Vera Saad
I
Talvez não houvesse medo. Talvez Antônio não sumisse do mapa e tudo fosse diferente se Collor não tivesse se candidatado e ganhado as primeiras eleições diretas após um longo período de ditadura militar. Já reescrevi algumas vezes nossa história, de quando as ruas eram cobertas por flores de piúva. Cerrávamos os olhos, o roxo sob as pálpebras, aparvalhadas por aquele tempo seco, ocasião em que nossos pais discutiam política ao redor de uma mesa larga. Meu tio tinha uma voz grossa, que se sobrepunha à figura pequena da cunhada. “À merda com Collor!”, gritava. Ríamos baixo, próximo à árvore da calçada.
Collor acabava de ser vaticinado como caçador de marajás pela revista Veja. Era matéria de capa, chamava de marajás os funcionários públicos que ganhavam quantias exorbitantes. Não entendíamos o que eram marajás, mas aprendemos a odiá-los. A matéria era grande, muitas fotos de um candidato até então obscuro, mas que ganhava popularidade.
Política era o assunto preferido de nossa família. Todos se exaltavam, enquanto minha prima e eu nos ocupávamos em manter fechado o portão da casa para que a cadela Halley não fugisse. Batizaram-na de Halley por causa do cometa. Ambos apareceram no mesmo dia, no céu e no batente da porta.
Minha prima, dois meses mais velha, mantinha-se no comando, como se os meses a mais lhe garantissem um conhecimento que eu nunca teria. Eu não questionava tal liderança. Admirava Maira como a uma irmã mais velha, ainda que, por vezes, eu fosse a única das duas a saber o que estávamos fazendo.
* * *
Vivíamos um tempo bastante difícil, quando a inflação alcançava mais de três dígitos no ano. Nada era certo para nós. José Sarney, vice-presidente de Tancredo Neves, assumiu o poder após a morte prematura do futuro presidente. Futuro, pois Tancredo não havia sequer tomado posse quando faleceu. Sarney tateava com números e promessas. Lançou o Plano Cruzado para estancar a inflação; conseguiu, no máximo, mudar o nome da moeda, que mudaria novamente com outros planos, todos malogrados. A inflação aumentava de modo incontrolável.
Meu pai gostava de me contar uma fábula para dormir, que repetia todas as noites, como se a me ensinar algo daqueles dias. A fábula em questão era a da cigarra e da formiga. Ele contava uma versão diferente da original, vim a descobrir depois. Na versão que narrava, a cigarra tentava aliciar a formiga a cantar e dançar durante o verão em vez de trabalhar. Atenta ao que acontecia, a rainha das formigas conseguiu dissuadir a operária da ideia, convencida de que era preciso guardar comida para o inverno. Eis que chegou a estação. Enquanto as formigas estavam bem agasalhadas e nutridas, a cigarra morria de frio e fome. Eu achava a história cruel, mas disfarçava o que pensava balançando a cabeça, pronta a dizer “Que bonita a história”, como forma, acreditava eu, de demonstrar algum carinho por meu pai.
Ele agradecia me chamando de Bianca, por causa do desenho com os dois ratinhos que eu adorava, e em seguida dizia que a fábula nos lembrava de que devíamos trabalhar duro e economizar se quiséssemos sobreviver no inverno. Sempre depois de contá-la, me olhava sério, não respondia quando eu lhe perguntava sobre o inverno quente dos trópicos, e apenas reafirmava a necessidade de guardar. Eu, do meu lado, compreendia um pouco da fábula quando íamos ao supermercado e víamos as mercadorias mudarem de preço num mesmo dia. Guardar é preciso, viver não. Ocorre que papai não soube economizar, e, quando foi demitido, nos vimos sem dinheiro, sem casa. Tínhamos a tristeza das formigas misturada ao azar da cigarra.
Fomos morar com minha avó, que nos acolheu sem muita vontade. Não que deixasse de ser educada com o filho e com a neta. Quando me via, sorria, encurvava o corpo, me dizia algo do cabelo que aos poucos crescia, algo do corpo que tomava forma, mas voltava-se, em seguida, ao cansaço de uma mãe envelhecida demais para receber de volta filho e família. Implicava ainda com a nora. Não eram brigas declaradas; algo pior, mamãe ouvia calada comentários hostis sobre tudo que fizesse. Se estivesse sentada, a sogra notava como logo perdia o ânimo. Se limpasse a casa, a outra observava como era lenta com o rodo. Se começasse a se arrumar para o trabalho – minha mãe, a única a trabalhar fora naquela casa –, o tempo em frente ao espelho era contado em voz alta.
