Entrevista com Aharon Appelfeld

Jacobo Kaufmann
Tradução: Rafael Rocca dos Santos

Nota do Editor: o autor da entrevista, Jacobo Kaufmann, gentilmente concedeu permissão para traduzir sua entrevista com o grande autor Aharon Appelfeld. O contato foi estabelecido por meio de Juan Zapato, editor da espanhola La torre de Babel Ediciones, na qual foi publicada uma versão da entrevista. O texto-fonte para a presente tradução é aquele publicado na revista Raízes, nº 82 (2010).


Chove torrencialmente e faz muito frio. É quase noite, ou ao menos assim parece porque escurece cedo durante o inverno israelense. O carro avança lentamente pela frondosa rota da colina. Há de se dirigir com muito cuidado, mas não quero me atrasar. Quero chegar pontualmente ao encontro com meu entrevistado, em sua casa, não longe de Jerusalém. Atravesso um pequeníssimo jardim e, como em ocasiões anteriores, bato à porta de seu estúdio. Em seguida, abre-se uma pequena janela, na qual aparece o rosto sorridente do escritor Aharon Appelfeld, que, como é habitual, se desculpa por ter se esquecido de trazer a chave. Espero um momento. Ele a encontrou e, ao abrir a porta, me diz, afetuosamente:

Aharon Appelfeld (AA): Chegou? Venha. Tire o casaco. Sente-se. Vamos tomar um chá.

O estúdio, com suas paredes brancas, é sóbrio e acolhedor. A primeira coisa que se vê é uma mesa grande abarrotada de papeis, rodeada de pilhas de livros, revistas, pastas e mais papeis. Por toda a extensão das paredes se estende a biblioteca, na qual assomam livros do rabino Najman de Bratislava, A montanha mágica de Thomas Mann, O dote nupcial de Agnon, obras de Kafka, Phillip Roth, Tchekov, Saul Bellow e Isaac Bábel em uma ordem que somente ele conhece. Em outras estantes estão seus próprios livros em hebraico e em outros trinta e um idiomas aos quais foram traduzidos.

Jacobo Kaufmann (JK): Como está? (pergunto, tirando o casaco).

AA: Está vendo. Como sempre. Escrevendo uma linha. Apagando outra. Inventando melodias. Compondo… Trouxe tudo? O gravador? A máquina fotográfica? Venha, a água está quente.

JK: Um livro novo? Trabalhando muito?

AA: Todas as manhãs os funcionários vêm trabalhar. O carpinteiro… O agricultor… Não vejo por que um escritor deve ser exceção.

JK: Trouxe uma lista de perguntas.

AA: As que quiser.

JK: Dizem que noutro dia alguém lhe perguntou se se considera um escritor israelense, porque escreve principalmente sobre temas relacionados à Shoá, suas vítimas, seus sobreviventes, sobre pessoas que perderam tudo e tentaram refazer as suas vidas.

AA: Por isso, de algum modo, sou mais israelense que muitos escritores.

JK: O senhor se encontra em Israel faz já 63 anos.

AA: Precisamente. Cheguei em 1946 quando havia aqui apenas meio milhão de judeus. Agora há seis milhões e meio. Isso quer dizer que cada duas ou três pessoas em Israel são de fato imigrantes. Este é um país de imigrantes, como os que você menciona, e seguirá sendo assim por muitos anos. É um processo que pode se prolongar durante duas ou três gerações. E eu escrevo sobre pessoas que tiveram outra pátria, outro idioma, outras paisagens, pessoas que sempre serão imigrantes, que são a maioria do país. Não é que pretenda descrever a totalidade da imigração, mas sim dar palavra a pessoas que já tiveram um lar, um modo de vida, e os perderam. Certamente que há os assim chamados nativos de Israel, os que se encontram no país depois de sete ou oito gerações, mas também aqueles que são descendentes de imigrantes. Este é um país de imigrantes, digo amiúde, e quem o nega perpetua e difunde um erro. Convém assinalá-lo porque, às vezes, algumas pessoas criam a sensação de que este é um país aguerrido e belicoso no qual as pessoas vivem de maneira contínua desde há milhares de anos. Mas Israel não se caracteriza nem pode se caracterizar assim.

