Anna Kroiss
De sutil delicadeza, o novo filme do diretor alemão Wim Wenders é um descanso para a mente e um passeio pela nossa percepção interna sobre o tempo. Inicialmente pensado como um documentário sobre a impecável administração dos banheiros públicos de Tóquio, a ficção acabou se tornando uma belíssima história que exalta os pequenos momentos do dia a dia e a beleza que cada instante carrega. Wenders, grande admirador do trabalho do aclamado diretor japonês, Yasujiro Ozu, não poupa mostrar tal influência na atual produção, que resultou em uma obra de arte apenas para aqueles que conseguem captar sua profundidade – não é um filme para todos.
Hoje, as incontáveis imposições de produzir/agir nos roubam os momentos de apreciação da solitude (não solidão) que são necessários para o autoconhecimento e para o bem viver – pessoalmente, foi impossível não remeter as mensagens que o filme transmite aos ensaios do escritor coreano Byung-Chul Han. Como leitora de Han nos últimos dois anos, enxerguei muito de seus escritos no longa, seja pela exaltação da contemplação da vida, percebida a todo instante pelos olhos do protagonista, seja por sua constante apreciação dos objetos físicos e táteis, maneira que, segundo Byung Han, podemos reafirmar que existimos no mundo. Em sua obra Não-coisas, o escritor expõe a fragilidade que a falta do concreto representa em nossas vidas – segundo ele, vivemos hoje por meio do “consumir coisas”, mas não de possuí-las. Para tal, usa como exemplo o ebook, o classificando apenas como arquivo/documento e não como um bem material – o livro digital não é um objeto que carrega história e que conta uma história, é apenas um link, um .doc a ser usado como informativo – não há posse dele.
À primeira vista, Hirayama, belamente interpretado por Koji Hashimoto, é um homem de meia-idade que trabalha como limpador de banheiros públicos e leva uma vida absolutamente simples. Toda a sua rotina é facilmente apresentada em cinco minutos de filme; porém, apesar de toda a leveza (e justamente por ela), o personagem é profundo em si mesmo, e não há nada de raso ou tedioso em seus dias: são vividos plenamente. Na maior parte do tempo imerso em seus próprios interesses, sem exposições midiáticas, o personagem não sofre pela solidão; pelo contrário, pratica muito bem a empatia e a bondade, dedicando-se com amor a tudo o que executa, inclusive o trabalho (visto por muitos como degradante). Hirayama aplica ali algo como o que é falado em um poema de Fernando Pessoa: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és / no mínimo que fazes”, carregando essa ideia para os demais setores de sua vida.
Não há por parte do protagonista a cobrança alucinada exigida pelos dias atuais, também comentada por Byung-Chul Han em seu Sociedade do cansaço, em que analisa nossa máxima e exaustiva noção de querer sempre consumir e superar o Eu do dia anterior, reforçando tal ideia em sua outra obra, Vita contemplativa, expondo que “no agora” consideramos o ato de descansar como uma perda de tempo, tempo esse que poderíamos estar utilizando para empreender e produzir, como se não fossem necessários momentos para si, uma vez que para o mundo hoje, se você não se mostra, então não existe.
Para o autor, tal infundada absorção de tudo que nos cerca resulta em uma geração adoecida pela busca de algo que não é possível obter – o protagonista de Dias perfeitos leva a vida de maneira absolutamente distinta desse modelo, e talvez esse seja exatamente o ritmo oriental que Wenders quis apresentar em seu filme, um oposto ao Japão capitalista de alta produtividade e empenho tecnológico como conhecemos. Temos ali um personagem que carrega o modo de vida com os passos da tradicional ponderação japonesa, que dá valor aos pequenos momentos, como bem mostrados na obra Em louvor da sombra, de Junichiro Tanizaki, segundo a qual existe o momento certo para a apreciação de cada coisa: a natureza, as vestes, a comida e as demais partes essenciais da vida. O filme ainda pode ir além da referência à obra de Tanizaki, pois, em diversos momentos, são mostradas algumas das pequenas preciosidades da tradição, seja nas sombras das palmeiras selvagens, com as quais o personagem sonha, seja nos cuidados com seus bonsais, diariamente regados e expostos à luz do sol – há no filme uma bela apresentação de como o novo e o antigo podem conviver uma vez que decidamos por isso.
Dias perfeitos mostra como é possível apreciar a leitura, a música, o descanso e o trabalho de maneira bondosa, sem a contaminação do querer mostrar o que se faz em infinitos registros de selfies e postagens – é preciso tal recolhimento. Hirayama não olha para nada do problema do atual Japão, sofrendo com a doença dos chamados hikikomori (pessoas com transtornos de isolamento, absortos em si mesmos e depressivos). Em absoluto; o protagonista passeia pelos dois mundos de maneira lúcida e saudável, dando espaço à convivência com os demais nos momentos certos, agindo de forma educada e gentil e reservando para si o tempo necessário para manter o que é, aquilo que ele descobriu ser, como se aplicasse na vida o que encontramos em Eclesiastes:
Para tudo há uma ocasião certa;
há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu:
tempo de nascer e tempo de morrer,
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou,
tempo de matar e tempo de curar,
tempo de derrubar e tempo de construir,
tempo de chorar e tempo de rir,
tempo de prantear e tempo de dançar,
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las,
tempo de abraçar e tempo de se conter.