De Mulheres que não eram somente vítimas

Paul Cézanne, "Pirâmide de caveiras" (1898-1900)
Coleção particular

Regiane Folter

Maria

Maria respirou fundo e contou até cinco. Estava contrariada. Sentia o rosto pegar fogo, a respiração inquieta. Tratando de se acalmar, ela corrigiu a postura na cadeira e fechou os olhos. Por alguns segundos, se deixou levar pela escuridão e pelo som de conversas paralelas do ambiente ao seu redor. Era bom se concentrar assim, ajudava a relaxar. Ela se esforçou para tranquilizar a respiração e, dessa forma, fazer desaparecer a vermelhidão que preenchia seu rosto. Maria detestava ficar brava porque era uma emoção muito visível nela: a raiva parecia escapar por todos os poros, as maçãs do rosto ficavam vermelhas, manchas rosadas surgiam em seu pescoço e aquela famigerada veia começava a saltar. Em resumo, ela ficava com cara de doida. E ela não estava doida!

Ou será que estava?

A discussão que provocara aquele surto de irritação não havia durado nem cinco minutos, mas ultimamente Maria não precisava de muito para se indignar. Ela havia ido de 0 a 100 km/h em questão de segundos e terminou a discussão gritando e batendo a porta na cara de sua chefe. Que, além de tudo, também era sua amiga. Bom, azar o dela. Quem mandou se meter na sua vida dessa maneira?

“Respira, Maria, respira…”, sussurrou consigo mesma, percebendo que sua linha de pensamento não estava ajudando a diminuir a irritação, muito pelo contrário. Era lenha mental para sua fogueira de emoções.

Talvez ela estivesse ficando doida. Essa mania de se incomodar por tudo, de ver drama em qualquer situação, de chorar sem motivo, de às vezes sentir brotar de dentro dela uma vontade intensa de gritar… Talvez tudo isso fossem sintomas, indicadores muito claros de que ela estava perdendo a razão. Então era isso, talvez ela somente estivesse ficando doidinha de pedra e, estranhamente, até que era um alívio pensar assim. Porque se não fosse loucura, seria outra coisa, e Maria não queria considerar as alternativas.

“E aí, Maria, conseguiu fazer a chefa mudar de ideia?”

Maria abriu os olhos e buscou a dona daquela voz. Sua colega Fabrícia a observava de sua mesa, que ficava de frente para a de Maria. Outra bola escaldante de indignação encheu seu estômago e ela teve que apertar os dentes com força e repetir para si mesma que Fabrícia não era de fazer fofoca. Parecia genuinamente preocupada.

“Não”, respondeu Maria sucintamente, se afundando na cadeira e deixando para lá essas bobagens de postura e respiração. Não ia funcionar mesmo.

“Então você vai ter que escrever a matéria”, resumiu Fabrícia.

Maria assentiu e as duas ficaram em silêncio por alguns segundos. Ambas pensavam na fatídica pauta que havia sido a causa daquele auê todo. Sem nem ter começado a apurar a matéria, Maria já pressentia a bagunça que geraria em sua vida. Ela não estava pronta para isso.

“É uma droga quando a gente tem que fazer algo que não quer, Maria. Mas, olha, se tem alguém que pode escrever essa história com maestria, é você”.

De repente, todo o calor do corpo de Maria se esvaiu de golpe. Ela ergueu a cabeça rapidamente, gelada por dentro. O sorriso reconfortante de Fabrícia morreu ao ver a expressão assustada da colega.

“O que você quer dizer com isso?”, perguntou Maria com voz esganiçada. Fabrícia não soube o que responder e ficou de boca aberta por alguns segundos.

“É só um elogio. Quero dizer que você escreve muito bem. É só isso”.

Maria piscou algumas vezes e se incorporou na cadeira, engolindo em seco. Claro que era só isso. Como poderia ser mais que isso? A única pessoa que realmente sabia o quanto aquela pauta a afetava era a chefa. Mas Tatiana não contaria nada a ninguém. Mesmo depois daquela briga, elas ainda eram amigas.

Numa manobra tática para dar espaço à colega, Fabrícia voltou sua atenção ao computador. Maria agradeceu mentalmente, sem conseguir evitar uma fisgada de dor. Pouco a pouco ela estava conseguindo que todos se afastassem dela. A sua instabilidade, os arroubos de emoção, tudo isso levava Maria a se ilhar e aqueles ao seu redor não se sentiam bem-vindos. Embora alguns poucos, como Tatiana, queriam forçar a entrada sem se preocupar se eram bem-vindos ou não.