JK: O que então é um escritor israelense? Qual é a sua identidade?

AA: Quando me perguntam quem sou, costumo responder que tenho três identidades. A identidade essencial e maior é a identidade judaica. Sou judeu. Meus antepassados foram judeus. Pertenço à tribo dos judeus. Minha segunda identidade é a europeia. Sou um judeu que até os treze anos e meio de idade, antes de chegar a Israel, esteve na Europa. Isso apesar de que, então, não tive ocasião de absorver sua cultura, porque em toda a minha vida só fui à escola por um ano. Depois veio o gueto, a marcha forçada, o campo de concentração, a fuga, os bosques… E, no entanto, Europa, com tudo o que se passou com os judeus ali, especialmente a Shoá, se encontra em mim, dentro de mim. Também as vicissitudes europeias dos últimos cem anos. A assimilação judaica às culturas circundantes, a divisão sociológica, o liberalismo, o sionismo, o bundismo, o comunismo, todos esses movimentos tiveram representantes no seio das famílias judias. Eu os vivenciei durante esses treze anos e meio, que são uma parte pequena porém intensa da minha vida. Minha terceira identidade é israelense. Como você bem disse, já moro neste lugar há sessenta e três anos, absorvendo tudo o que ocorreu aqui durante esse período. Trabalhei em um kibutz e em várias fazendas agrícolas. Estive no exército, na reserva. Presenciei os distúrbios políticos, as mudanças. Sou em grande medida uma pessoa deste lugar. Sim, deste lugar. E o mais importante é que falo e escrevo em hebraico. Tenho três identidades, e não sou o único. Muitas pessoas vivem aqui com essas três identidades. Não sinto que haja nisso contradição alguma.

JK: Um escritor judeu, então?

AA: Sou antes de tudo um escritor judeu. Escrevo sobre cem anos de vida judaica, na Europa e aqui. Um escritor não é alguém que se ocupa com sociologia ou psicologia, mas sim alguém que procura expressar sua vida interior por meio de imagens determinadas.

JK: Essas imagens constituem um testemunho?

AA: Minha profissão não é a do testemunho. Consiste em compor e conceber vidas. A vida de indivíduos, a vida em geral. De alguma maneira, o escritor tenta encontrar, ainda que soe um pouco pretensioso, a lei que governa essas vidas, seus desenvolvimentos, seus alimentos, aspirações… Sou um escritor israelense porque meus heróis são personagens abalados e abatidos por temporais que, por fim, às vezes com etapas intermediárias, os trouxeram para cá. O que caracteriza os últimos cem anos da história judaica é justamente os fortes temporais, os abalos constantes. Por essa razão, e mais do que pelo idioma comum herdado de seus pais, esta tribo, a minha tribo judaica, se caracteriza pelas sensações de angústia, os temores e a intranquilidade. É de se esperar que tudo isso tenha chegado a seu fim e que esta seja uma estação na qual possamos permanecer.

