Rute Gusmão
Precisas ver-te
Um dia as roupas vestem quem não és
faltam-lhes alturas e dietas justas
não cabem mais no armário do corpo
não te servem curtas
nelas fartam larguras
sobram gavetas
não pertences mais a elas
viagens passadas
melhor usá-las ao avesso
precisas de ti
e dizes não às golas e cinturas
ombros não são cabides
não és belchior
precisas livrar-te dos berloques
dos sonhos de seda e linho
máscaras e fantasias
descartar roupas herdadas
paletós e calças fadados à engorda
um dia precisas ver-te nua
além do guarda-roupa
onde emparedas costumes
e te conservas roupa velha,
ver-te além da imagem
refletida no espelho
onde te vestes e escondes.
Entardece
A menina, a moça, a velha
vivem idades diversas
a velha pensa a criança
a criança fala à velha
o vestido da moça se confunde
com folhas que perdem o brilho
enquanto a pequena cresce
passa o dia, passa a tarde,
a avó na tardia noite
inaugura outro começo
Ouço as três na conversa
sou menina, moça, velha
É com o tempo que pareço.
Lá e cá
Em memória de Mahmud Darwich
Estatística e insanidade
encharcam de sangue a manhã
monstros de pesadelo
destroem a cidade, o povo
jogo televisivo ataca
fígados, pulmões, amores
insisto entre paredes
teimando em sobreviver
e confabulo comigo:
— Thánatos domina os humanos
não só notícias da guerra
inundam o chão da minha casa
invadem-me poemas de Darwich
lamentam a pátria tomada
Estouram fogos de festa
Ou serão tiros na favela?