Minutos depois, quando já não tremia, Maria se levantou e caminhou até a cozinha em busca de café. Sentia-se mais calma e sabia que seu rosto devia ter baixado de coloração o suficiente para não assustar os companheiros da redação. Ela precisava desesperadamente de cafeína, já que a xícara que havia enchido para si no início do dia tinha ficado lá na sala de reuniões. Intacta. Brigar pode ser tão ou mais viciante que o cafezinho matinal.

Enquanto preparava sua típica xícara de café preto com quatro colheradas generosas de açúcar, Maria reviveu a discussão com a editora em sua mente.

“Bom dia, flor do dia!”, dissera uma alegre Tatiana ao chegar à redação naquela manhã. Maria já estava lá, esperando a amiga/chefe. Era difícil separar o pessoal do profissional, mesmo lá na redação. Antes que Tati pudesse se acomodar em sua mesa, Maria perguntou se elas poderiam conversar em particular. O sorriso de Tatiana encolheu alguns milímetros. Ali tinha coisa.

Elas caminharam até uma das salas de reunião e fecharam a porta. Enquanto se sentavam, Tatiana sorriu para Maria novamente, mas esta não retribuiu. Preferia encarar a parede com ar cansado.

“Tudo bem, Maria?”

A expressão de Maria se transformou ao encarar a amiga. Tatiana conhecia muito bem aqueles olhos assassinos.

“Tati, por que você está fazendo isso?”

“Fazendo o quê?”

“Não vem com essa. Estou falando do e-mail com a pauta sobre aquela garota. O e-mail que você mandou ontem à noite, quando eu já não estava na redação”, aclarou Maria, com uma nota acusatória na voz. Tatiana sabia do que ela estava falando, mas preferiu se fazer de boba.

“Que garota, Maria?”

“Eu te falei que não queria fazer essa matéria, Tati. Eu vim aqui depois da reunião de pauta e disse com todas as letras que não queria ser a jornalista responsável por essa história. Não mandei nenhum e-mail na calada da noite, não, vim até a senhora e falei o que tinha pra falar na sua cara…”

“Ah, você está falando da matéria sobre a Mariana Tavares? A garota que encontraram morta na piscina do colégio?”

Maria se calou de repente, com um nó na garganta. Somente escutar o nome de Mariana já era difícil de suportar; imagina escrever toda uma história sobre ela?

“Maria, eu não estou entendendo. Essa é a típica matéria que você adora, que você luta com unhas e dentes para conseguir”.

“Sim, mas agora, justamente agora, eu não quero. E eu fui até você e falei…”

“…na minha cara, sim, sim, eu sei, Maria. Você veio. E você falou. Mas eu não disse nada, disse? Eu fiquei quieta e deixei você dizer o que tinha pra dizer. Pensei que logo se acalmaria e veria que essa matéria é perfeita para você”.

De repente, Maria caiu em si. No dia anterior, quando ela havia pedido à Tatiana que desse a pauta a outra pessoa, a editora nunca confirmou que faria isso. Maria falou, falou e falou, e Tati só escutou. Silenciosa como uma tumba. Uma sensação de traição percorreu o corpo de Maria como um arrepio.

“Eu não acredito que você vai simplesmente ignorar um pedido meu dessa maneira, Tatiana!”

“Mas, Maria, será que não é exatamente essa a história que você precisa escrever? Será que não vai te fazer bem? Não será uma forma de curar certas feridas?”

Maria se levantou, subitamente em pânico. O que Tatiana não estava dizendo era ensurdecedor e ela temia que todos na redação pudessem escutar.

“Maria, não faz isso, senta, vamos conversar”, pediu Tatiana, arrependida de sua fala ao ver a reação de desespero da amiga.

“Eu pedi pra você nunca falar sobre isso aqui”, sussurrou Maria. Mas logo continuou falando e sua voz foi subindo de volume gradualmente com cada palavra. “E eu também te informei que não iria escrever porra de matéria nenhuma!”

Ela tinha ido longe demais e sabia disso. Mas não conseguia se conter.

“Perdi a paciência com você, Maria”, respondeu Tatiana, agora tão acalorada quanto a amiga. “Há meses venho sendo compreensiva, tentando te ajudar, colocar panos quentes. Deixei você fazer o que quis desde que voltou a trabalhar. Você ficou com todas as matérias que queria, escreveu o que tinha vontade, no tempo que quis, sem discussão. Mas agora acabou! Você vai trabalhar nessa história, sim!”

“Por que essa insistência, Tati? Tá achando que é psicóloga agora? Que sabe como me fazer sentir melhor?”, perguntou Maria, desdenhosa. Tatiana pareceu se tranquilizar um pouco e observou a amiga com olhos piedosos.