Enquanto bebíamos nosso chá e comíamos uns biscoitos, mesclam-se em nossa conversa algumas palavras em ídiche, idioma a que se aferram tenazmente muitos de seus personagens. Appelfeld fala vários idiomas. No lar paterno, assimilado e economicamente cômodo, falava-se alemão. As empregadas domésticas, fiéis à suas nacionalidades e arredores geográficos, falavam em romeno, ruteno, russo ou ucraniano. No gueto e no campo de concentração se falava ídiche, a língua franca de muitos cafés hierosolimitas do pós-guerra. Para ali acode nosso escritor durante seus estudos na Universidade Hebraica. Ali conhece muitos de seus futuros personagens. São os anos em que não tem casa e vive em pensões. Nessa época, escuta com avidez Martin Buber, Gershon Scholem e Dov Sadan, seu professor de ídiche na universidade. Em suas aulas havia somente três alunos, contou-me um dia, sorrindo. Às vezes só um. Falar em ídiche havia se tornado um tabu. Estava se criando um novo Estado, um novo judeu, alto, forte, valente. Alguém que só falava em hebraico e mudava de nome para que se amalgamasse com esse idioma. Mas, para sua grande surpresa, Sadan lhe revela que a maioria dos escritores hebraicos da época são bilíngues!

Aos cafés, que Appelfeld enumera um a um em seu livro Od Hayom Gadol (“Ainda estamos em pleno dia”, 2001; traduzido para o inglês como A Table for One), acorrem escritores e poetas para dialogar, intercambiar vivências e ler mutuamente suas obras em ídiche e hebraico. Desde o início de seu trabalho literário até o presente, meu entrevistado escreve em cafés. Não nesses cafés barulhentos com música de fundo a todo volume, onde todos andam aos gritos, sempre apressados. Nada disso. Seus cafés têm algo de europeu. Aqui, as pessoas estão mais tranquilas. Você se senta em um canto, e pode escrever.

Correm os anos cinquenta e sessenta. Seguem chegando os sobreviventes. Alguns já trabalham e ganham a vida, outros já galgaram diversos níveis de bem-estar econômico, mas continuam vivendo em pensões. Muitos deles não dormem à noite, temendo os pesadelos e o reaparecimento de vivências trágicas que os assaltam de vez em quando. Assim, voltam a surgir imagens de familiares assassinados, de marchas intermináveis pela neve, de cadáveres à beira do caminho, de igrejas ou conventos nos quais, a pedido de seus padres, esconderam-nos, mas também doutrinaram as freiras de famílias despedaçadas e lançadas aos quatro ventos. Amiúde, as tentativas de refazer suas vidas são infrutíferas. Esses personagens aparecem uma e outra vez em livros como Laila ve’od laila (“Noite após noite”, 2001), nos quais também ocorrem enfrentamentos de índole cultural e tentativas quixotescas de preservar a literatura ídiche frente ao esquecimento e os tempos que correm neste momento.

Sipur Jayím (História de uma vida, 1999, sem tradução ao português), o primeiro livro claramente autobiográfico de Aharon Appelfeld, exime-nos de formular perguntas excessivamente pessoais. Nele, narra as peripécias da sua vida em um tom quase lacônico e com muitos poucos adjetivos. Já no prefácio, adverte-nos que “nossa memória é elusiva e seletiva, e retém o que escolhe reter; que retém somente o bom e o agradável. Assim como o sonho, a memória escolhe dentro da espessa corrente dos acontecimentos determinados detalhes, às vezes triviais, guarda-os, e em certo momento os devolve à superfície. Assim como o sonho, também a memória tenta outorgar aos acontecimentos algum significado”. A seguir, começa um relato, não sempre cronológico, no qual descreve a casa de seus pais em Chernovitz, seus avós maternos, agricultores profundamente religiosos, nos Montes Cárpatos, o desenraizamento de seu lar aos sete anos de idade e o assassinato de sua mãe. Depois, a reclusão no gueto e a fatigante marcha ao campo de concentração na Transnístria pelos caminhos enlameados da Ucrânia. Sobrevive a essa marcha graças à determinação de seu pai. Separado dele no campo de concentração, consegue escapar. Durante mais de dois anos, porque é loiro, tem olhos azuis e não parece judeu, o menino passa os invernos em diversas casas e aldeias na qualidade de servente. No verão, esconde-se nos bosques, de cujas bordas observa os incidentes e o final da grande guerra.