Meu pai não se intrometia, no máximo acalmava as duas ao mesmo tempo. Apenas eu tomava partido. Tinha como vantagem a idade, que aproxima os dois extremos, crianças e velhos. Éramos feitas da mesma complacência, minha avó e eu. Permitiam-nos dizer o que não dizem os adultos. Aos dez anos, eu era capaz de anunciar que não gostava de minha avó. A coragem de uma criança remanescia em mim junto à voz fina, protegida nas ancas largas dela, que, mesmo alvo das ofensas, impedia meu pai de me bater, afinal eu ainda era um bebê. Também a ela eram permitidas as alfinetadas, afinal quem brigaria com uma senhora da sua idade?
Assim seguimos por algum tempo, entre ofensas e silêncios. Estranhos naquela casa que minha avó dizia ser nossa. “Um jeito de não ficar muito só”, me falava e lembrava do vô, que morrera havia um ano. Nessas horas eu a olhava com mais carinho. Era uma figura alta, com os quadris largos, desproporcionais ao resto do corpo. Gostava de vestir bege, usava panos dourados compridos ao redor do pescoço e um lencinho bordado com suas iniciais. Tinha o cabelo grisalho todo puxado para trás, o que lhe aumentava a testa e lhe puxava os olhos pequenos. Ainda era bonita, mas criança eu a entendia vó, cheia de pele e de anos. Sentava-se na minha frente, para ficarmos da mesma altura, puxava ainda mais o cabelo no coque alto e me dizia do casamento, que um dia eu teria. “Ele era um homem decente”, soltava, os olhos fixos em algum ponto da minha testa. Eu ouvia então das traições, também eu as viveria. Mas o importante, para minha avó, era ser decente. Falava sempre disso, sem que eu compreendesse muito, exceto a saudade, que também era minha. Nessas horas éramos cúmplices. Da saudade e dos Josés. Daí minha ternura, uma espécie de reverência à nossa condição.
Condição que nos unia, três gerações, sob um teto que gotejava quando chovia, largando um bafio nos móveis da casa. O que sentia por minha avó oscilava entre birra e carinho. Carinho que talvez ela sentisse pela nora, apesar de se firmar na birra. Passei a associá-la a implicância, mofo e gotas grossas de chuva. Minha mãe não a confrontava, o que alimentava as constantes afrontas, fazendo da vó Maria uma mistura de cheiro úmido e voz rouca. Não sei por quanto tempo mais minha mãe suportaria aquilo, mas houve um acontecimento que interrompeu em definitivo nossa estada naquela casa. O mais curioso é que nossa mudança nada teve a ver com o atrito entre sogra e nora.
Além de papai, minha avó tinha outro filho, que pouco a visitava. Era o mais velho e, segundo meu pai, o preferido da mãe. Ele trabalhava na Bolsa de Valores, ganhava bem. Comprara uma casa em um bairro da zona oeste de São Paulo não fazia muito tempo. A casa não era grande, três quartos, um pequeno jardim e um porão acomodavam pai, mãe, filha e cachorra, mas, aos olhos de meu pai, aquilo era um exagero. Localizava-se em uma rua sem saída ladeada por casas iguais, sobrados colados que diminuíam a privacidade dos moradores. Talvez por inveja, talvez por falta de convite, raramente íamos àquela casa. Nas escassas visitas, aproximávamo-nos tímidas, minha prima e eu. Brincávamos de queimada na rua com outras crianças que apareciam (eu nunca sabia de onde) e visitávamos sem cerimônia a casa do vizinho para conversar com o papagaio, uma ave chamada Renato Russo, com trinta e seis anos, que só falava palavrão. Terminava o dia com a cachorrinha da casa – um filhote todo malhado e medroso com nome de cometa – na minha mão pequena.
Uma herança apareceu para aquela família. Minha tia ficara órfã ainda criança, os pais morreram em um acidente de carro. Por algum tempo viveu sob a ameaça de ser levada a um abrigo, mas a prima, de quem era muito próxima, se responsabilizou por sua criação. A prima não teve filhos nem se casou; quando morreu, deixou todos os bens para sua protegida. Tratava-se de um apartamento e de algumas economias.
Meu tio, em acordo com a esposa, assumiu a herança e vendeu tudo, decidido a abrir um negócio próprio com o valor da venda. Mais tarde se arrependeria (e muito!) de ter se desfeito do apartamento; naqueles dias, porém, acreditava que o dinheiro era o mais importante bem para a família.