“Não sou psicóloga, Maria. Sou jornalista, como você. Sou mulher, como você. Sou sua amiga. E também sua chefe. E sinto dentro de mim que você precisa dessa matéria tanto quanto ela precisa de você”.

Maria soltou outro palavrão e saiu da sala, batendo a porta. Ela não suportava aquele olhar de pena de Tatiana. Do lado de fora, os colegas que já haviam chegado encaravam sua cara esquentada com dissimulado interesse. Cerca de trinta jornalistas compartilhavam aquele espaço, uma sala grande repleta de mesas de plástico que se conectavam umas às outras formando uma espiral de computadores que quase nunca eram desligados. A redação também se caracterizava pela excelente acústica que levava as conversas de um lado para outro com uma facilidade incrível. Uma discussão, então, voava de uma ponta a outra em questão de segundos.

Revirando os olhos e deixando a lembrança da discussão de lado, Maria voltou à sua mesa munida do tão sonhado café. Com o primeiro gole, ela sentiu que renascia. A raiva não tinha ido embora, claro que não. Há meses que ela estava ali, dentro de Maria, a hospedeira perfeita. Até porque, depois de todo aquele tempo, Maria e sua raiva haviam aprendido a conviver.

Suspirando, ela ligou a tela do computador e buscou o e-mail que Tatiana tinha enviado na noite anterior. O conteúdo do texto era sucinto, mas trazia muitos documentos em anexo. Por um segundo, Maria admirou a capacidade de sua editora em conseguir reunir tanta documentação em tão pouco tempo. Algumas eram, inclusive, confidenciais. Tati tinha boas fontes na polícia, isso estava claro.

O primeiro era o boletim de ocorrência do desaparecimento de uma garota de quinze anos. Maria abriu e fechou o documento sem uma leitura muito profunda. Nesse primeiro momento, tudo que queria era medir como reagiria ao saber o que havia acontecido com Mariana.

O segundo documento era uma cópia do relatório de perito que registrava como Mariana tinha sido encontrada e o estado de seu corpo sem vida era explicado com todas as minúcias. Maria também fechou o arquivo tão rápido quanto pode. O terceiro anexo era uma declaração do delegado sobre a investigação que a polícia tinha enviado a todos os meios de comunicação.

O último anexo era uma fotografia de Mariana que tinha sido impressa pela família Tavares e colada em vários postes no bairro onde moravam. Nela, a garota de quinze anos sorria, tão jovem e, ao mesmo tempo, tão segura de si. Tão ingênua. Esse anexo Maria não se atreveu a fechar rapidamente e observou com atenção o rosto fresco, os olhos alegres, a esperança que reluzia naquela imagem. Era somente uma garota cheia de vida e energia, alguém que com certeza tivera sonhos e se sentira a dona do mundo, daquela maneira que só os adolescentes sabem fazer. Mariana tinha passado rapidamente desse ápice de juventude e força para se tornar um corpo abandonado em uma piscina. Tinha sido tanto e agora estava morta. A ideia de compreender a ironia por trás desse acontecimento infeliz atraía Maria, mas ela simplesmente não conseguia pensar em se aprofundar naquela história. Enquanto encarava os olhos alegres de Mariana na foto, ela sentia o vazio dentro dela duplicar de tamanho. Todos aqueles sonhos, toda aquela ilusão, já não existiam. De Mariana, tudo que tinha sobrado eram relatórios frios e uma fotografia em preto e branco.

Porém, algo instintivo em Maria lhe dizia que ela estava errada. Não era somente aquele punhado de documentos que Mariana tinha deixado atrás de si; ela tivera uma vida breve, mas com certeza havia deixado vestígios da mesma. Outras fotografias, conversas, bilhetinhos trocados na sala de aula, brinquedos, bibelôs, roupas, declarações apaixonadas em redes sociais, discussões, enfim. Rastros de toda uma vida. E agora cabia a ela, Maria, encontrá-los para poder contar a história daquela jovem. Sem conseguir evitar o costume, a jornalista começou a estruturar a matéria em sua cabeça. Não seria uma história sobre a morte trágica de uma garota, e sim sobre a sua vida.

Quando percebeu que estava planejando a matéria que nunca quis escrever, Maria balançou a cabeça e se afastou alguns centímetros do computador, temendo que o contágio se espalhasse. Sua curiosidade jornalística poderia ganhar do seu temor. A história de Mariana lhe atraía, mas também gerava nela um medo tremendo. Mergulhar no caso da adolescente significaria revisitar pedaços de sua própria história, partes sombrias que ela passara os últimos seis meses tentando esquecer.