AA: Durante aproximadamente dois anos andei por campos e bosques. Há visões que tenho gravadas em minha memória e muitas das quais me esqueci. Mas o temor permanece arraigado em meu corpo, e ainda hoje me detenho após caminhar alguns passos e fico atento. Conseguia apenas falar, mas isso não é de se estranhar, porque durante a guerra não se fala… não se discute… A guerra é como uma estufa para a atenção e o silêncio. A fome por um pedaço de pão, a sede por um copo de água, o temor da morte fazem com que as palavras sejam supérfluas… No gueto e no campo de concentração falavam somente as pessoas que haviam perdido o juízo… As pessoas sãs não falavam… Meu temor pelo uso de palavras vem daí. Uma sequência de palavras corretas me faz suspeitar. Prefiro o tartamudear. No tartamudear ouço a inquietude, o esforço de recuperar às palavras as suas limitações…

AA: Durante a guerra as palavras não falavam, somente os rostos e as mãos. Observando os rostos, você aprendia até que ponto a pessoa que se encontra a seu lado queria te ajudar ou fazer mal… Somente depois da guerra reapareceram as palavras… Às vezes tendemos a evitar as grandes catástrofes, e rodeá-las de palavras para nos defendermos dela… Minhas primeiras palavras escritas foram como gritos desesperados a recuperar o silêncio que me rodeava durante a guerra… Meus sentidos cegos entenderam que esse silêncio se encarnava em minha alma e que, se conseguisse revivê-lo, talvez me voltaria a fala cabal.

AA: Naqueles dias, as pessoas ao meu redor falavam de forma altissonante e com frases feitas. Já em minha infância odiava as palavras grandiloquentes e infladas. Amava, ao invés, as palavras pequenas e silenciosas que evocam aromas e sons… A descoberta de que em Israel a maioria dos escritores hebraicos escreviam em dois idiomas ao mesmo tempo foi para mim estrepitosa. Isso significava que o aqui e o lá não estavam distantes um do outro, como os manifestos vociferavam. Líamos Mendele, Bialik, Steinberg e Agnon em duas línguas. Seu hebraico estava entrelaçado com lugares que eu conhecia, com paisagens de que me lembrava e com alguma melodia esquecida que havia chegado a mim passando pelas orações de meus avós. O hebraico da Agência Judaica e do exército era outro idioma, e esse não estava ligado de modo algum com meu idioma e minhas vivências anteriores.

JK: Logo depois de criado o Estado de Israel, talvez até mesmo antes, houve tentativas de inventar uma nova cultura israelense, uma espécie de panela na qual devia se fundir tudo, esquecendo e renegando seu passado. Que opinião o senhor tem sobre essas tentativas? Como as percebeu quando jovem recém-chegado ao país?

AA: Note que, na Europa, experimentei em minha própria família; já houvera tentativas utópicas de mudar a sociedade…

JK: Em alguns casos à força, verdade?

AA: Em minha família havia comunistas… Meus tios… Ai de mim! Como terminaram seus dias! Eles queriam mudar o mundo. Havia no ar uma tendência, por assim dizer, uma tendência que havia crescido no começo do século vinte, em especial na Rússia soviética, de querer mudar o mundo… A mesma coisa se passou aqui. Uma tentativa de mudar e criar um judeu novo. Quando cheguei a Israel, isso parecia algo muito sério. Supunha-se que logo surgiria aqui um judeu novo. Pareceu-me então que eu não era um judeu novo. Pensar que, muito pouco antes, apenas terminada a guerra, quando os soldados do Exército Vermelho me resgataram, cheguei a crer que eu era o único judeu no mundo que havia conseguido sobreviver… Que já não havia judeus exceto eu…

JK: Transformou-se em judeu novo?

