Certezas

Pat Katz, "Coreto" (sd)

Andrea Nunes

Embora meu marido seja bom de matemática, descartamos a possibilidade de uma gravidez assim que a hipótese foi levantada. Meu ciclo não é regular, é normal atrasar um ou dois dias. Seguimos com a programação normal. Passamos o Natal com minha avó em Ribeirão Preto, o Paulo voltou para São Paulo para trabalhar e eu segui com meus pais para Jaú.

Aquela música em inglês que diz que “essa é a época mais maravilhosa do mundo” ganha ainda mais significado quando estou em Jaú. É a época em que minhas amigas mais antigas (não velhas, antigas) estão por lá, o que rende tardes deliciosas, matando o calor com chopp gelado na choperia da esquina da praça.

Não a praça da igreja, porque Jaú é quase que uma megalópole do interior paulista e tem duas praças. A praça da igreja é o jardim de cima e nós nos encontramos no bar do jardim de baixo que, mesmo não tendo o mesmo status de ser a praça da igreja é, para mim, a mais bucólica. Bem mais arborizado que a sua concorrente, o “Jardim de Baixo” tem um coreto bem no centro. Sempre que passo por lá, ele me carrega para o fim do dia de um domingo qualquer dos anos 80. Meus pais nos levavam para ver a banda tocar no coreto e sentavam num dos bancos de pedra, pintados com um anúncio de algum comércio local. Enquanto isso, minha irmã e eu andávamos de mãos dadas ao redor do simpático palco redondo que abrigava os músicos, já bem velhinhos, os quais deviam tocar simplesmente por amor.

Encontrei as meninas num domingo como tantos outros que passei ali. Quando nos sentamos à única mesa disponível na calçada, estava entre a paisagem da infância e a conversa adulta que tomava rumo naquele grupo. Duas delas estavam grávidas. Uma esperava sua primeira filha e a outra, seu segundo filho. O papo girava em torno das gravidezes e de como foram suas descobertas. Em algum momento, entre as piadas sobre as reações dos maridos para cá e o “vocês são tudo louca” da turma sem filhos para lá, meu estômago embrulhou. O chope não descia. Comecei a suar frio e a sorrir amarelo. Devo ter perdido a cor, mas como a tonalidade da minha pele é “branco São Paulo”, ninguém notou. O mal-estar era tanto que agradeci a Deus, quando resolveram pedir a conta.

Fingi que fui embora e dei uma volta na praça. Olhei para o coreto vazio e quase me vi ali dentro, pequena, acenando para mim mesma do lado de fora, apontando o caminho da farmácia mais próxima. Entrei na farmácia e fui primeiro para o corredor dos absorventes. Peguei dois pacotes e passeei com eles pela loja, só para ter certeza de que não havia nenhum conhecido. Cidade pequena, sabe como é, a fofoca rola solta. Achei que tinha visto meu tio, mas me enganei. Coloquei os absorventes na cestinha que o atendente me entregou e comecei a buscar testes de gravidez. Peguei dois, porque não sabia como usar. E se eu perdesse o palito na privada? E se eu não acertasse o lugar certo do xixi? E se viesse com defeito? Escondi os testes embaixo dos pacotes de absorventes e corri para o caixa.

“Déa?”

Puta merda.

“Oi, Carô. Nossa, quanto tempo! Não tinha te visto aqui”.

E seguiu-se a conversa. Como vão a mãe, o pai, a irmã, o cachorro ainda é o mesmo daquela época, a irmã está em Ribeirão, que legal, que legal. Eita, você está naqueles dias? Menina, sabe que eu comecei a ter enxaqueca todo mês? Então, vê se pode. Blá, blá-blá e mais blá.

“Próximo!”

Salva pelo gongo.

“Carô, pode ir, lembrei que preciso de escova de dentes. Que bom te ver. Beijo na mãe, no pai, no papagaio e tchau”.

Voltei para os corredores da farmácia, olhando discretamente por cima das gôndolas e só corri para o caixa quando a desconhecida se foi.

“Quer um saquinho marrom?”

Adoro a discrição do interior. Aqui a gente ainda esconde o “chico”.

“Sim, por favor”.

Cheguei em casa e fui direto para o banheiro. Li as instruções na caixa umas cinco vezes, mirei o xixi e esperei não mais que um minuto para duas linhas aparecerem.

Mensagem ao marido:

<Amor, fiz um teste de gravidez>.

<E aí?>

Mandei a foto.

<Andrea, o que isso significa?>

Mandei a foto das instruções para interpretação.

<Pelo amor de Deus, o que está acontecendo?>

Liguei para ele.

“Estou grávida”.

“Certeza?”

“É o que diz no papel”.

“Mas é certeza?”

“Não sei. Amanhã faço outro teste. Talvez só funcione com o primeiro xixi da manhã, não sei”.

“Não vou dormir essa noite”.

No dia seguinte, o outro teste também deu positivo. Mas eu não acreditei.

Fiz o mesmo caminho até a farmácia. A Andrea pequena continuava me olhando de dentro do coreto da praça, mas dessa vez ela gargalhava.

“Que foi?”

Comprei mais três testes, um de cada marca. Todos deram positivo.

Fiquei quieta. No dia seguinte partimos para São Paulo. No caminho, novamente a praça. Meu pai no volante e a minha mãe ao seu lado.

“Que saudade das crianças pequenas. Você se lembra de quando nós vínhamos aqui na praça pra ouvir a banda tocar, filha?”

Olhei para o coreto e me vi novamente lá dentro. Pequenininha, laço branco no cabelo, vestido bordô e um sorriso confiante de quem tem certeza de que está tudo bem e vai dar tudo certo.

Nota da autora 10 anos depois

Preciso acrescentar nessas memórias da primeira gravidez que, além dos cinco testes de farmácia, fiz o exame de sangue quando cheguei em São Paulo. Foi horrível, porque o resultado não vem com as palavras “positivo” ou “negativo”, vem em números. O tal do Beta HCG. E para interpretar aquilo? Google, claro. Mas quem me garantia que a informação estava correta no Google?

A confirmação mesmo veio com uma observação do meu pai.

“Filha, com o tanto que você está comendo, você acha mesmo que precisa de outro exame?”

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