Porém, Tatiana não lhe havia dado uma saída e, com um sentimento de resignação, Maria levantou a cabeça e encarou a redação ao seu redor. Seus colegas seguiam apurando fatos, discutindo ideias, batendo nas teclas do computador. O tempo parecia estar sempre um pouco mais acelerado ali dentro. Só que nos últimos tempos, Maria se sentia alheia ao ritmo dos demais, como se estivesse presa em uma bolha imaginária, um espaço hermético só seu. A história de Mariana Tavares parecia querer perfurar a segurança de sua bolha para levá-la de volta ao mundo real. E isso era assustador.

Um ruído no computador chamou a atenção de Maria. Havia chegado outro e-mail de sua querida editora. Antes de abrir o envelopinho digital, Maria arriscou uma olhadela à sala de reuniões, mas Tatiana continuava lá dentro, com a porta fechada.

Por favor, não me odeie, Ma. Não quero me afastar de você, então mesmo que vc me ataque com unhas e dentes eu estarei aqui. Mas também não posso deixar de dizer o que penso porque nossa amizade sempre se baseou na honestidade. Então lá vai. Você me disse uma vez que não queria ser definida como vítima. Eu admiro essa determinação em seguir em frente e superar seus problemas, sempre te disse isso. Mas também acho que vc está em um estado de negação. Não querer ser vítima não significa não ter que lidar com o fato vivido. Talvez por isso a reportagem sobre a Mariana seja tão importante, para que você perceba que não há vergonha em ser vítima e também ser muito mais que isso. E também acho que essa garota precisa que alguém conte sua história. Dê uma chance à matéria. Se em alguns dias você continuar decidida que não pode escrevê-la, eu passo a tarefa pra outra pessoa.

O resto do dia passou como um borrão. A cabeça de Maria tinha dado voltas e mais voltas. Por um lado, a jornalista se sentia mais tranquila por causa da promessa de Tatiana: tudo que ela tinha que fazer era disfarçar por uns dias e depois dizer à chefinha que realmente não conseguiria se dedicar à pauta. Mas, por outro lado, Maria tinha uma curiosidade insaciável que, quando ativada, não parava de coçar até que ela encontrasse as respostas que necessitava. Sem conseguir se conter, ela passou o dia abrindo e fechando notícias sobre o caso Mariana, lendo matérias que seu próprio portal e todos os outros meios da cidade haviam publicado sobre a garota. Maria dizia a si mesma que era só curiosidade, que não se deixaria fisgar pela história. Que não mudaria de ideia. Mas, pouco a pouco, ia ficando mais interessada e, ao invés de sua curiosidade ser aplacada, tudo que havia lido sobre o caso só fez com que mais perguntas surgissem em sua mente.

Quem era Mariana Tavares? Como havia desaparecido? Por que ninguém tinha visto nada? O que tinha acontecido com a garota nas horas entre o momento que sua família reportou a desaparição e o instante que seu corpo fora encontrado? O que tinha acontecido antes de tudo isso para que o desenlace de Mariana fosse tão brutal?

Ao final da tarde, com dor de cabeça e os olhos ardendo, Maria percebeu com assombro que não tinha comido nada desde o café da manhã. Ela bocejou com força e coçou os olhos doloridos.

“Cê tá viva, Maria?, brincou Fabrícia, dirigindo-se à colega pela primeira vez desde a manhã. Maria encarou a companheira e viu que Fabrícia estava se aprontando para ir embora.

“Que horas são?, perguntou, olhando pela janela e sentindo uma leve ansiedade ao perceber que o sol já estava se pondo.

“Hora de ir pro bar beber uma! Vamos fazer um happy hour com o pessoal, quer vir?”

A oferta de Fabrícia era simpática e até um pouco atrativa. Beber uma cervejinha não era má ideia, não depois do dia intenso que Maria tinha vivido. Mas ela nem mesmo considerou a opção. Fazia meses que negava qualquer convite que implicasse estar fora de casa depois do pôr do sol. Sair à noite deixava Maria num estado de nervos que ela simplesmente não podia suportar.

“Obrigada, Fabri, mas tô tão cansada… Só quero chegar em casa e capotar”.

Fabrícia assentiu, sem insistir. Maria observou enquanto a colega se encaminhava em direção a um grupinho de companheiros que esperava o elevador. Eles se foram falando e rindo alto. Maria ficou para trás. Ela faria o seu caminho de volta para casa assim, sozinha, e também sozinha chegaria ao seu apartamento minúsculo, mas totalmente inalcançável do alto de seus dez andares. Somente quando fechasse a porta atrás de si, ela respiraria tranquila de novo. Sozinha, sim, mas segura. Era tudo que ela precisava.

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