AA: Vã ilusão. Isso é impossível. Os seres humanos não mudam com facilidade. Menos ainda uma comunidade inteira. Mas tenho percepção da tentativa em si. Porque aqueles judeus que haviam sofrido tanto quiseram criar aqui um judeu de alta estatura, forte, loiro… que esqueceu os idiomas que haviam trazido consigo… O intelectualismo era considerado algo indevido ou descartável; a mesma coisa com a religião. Tendia-se a voltar a um certo primitivismo, a ser um povo de camponeses. Tentar a formação de um povo novo… Uma pretensão infantil. No decurso dos anos me dei conta até que ponto… Não esqueça que as primeiras pessoas a chegar aqui no começo do século passado trouxeram consigo um pouco do bolchevismo russo…

JK: Como tudo aquilo influenciou o que o senhor escrevia? (estou a ponto de lhe perguntar, mas lembro que Appelfeld escreveu a resposta em História de uma vida).

AA: Nos anos cinquenta escrevi pouco. Apagava de forma desapiedada o que ia escrevendo. Minha tendência de poupar palavras se ia tornando uma imposição. Nessa época, a literatura era abundante em descrições de paisagens e pessoas. “Fulano escreve de forma detalhada”, costumavam dizer. A amplitude descritiva era considerada épica. Nas primeiras cartas de rejeição que recebi de editores, diziam simplesmente que devia ampliar, encher, completar o quadro. Não há dúvida de que nesses anos transbordavam defeitos na minha forma de escrever, mas não pelas razões que os editores invocavam… Por volta do final dos anos cinquenta, abandonei a ambição de ser um escritor eretz israeli e comecei a me esforçar por ser quem eu era de verdade: um imigrante, um refugiado, um homem que leva dentro de si o menino da guerra, que tem dificuldade de falar e tenta narrar com o mínimo de palavras.

AA: Meu primeiro livro, Ashán (Fumaça, 1962; sem tradução para o português) teve uma recepção entusiasmada. Os críticos opinavam: Appelfeld não escreve sobre a Shoá em si, senão sobre seus aspectos marginais. Sem sentimentalismo. Frases como essas eram consideradas elogiosas, e no entanto já então começaram a me apelidar de “escritor da Shoá”. Não há mote que me irrite mais do que esse. Um escritor, se é escritor, escreve a partir de si mesmo, e geralmente sobre si mesmo, e, se o que escreve é significativo, isso se deve ao fato de ter permanecido fiel a si mesmo, à sua própria voz, seu próprio ritmo.

Até agora, Aharon Appelfeld escreveu quarenta e três livros. Em Badenheim 1939 (Badenheim, Ir Nofesh, 1979), a novela que o consagra, descreve veranistas judeus em uma estação termal imaginária no Império Austro-Húngaro às vésperas de sua deportação. A Shoá acaba de começar, mas suas vítimas, perplexas, ainda não haviam dado conta disso, ou não quiseram se inteirar.

Em Be’et ubeoná ajat (Ao mesmo tempo, 1985, conhecida fora de Israel pelo título em inglês The Healer, ou seja, “O curandeiro”), uma família de judeus assimilados da burguesia vienense viaja aos Cárpatos para consultar um rabino milagreiro. A catástrofe ainda não havia se produzido, mas se intui.

O romance Katerina (1989) lhe outorga fama mundial. Será traduzido a sete idiomas. É o relato estremecedor, em primeira pessoa, de uma humilde criada rutena que, identificada com uma família de judeus ortodoxos mortos em um pogrom, cria Benjamin, único sobrevivente dessa família, como se fora seu. Quando um camponês bêbado e valentão mata Benjamin porque ela não cede a seus avanços sexuais, Katerina não vacila em lhe cravar uma faca e despedaçá-lo como se fosse gado.

