Marcelo Módolo
Henrique Braga
Na canção “Metáfora”, o imortal Gilberto Gil advoga o direito à liberdade criativa para quem, com palavras, constrói peças artísticas. “Uma meta existe para ser um alvo / Mas quando o poeta diz ‘meta’ / Pode estar querendo dizer o inatingível”. Tal defesa encontra respaldo no que o senso comum chamaria de “licença poética”, a ideia de que, na criação artística, tudo seria permitido. Mas vejamos bem: para esse senso comum, isso seria facultado apenas à poesia.
O mesmo verso de Gilberto Gil, no entanto, para quem analisa os significados na perspectiva da enunciação ou da linguística cognitiva, remete a uma ideia mais ampla e central: a de que os sentidos não são estanques, mas socialmente construídos e, em certo sentido, negociados. Não é apenas na criação poética, portanto, que as palavras podem assumir significados não previstos. É o que se vê, recentemente, com o termo “adultização”.
O vídeo de Felca e a popularização de um neologismo
O youtuber Felipe Brassanim, conhecido popularmente como Felca, tornou-se famoso nas redes sociais por seus vídeos cômicos. Curiosamente, porém, o influenciador ganhou notoriedade e rompeu as chamadas “bolhas” digitais ao tratar de um tema seriíssimo: a forma como adultos vêm expondo, nas redes sociais, menores sob a sua tutela, inclusive de forma erotizada, para conseguir audiência e, por conseguinte, “monetização” (para ganhar “bufunfa”, “grana”, “faz-me-rir”). No início do vídeo, há um alerta, informando que os temas tratados serão “abuso sexual infantil, pedofilia, sexualização precoce e adultização de crianças” (grifo nosso).
O termo destacado, embora já tenha alguma circulação (sobretudo em textos de órgãos dedicados à defesa da infância e da adolescência), ainda não faz parte do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) ou de obras de referência, como as versões digitais dos dicionários Caldas Aulete e Houaiss. Cabe observar, contudo, que a ausência de uma palavra nessas obras de referência não significa necessariamente que ela seja nova; pode ser apenas uma lacuna, já que o uso da língua é sempre mais ágil que sua fixação. De todo modo, o termo constitui um bom candidato à nova seção do site da Academia Brasileira de Letras, Novas Palavras.
Novidade ou não, a formação do termo é bastante clara: como “adultização” contém um sufixo formador de substantivos deverbais (presente em termos como “exploração” ou “punição”), infere-se que sua base é o verbo “adultizar” – esse sim registrado no Houaiss, mas ainda não no Volp ou no Aulete. Segundo o dicionário, o verbo significa “fazer (um jovem) amadurecer” ou “fazer tomar cunho adulto”.
“Adultização”, portanto, é um substantivo que nomeia o ato de “tornar adulto”, ou, como no viral produzido por Felca, fazer com que crianças e adolescentes desempenhem papéis dos quais, em nossa sociedade, deveriam ser preservados. É esse o mesmo significado que o termo assume em vídeo publicado pelo perfil @profissaojogador, denunciando pressões a que crianças são submetidas em categorias de base do nosso esporte bretão: segundo o vídeo, trata-se da “adultização no futebol”.
Se as línguas seguissem caminhos previsíveis, este artigo se encerraria aqui: “adultizar”, que significa “fazer (um jovem) amadurecer”, deu origem ao neologismo “adultização”. No entanto, o imponderável também se manifesta nas inovações linguísticas.
“Adultização” como sinônimo de “erotização precoce”
Não é novidade que, em seu uso corrente, as palavras podem assumir significados novos, passando a ter novas acepções. Um exemplo curioso é o termo “vilão”, que, pelo menos no português do Brasil, dificilmente seria utilizado hoje em dia para indicar um morador da Vila Madalena, da Vila Mariana ou da Vila Nova Conceição. Em sua primeira acepção, porém, “vilão” quer dizer exatamente “que ou o que reside em vila”. Com “adultização”, arriscamos dizer que, de forma bastante acelerada, já começa a ocorrer um processo de transformação semelhante.
No caso de “vilão”, o termo designava indivíduos que não pertenciam à nobreza, à corte e que, segundo aqueles valores, seriam pessoas rústicas, grosseiras. Dessa forma, os contextos de uso acabaram transformando a palavra “vilão”: como o substantivo era usado para tratar daqueles que eram vistos como rudes e inadequados, o termo acabou assumindo de vez essa acepção.
A palavra “adultização” parece passar por transformação semelhante, já que, após o vídeo do youtuber se tornar um viral, não é difícil encontrar o vocábulo sendo usado como sinônimo de erotização infantil. Embora o termo se refira de forma ampla ao ato de “pular etapas” na formação do sujeito (seja fazendo uma criança se portar como atleta profissional, seja incentivando-a a se tornar um coach de investimentos), a sexualização de crianças e adolescentes parece ser a face mais chocante desse fenômeno, o que acaba tendo efeitos sobre o próprio significado do termo. É exemplo disso, na rede social Instagram, uma página chamada “adultizacao” (sic), em cuja descrição se lê o seguinte: “Pedófilos usam vídeos de crianças para atrair para grupos. Não exponha. Denuncie perfis e proteja nossas crianças”.
O viral de Felca deixará marcas na língua?
Cabe ponderar que o vídeo de Felca sobre o tema chega a quase 50 minutos, duração atípica para um viral. Não é difícil supor que, embora o número de acessos ao conteúdo tenha sido muito expressivo, a maior parte do público não o tenha visto integralmente. Além disso, é bem provável que boa parte da audiência tenha assistido a “cortes”, ou seja, a fragmentos impactantes do vídeo, nos quais, invariavelmente, teve destaque o tema da erotização.
Assim, do mesmo modo que o uso continuado de “vilão” em contextos depreciativos acabou por cristalizar a acepção de malfeitor, é razoável admitir que a recorrência de “adultização” em situações ligadas à sexualização precoce venha, gradualmente, a estreitar o horizonte semântico da palavra, impondo-lhe um sentido mais restrito do que aquele que originalmente comportava.
À parte do horror denunciado pelo jovem youtuber – a quem agradecemos e felicitamos por ter dado projeção ao tema –, salta a nossos olhos um interessante fenômeno de mudança linguística em curso. “Adultização”, antes mesmo de seu registro em dicionários, parece passar por um processo de transformação semântica, resultante da velocidade com que circulam os virais na contemporaneidade. Se é verdade que a língua está em constante transformação, na tal “modernidade líquida” o passo desse processo parece ganhar um novo ritmo, muito mais veloz. Recorremos mais uma vez ao verso de Camões: “não se muda mais como soía”.
Texto publicado originalmente no Jornal da USP