Uma página de O diário de Amélia

Carl Bloch, "Duas garotas sorrindo" (1865)
Coleção particular

Camila Veloso

Combino com meus pais uma nova rotina, já que eles têm chegado tarde para me buscar no cursinho. Agora, posso voltar de ônibus três vezes por semana, e só preciso avisar por mensagem ou em casa antes em quais dias vou voltar sozinha. Por isso, nesta sexta-feira, somos só eu e Michele no ponto de ônibus.

Tento puxar assunto enquanto o ônibus não chega.

“O Lucca está bem, Mi?”

“Acho que sim, amiga, por quê?”

“Sei lá, ele está meio… quieto esta semana”.

“Não notei, amiga. Mas vou ver ele mais tarde hoje, posso perguntar se está tudo bem”.

“Ah, os Insolentes vão sair hoje? Não vi no grupo, deixa eu abrir…”

“Não, amiga, não é nada dos Insolentes, não. Eu tô ajudando-o a se vestir melhor, porque… Ah, deixa pra lá”.

“Fala. Não conto pra ninguém”.

“Promete? Tô confiando, hein… Ele terminou com a namorada há alguns meses, vários meses, mas ainda tem muitas peças que ela deu pra ele no guarda-roupa; então, tô ajudando-o”.

“Ah, entendi”, digo, com um sorriso sem graça. “Parece legal, um glow up“.

“Total glow up, coitado, ele tá necessitado”. Michele começa a separar os cabelos para fazer uma trança longa. “Odeio como gente rica não sabe se vestir. Que desperdício”.

“Ele é rico?”

“Amiga, ele é um Fissa”.

“Um o quê?”

“Fissa… Da família Fissa… Dona de metade das indústrias deste nosso interior paulista?”

“Ah…”, respondo como se soubesse de quem ela está falando, mas na verdade não sei muito bem. OK, eu já tinha ouvido falar do Roberto Fissa, é um nome que aparece sempre no jornal da cidade, mas não sabia que ele era parente do Lucca. Michele continua falando.

“Pois, minha filha, a casa deles é uma mansão! O quarto do Lucca tem lustre e tudo, eu poderia morar com a minha família ali, no closet, e eles nem iriam notar”.

“Você conhece o quarto dele?” De tudo o que Michele falou essa é a única coisa que consigo escutar e de tudo o que ela me conta em seguida só consigo sentir o soco do primeiro “sim”.

O ônibus chega, subimos, e sigo fazendo perguntas enquanto meu coração afunda na tristeza, porque talvez Michele já tenha beijado o Lucca. Ela suspira.

“Ai, Amélia, posso te contar tudo? É algo que não falei nem pra Ana ainda…”

Meu coração acelera. Eles já estavam namorando?

Não, por favor, não, não quero ver minha melhor amiga ficando com o meu crush. Deus, por que isso tem que acontecer desde a quinta série?

Michele se vira para mim no ônibus.

“Ele me pediu pra fingir ser namorada dele em uma festa no fim do mês. Um evento grande da família Fissa. A ex dele vai estar lá, e ele ainda não superou e tá solteiro… um rolo, sabe. Eu não ia aceitar, mas ele aceitou pagar as minhas inscrições nos vestibulares americanos, e eu tenho esse sonho de estudar fora, então…”

“Entendi…”

“Não me julga, por favor”.

“Não julgo, não”, digo, olhando para o chão, os olhos abertos demais. “Mas como ele te pediu? Tipo, vocês acabaram de se conhecer… Faz uns… três meses?”

“Ah, essa parte também foi loucura, porque parece que o irmão mais novo do Lucca já seguia o meu perfil gamer e daí… já me achava bonita. Então, além de ser uma gostosa, ele disse que pode ser uma afronta para a família da ex. Afinal de contas, eu sou uma Macari. As oficinas dos meus pais são concorrentes das oficinas dos pais da Estela”.

Macari, Estela, Fissa.

Michele segue repetindo nomes e sobrenomes que não conheço, e me sinto perdida.

Eu não sabia de tanta coisa…

Ela segue falando da ex de Lucca, e meu estômago embrulha, já que ela estava vivendo a droga de um conto de fadas parecido com Romeu e Julieta, porém sem morte e tragédia, só com a parte boa de fingir ser a namorada dele.

EU queria ser a namorada dele, mas meu sobrenome não seria uma afronta para ninguém. Sou Silva Santos, família de classe média, sem oficinas ou empresas de qualquer porte, só uma família trabalhadora, conservadora, por fora das brigas de família que acontecem no interior de São Paulo.

Os avós da Michele eram gregos, eu sabia, por parte de pai, e eles tinham várias oficinas na cidade. Ricos? Sim, como quase todo mundo naquele cursinho.

Acho que eu sou a mais pobre, já que meus pais são apenas funcionários da prefeitura, e, por mais nobre que essa profissão seja, não se ganha muito, não o suficiente para termos nomes de prestígio.

Meu ponto chega, eu desço antes dela e, antes de ir embora, digo…

“Estou feliz por você. Depois me conta tudo, OK?”

Ela diz “OK”, e me sinto mal pela mentira que acabei de contar.

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