Procurava um sócio, porquanto minha tia não queria deixar o emprego no hotel onde trabalhava. Assim surgiu a ideia de convidar o irmão. Não que meu tio se compadecesse das tragédias do irmão, mas enxergou em meu pai o que ninguém mais via: talento para os negócios. Papai era bom de lábia. Graças a ele, conseguiram alugar um galpão de pouco mais de mil metros quadrados na zona norte de São Paulo por um preço bem abaixo do mercado.
O convite para que morássemos em sua casa foi feito alguns meses depois, quando meu tio percebeu que, além de trazer o sócio para junto de si, evitaria as visitas constantes à mãe. Passamos a morar no quarto e sala improvisado no porão.
* * *
Algumas transições aconteciam sem que notássemos. Da cadela Halley, que já não cabia mais na minha mão, do papagaio do vizinho, um tanto mais velho, e minha e de Maira, que nos aproximávamos a cada dia.
Havíamos alcançado a qualidade de irmãs e superado em definitivo a timidez que antes nos demorava em silêncio até que uma das duas tomasse a iniciativa de começar alguma brincadeira. A relação entre nossos pais também mudara; de irmãos evoluíram para donos de uma loja de material de construção, com o nome dos dois, Arthur e Antônio Limeira, no alto da fachada.
Bom negociante que era, papai vendia de tudo, desde argamassa até britadeira. Já meu tio mantinha-se nos bastidores. Da última vez que se postou diante dos expositores, entre as seções de pisos e calhas, Arthur mandou um cliente tomar no cu. Na verdade, o xingamento era uma resposta à burrice do cliente, meu tio contou depois.
“Dubi, ele era um imbecil”, me disse. “Perguntou se não tínhamos um espaço de espera com café e água. Ofereci a padaria da frente. O homem achou um absurdo ser tratado daquela maneira, uma falta de respeito, o cliente tinha sempre razão, essas coisas. O sangue me subiu, não tenho sangue de barata. Quando sugeri que sempre havia a opção de não comprar, ele respondeu que aquela era a única loja de construção da região, se chamou de nosso refém. Disse que iria nos processar. Perguntei com que base. Continuou com uma série de bobagens, que era advogado, que conhecia gente graúda. Até que mandei o véio tomar no cu. Sim, foi muito libertador aquilo, mandá-lo para o lugar de onde saíam aquelas bobagens. Mas o melhor veio depois. Ele pôs a mão na orelha e falou ‘Não entendi’. Repeti bem devagar. ‘Não entendeu? vai tomar no cu’. Ainda perguntei se queria que eu dissesse outra vez. O véio virou o bicho. Nos ameaçou com uma porção de nomes. Totó veio em nossa direção, me afastou e ficou pedindo desculpas ao homem. Seu pai é muito mole, Dubi”.
Sim, papai era muito mole, mas, após esse episódio, ambos decidiram que titio era melhor com os números.
A essa altura, Maira e eu já cursávamos o ginásio. Ela me ajudava na disciplina de inglês, e eu a auxiliava nas matérias de exatas. Como meu tio, eu era boa com números. Também como ele, preferia os números às pessoas. Conversava apenas com Maira. Diziam que estávamos cada vez mais parecidas, as duas de cabelo curto e aparelho nos dentes. Tínhamos o mesmo tamanho, dividíamos o guarda-roupa. Chegavam a nos confundir, o que para mim era alívio, Maira falava no meu lugar. Às vezes tinha a impressão de que ela mesma se confundia comigo.
Há algumas particularidades de Maira que até hoje me intrigam. Por exemplo, quando acompanhávamos nossos pais de carro ao trabalho ou de volta para casa, a aproximação de um caminhão a deixava em pânico. Ela escorregava do assento e se encolhia no carpete, apontava para o alto, imaginávamos que para o caminhão, e murmurava “Não, não, não”. No início eu achava que iria acontecer de fato uma colisão, mas depois percebi que a cena sempre se repetia. Nunca entendi por que ela agia assim. Com o tempo me acostumei com Maira entre meus pés ao percorrermos a Marginal Tietê. Era parte dela, como era hábito meu apertar bem o cinto no banco de trás em um período que ninguém ligava para isso.
Atravessávamos São Paulo para ajudar Arthur e Antônio na loja. Eu no caixa e Maira brincando de lojista. Apresentava os produtos sem entender nada do que dizia, encantada com o poder que exercia em quem entrasse.
“Que linda! Quantos anos você tem, garota?”
Muitas vezes meu tio saía do meu lado apavorado com as intenções de quem elogiava a filha. Demorei a entender o pavor de meu tio, mas guardei a expressão dele para anos mais tarde, quando aquele passou a ser meu semblante.
