Amanda Vital
cascata
minha mãe me ensinou a relaxar: pela água do banho pedia que deixasse cair no meio das costas e começo do pescoço por uns segundos até sentir a carne ceder e afundar :é uma pressão fraquinha que vem furando: a mãe da minha mãe relaxava com a corrente do rio à bica :era outro curso: era deixar no começo da coluna um jato único e bem mais forte salpicando pinguinhos batia direto no osso saltava em gotas para fora da pele às vezes choramos: é que há banhos em que é preciso chorar: vamos eu a minha mãe e a mãe da minha mãe secar os nossos olhos de alegria de tristeza e de alívio as mulheres da família sabiam respeitar o ciclo do rio da cheia à seca molhadas por fora enxutas por dentro há banhos, minha mãe; há banhos, minha avó: e esses a gente deixa correr com os pés fincados na gravidade eterna: e segue lavando a alma até o corpo virar pedra
costura
mãe, hoje eu vi o mar: parecia um lençol de seda que avó abanava e quando estendia sobre a cama sempre ficavam algumas preguinhas ela precisava puxar com cuidado deixando liso sobre o colchão a maré também evita preguinhas por cima da areia o mar é um bocado de avó perfeccionista de gênio instável a estender um imenso tecido infinito para cosê-lo: o mar afinal é uma avó abanando as águas em viscose azul em tafetá turquesa em seda verde espetando barcos em pequenas almofadas de areia um ventilador atrás da nuca a assoprar suas ondas os pés no pedal: os pés nos pedalinhos: duas mãos deslizando numa bancada de granito a desfazer-se entre os dedos: uma fita métrica anil no horizonte: mãe, hoje eu vi o mar e meus cabelos têm retalhos
broto
em 1965 joão cabral de melo neto dizia que a poesia era como catar grãos de feijão que boiavam na água nos tempos de vó não se catava feijão assim: sempre era encher três mãos dentro do saco de juta despejar tudo em cima da mesa e dedilhando pedra por pedra milho por milho fazia um pequeno monte no colo em cima do vestido para levantar a barra da saia jogar no lixo lavar o que sobrou na bica ao lado das pastagens aproveitar completar a panela para deixar cozinhando ao redor do fogão as meninas aprendiam pelos olhos medir a água contar o tempo macerar o alho com sal e refogar com banha de porco o feijão da vó era feito de um silêncio mineiro de fazer qualquer poesia ficar só espiando na ponta dos pés pela janela dos fundos
latifúndio
eis a parte que me cabe neste latifúndio: um copo de vinho para me dar coragem uma boca precisa para oferecer a minha uma conversa de velha para me lembrar um estojinho que me sacoleje os trocos uma mão para pedir gomos de tangerina um problema para resolver nos silêncios uma brasa que não durma quando apago uma flor murcha enfiada cabelo adentro um peito ainda sensível para as ternuras uma noite a cair à frente dos meus olhos um poema por dia ou o quanto me baste
metamorfose
não ter as pernas de anos atrás rijas como cenouras saudáveis e enterradas em buracos no mesmo ciclo rotativo de terras: ser a mesma nas renovações dos plantios trazer ranhuras que nunca mudam de lugar ser um par de pernas sugado pelas areias movediças vezes sem conta até que chega essa derradeira hora a um minuto do espanto a segundos da necessidade escapar rolando de mansinho ultrapassando o cerco hoje dei para não ter mais as pernas: desconheço-as desconheço os solos para onde sempre me submergi hoje só dei para migrar como migram as andorinhas: levo a terra sob as asas na quina dos ossos à partida trago o coração no bico para saber me guiar na volta