Amar-o-tempo

Ellen Emmet Rand, "Mulher diante do espelho" (1925)
Instituto de Arte de Chicago

Rute Gusmão

Precisas ver-te

Um dia as roupas vestem quem não és
faltam-lhes alturas e dietas justas
não cabem mais no armário do corpo
não te servem curtas
nelas fartam larguras
sobram gavetas

não pertences mais a elas
viagens passadas
melhor usá-las ao avesso
precisas de ti
e dizes não às golas e cinturas
ombros não são cabides

não és belchior
precisas livrar-te dos berloques
dos sonhos de seda e linho
máscaras e fantasias
descartar roupas herdadas
paletós e calças fadados à engorda

um dia precisas ver-te nua
além do guarda-roupa
onde emparedas costumes
e te conservas roupa velha,
ver-te além da imagem
refletida no espelho
onde te vestes e escondes.



Entardece

A menina, a moça, a velha
vivem idades diversas
a velha pensa a criança
a criança fala à velha

o vestido da moça se confunde
com folhas que perdem o brilho
enquanto a pequena cresce

passa o dia, passa a tarde,
a avó na tardia noite
inaugura outro começo

Ouço as três na conversa
sou menina, moça, velha
É com o tempo que pareço.



Lá e cá

Em memória de Mahmud Darwich

Estatística e insanidade
encharcam de sangue a manhã

monstros de pesadelo
destroem a cidade, o povo

jogo televisivo ataca
fígados, pulmões, amores

insisto entre paredes
teimando em sobreviver

e confabulo comigo:
— Thánatos domina os humanos

não só notícias da guerra
inundam o chão da minha casa

invadem-me poemas de Darwich
lamentam a pátria tomada

Estouram fogos de festa
Ou serão tiros na favela?

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