streaming não destruiu a linguagem cinematográfica; ele a mumificou. O efeito mais cruel desse processo é a formação de um espectador que já não sente falta de nada. Um espectador que nunca experimentou o silêncio radical, o plano insuportável, a duração excessiva, a imagem indecifrável. Como sentir falta do que nunca se conheceu?
É importante ressaltar que este ensaio não é um lamento nostálgico. É uma recusa. Uma recusa à ideia de que esse empobrecimento seja inevitável. Uma recusa à ideia de que o cinema precise se adaptar à lógica dos streamings para sobreviver. Uma recusa à ideia de que a linguagem cinematográfica deva ser sacrificada em nome da conveniência. O que resta é resistir à neutralização. Defender a opacidade. Defender o erro. Defender o risco. Defender o cinema que falha, mas falha tentando algo impossível. O cinema não precisa ser confortável. Precisa ser artístico.
A Netflix não criou essa estética por ignorância. Criou por eficiência. Criou porque funciona. Criou porque lucra. Criou porque molda espectadores dóceis, satisfeitos, previsíveis. Mas toda estética eficiente é inimiga da arte, e cinema é arte — justamente por isso, é intolerável para qualquer sistema que dependa da padronização. Ele é artesanato humano antes de ser produto, gesto antes de ser métrica, decisão antes de ser cálculo. Cada grande filme nasce de uma escolha singular, de um olhar que insiste, de um talento que não pode ser reproduzido em escala, de uma personalidade que não se submete a formulários. O cinema vive da destreza, da inteligência formal, da sensibilidade e da visão autoral, de escolhas conscientes que não cabem em relatórios nem se deixam reduzir a padrões estatísticos. É exatamente isso — o fator humano, irrepetível, subjetivo, criativo — que a padronização odeia, combate e tenta apagar. Porque onde há personalidade, não há submissão; onde há estilo, não há algoritmo; onde há criação, não há neutralização possível.