A loja ficava do outro lado da cidade por estratégia de meu pai, que já conhecia a região e acreditava que lá conseguiríamos mais clientes do que onde morávamos. Íamos de manhã à loja e de tarde à escola, no mesmo bairro, para que voltássemos todos juntos. Eram aqueles os melhores momentos do dia, a ida ao trabalho e a volta para casa, sobretudo porque passei a me aproximar de tio Arthur. Na verdade, Maira nos aproximou. Seu pânico por caminhões era tanto que várias vezes nos vimos obrigados a interromper a viagem. Parávamos em algum posto de gasolina. Eu tentava consolar minha prima, encolhida no tapete, enquanto meu pai saía do carro para ir ao banheiro ou comprar qualquer besteira na loja de conveniências. Meu tio ficava conosco, sem muito a oferecer, exceto palavras. Falava mais quando ficava nervoso. Eu emudecia.
“A Dubianca, que não para de falar”, ele brincava. Eu ria, à vontade com meu jeito quieto, atenta ao meu tio, ao que ele dizia. Mil palavras por minuto, ácido, ninguém lhe escapava, nem mesmo o presidente do país. Criticava o Sarney, o Funaro, o Sayad… Aprendi um bocado de coisas nesses momentos, com meu tio no banco da frente e Maira entre meus pés. Ele me explicava o que era voto direto e o significado da campanha Diretas Já. Por ele, descobri que Tancredo Neves não tinha sido eleito pelo povo, mas por uma meia dúzia de políticos. Depois que morreu, Tancredo Neves virou anjo, mas, segundo meu tio, não era flor que se cheirasse. E ainda deixou José Sarney como vice. Contou do Plano Cruzado, do seu fracasso e de quem se acabou em dívidas por acreditar no congelamento dos preços. Eu me lembrei da fábula. No fundo, sempre simpatizei com a cigarra, mesmo que acabasse mal. Também não deixava de simpatizar com as pessoas afogadas em dívidas. No fim das contas, que mal havia em querer dançar e cantar sem se preocupar com o inverno? Perguntei para o meu tio. Ele pensava diferente do irmão.
“Entende uma coisa, Dubi. Não tem nada de errado com a cigarra. O problema, o que ferra todo mundo, é o inverno”.
Eu não entendia nada. Ele continuou.
“O inverno é uma metáfora. É o Estado. Que faz todo mundo trabalhar que nem louco, sem poder pensar em se divertir. Entendeu? O seu pai sempre quis seguir a cartilha. Aonde chegou? Quase matou você e sua mãe de fome. O que a empresa que ele sempre defendeu fez por ele? Deu um pé na bunda dele. O Estado é o inverno, Dubi, mata todo mundo de frio e de fome”.
Noutro dia, meu tio abriu o porta-luvas e puxou de lá um livro fino de capa amarela.
“Sei que você é muito nova, mas acho que vai entender isso”, disse me entregando o livro. A capa era curiosa. Toda amarela, com o desenho de um homem de terno preto abaixo de uma frase: “Escuta, Zé Ninguém”.
“Todos deveriam ler isso. Isso, sim, é literatura de verdade. E não esse lixo que sua prima lê. Já tentei mostrar esse livro pra Mairoca, mas ela só quer saber da tal que se prostituiu com treze anos, né, filha?” Maira gemeu do chão do carro, ainda trêmula pelo caminhão que nunca nos atropelaria.
Titio se referia a Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… Sorri constrangida, também lia pela segunda vez o livro. Todas queríamos ser Christiane F. É certo que conseguíamos no máximo beber escondido a sobra da cerveja de nossos pais, mas aquilo já nos fazia transgressoras. Ao menos eu entendia aquilo como transgressão. Lembrei ao meu tio que também gostava de Ed Mort, de Luis Fernando Verissimo, na tentativa de me mostrar mais séria que a prima. Ele riu, disse que não prestava. A única coisa que deveria ocupar nossa cabeça era aquele livro amarelo, que folheei sem saber que me acompanharia por toda a adolescência.
Da primeira vez que o li, compreendi muito pouco. Talvez por isso tenha feito de meu tio meu herói dali em diante. Ele defendia algo difícil, quase intangível. Algo que decerto era importante. Devolvi o livro. A capa amarela virou meu horizonte a partir de então.
Na tarde que titio discutiu com o meu pai, enxerguei somente uma ponta da briga, o dono do livro de capa amarela. Ainda hoje penso nessa tarde. Creio que mesmo meu pai nunca conseguiu me perdoar.
A constituição das próximas horas, um sol baixo, o rosa-laranja sobre a Marginal Tietê. Aquela tarde quase líquida pela fumaça do caminhão da frente. O corpo de Maira vibrava, ela soluçava, o que nos fez parar em um posto próximo. Meu tio nervoso, sua fala sem pausa, meu pai já do lado de fora do carro, minhas mãos presas às de Maira. Nada que não tivéssemos vivido nos últimos meses. Falávamos de política quando papai retornou ao banco do passageiro. A bem da verdade, titio falava, eu ouvia. A constituição dos próximos anos acabara de ser aprovada pela Assembleia Nacional. Maira e eu nascêramos durante a ditadura militar. Pouco saberíamos de política não fosse por meu tio. Antes dele, eu não fazia ideia do que tinham sido as Diretas Já, exceto pela Fafá de Belém berrando no Vale do Anhangabaú: “De quem é essa ira santa?”. Outra diferença entre irmãos: meu pai nunca falava de política em casa, no máximo exaltava Tancredo Neves. De volta ao carro, mudou de assunto.
“Nem uma palavra sobre este dia, Totó?”
Meu pai sorriu, nem uma palavra sobre aquele dia.
“Dubi, veja como é fácil. Somos um bando de alienados. Não precisa de muito pra fazer a gente de trouxa. Seu pai serve de exemplo. Segue o manual sem se perguntar por quê. Enquanto ninguém morrer de frio ou de fome, está tudo bem. Parece que quer ser gado. Parece que quer ser formiga, pra ser esmagado com um pisão de pé. Não é assim, Totó?”
Papai olhou para mim. Ele se deu conta de que eu havia contado da fábula para o irmão, as pálpebras caídas a me dizer o quanto se ressentia. Algo que compreendia como segredo entre pai e filha, uma história que me fazia dormir, que conduzia a ordem pai, filha, protetor, protegida, tinha sido dividida com meu tio. Logo com meu tio!, parecia me dizer quando virou o rosto. Reclamou seu lugar. Pediu ao irmão que parasse de encher minha cabeça.
“Dubi tem inteligência pra pensar por ela. Nem eu nem você podemos mudar isso, Totó”.
“É uma criança”, meu pai disse. Entendi aquilo como uma provocação em resposta ao que eu lhe fizera, ao revelar o que constituíra nossos papéis por tanto tempo.
“Não sou criança. Mais”. Corei, mas já não podia voltar atrás. “Tio Arthur tá certo. O senhor aceita tudo”, corei um pouco mais. “Que nem gado”.
Respirei fundo. Não bastasse ter dito a frase uma vez, repeti: “Que nem gado”, ao que meu pai virou o corpo. A testa enrugada. Parecia, no lugar de me repreender, querer me perguntar: “Quando deixou de ser minha filha?”
“Depois a gente conversa”, sua única repreensão.
Não conversamos depois. Algo mudou entre nós a partir daquele dia.
Notei que não me chamava mais de Bianca.
Certa vez se dirigiu a mim com um Dubi baixo, desajeitado. Interpelei meu pai, ainda gostava de ser Bianca, minha personagem favorita. Ele desconversou, as pálpebras caídas. De Dubi passei, então, a ser Dubianca. Meu nome inteiro em sua voz, evocado de um lugar a que nunca havia pertencido antes.
Talvez eu tenha deixado de ser sua filha em algum momento. Do seu lado, ele também largou no caminho o que o definia como pai. Não me repreendia mais. Em vez disso, se ocupava com Arthur. Passou a discutir com o irmão, desde política até preço de betoneiras.
* * *
Mamãe era pequena, media um metro e cinquenta e nove. Quando se sentava, os pés mal tocavam o chão. “Falta pouco pra me alcançar”, dizia, com a mão direita entre o topo da minha cabeça e seu queixo. A mão menor do que a minha. O queixo menor do que o meu. Medíamos nossos pés, o meu também maior. Imaginava aquele corpo mínimo carregando o meu. Às vezes, parecia frágil; outras vezes, parecia carregar outro corpo, a força de um corpo que desafiava o mundo. Capaz de carregar o meu ainda hoje.
Aquele outro corpo que brigava pelo espaço baixo que ocupava. Quantas vezes me peguei imitando sua pose ereta, seus olhos fixos no marido. Fazia isso com Maira, meus olhos fixos na prima, que não entendia nada. Ríamos juntas. Durante a eleição presidencial, a primeira eleição que Maira e eu acompanhávamos, de muitos candidatos mamãe escolhera um. Por ser jovem. Ou por ser bonito talvez. Ou mesmo por caçar marajás. Nunca o saberíamos. Foi uma surpresa quando disse o nome dele pela primeira vez. Nem mesmo meu pai esperava por aquela. Minha mãe com a revista no peito, dizendo a todos quem ganharia a eleição.