Nesses livros, como em muitos outros de nosso autor, a linguagem é simples e direta. As imagens são ricas e o ritmo é implacável, como correspondente à onipresença do destino, um destino poderoso, ao mesmo tempo impostergável e inevitável. Os personagens judeus e não judeus desfilam diante de nossos olhos com todas as suas deficiências e desânimos. Encontramos alguns junto ao rio Prut, que corre desde a Ucrânia, no sopé dos Cárpatos, passando pelos campos férteis da Romênia e da Moldávia. Outros se encontram em cidades da Europa central e oriental, e outros tantos no Israel incipiente ou no atual. Por um lado, personagens cheios de lembranças, traumas e cargas emocionais; outros, de identidade conflituosa, na busca vã de raízes perdidas para sempre.

Em Polín, Eretz Ierucá (“Polônia, país de verdor”, 2005), Jacob Fein, um comerciante próspero, audaz e feito oficial de reserva israelense que reside em Tel Aviv, decide um dia visitar a aldeia de seus pais, sobreviventes da Shoá. Em sua juventude, não prestara muita atenção às suas peripécias, tampouco aos amigos que os visitavam e evocavam com eles paisagens e acontecimentos. A aldeia polonesa não havia mudado muito. Apesar de tudo o que aconteceu durante a guerra, seus habitantes seguem impregnados de velhos preconceitos, de fanatismos religiosos, de receios e ódios atávicos contra os judeus. Com esse pano de fundo, surge a relação amorosa com Magda, a camponesa generosa em cuja casa se abriga, e o encontro com um primo polonês, filho de judeus, que nega sua ascendência e seu parentesco com Jacob. Este é um personagem de segunda geração de imigrantes, aquele “judeu novo” de que falamos antes, altivo, sem temores e não obstante perplexo, com questões sobre suas raízes.

No romance Timión (Perdição, 1993), Karl enfrenta essas mesmas raízes; ele se converteu ao catolicismo como muitos de seus amigos e conhecidos em uma tentativa de se adaptar ao meio e à população rutena circunvizinha, que continua o identificando como tal e termina queimando-o dentro de sua própria casa.

Outra xícara de chá, e seguimos conversando. Não consigo deixar de lhe fazer perguntas sobre sua percepção sobre a sociedade israelense atual.

JK: Qual é a sua opinião sobre a politização religiosa que presenciamos aqui nestes dias?

AA: Tudo isso está muito longe de mim. Sento-me no escritório, e o que me interessa de verdade, o que faço durante grande parte do dia, é encontrar a palavra correta, a frase que tenha melodia, palavras que levem a um sentimento determinado e, na medida do possível, a um ser humano com rosto determinado. A religião em si me interessa porque toda pessoa, de algum modo, assim creio, nutre sentimentos de caráter religioso. Naturalmente não me refiro a uma religião institucionalizada, mas a essa religiosidade que provém de concepções morais, que existe em todos os povos do mundo. É o primeiro sentimento que você encontra nas crianças, uma espécie de assombro, maravilha ou desconcerto diante do universo, ante ao fato de que vivo e existo e que em pouco tempo já não estarei aqui. Esses desconcertos e perplexidades me interessam. Não sou religioso. Menos ainda me interessa a institucionalização da religião. Não gosto quando alguém mistura as coisas do espírito com assuntos de política. Isso não se deve misturar. Cada um desses aspectos deve se manter dentro de seus próprios limites. Odeio as imposições. Mas… Que se pode fazer? Há pessoas que estão tão convencidas que, por exemplo, dirão a você que recitar dez capítulos dos Salmos o ajudará…

JK: Em sua opinião, o Israel de hoje teria de ser diferente?

AA: Não sou homem de utopias. Além disso, respeito as debilidades dos seres humanos. Mais ainda, amo essas debilidades. Aprecio as pessoas com debilidades. Não pretendo que uma sociedade seja perfeita, mas que seja mais ou menos tolerável. Nem tudo o que acontece em um país é agradável ou reconfortante. Há crimes, corrupção… Mas, diga-me: quando na História, e em que lugar do mundo, não foi assim?

JK: Mas quisemos ser um povo exemplar…

AA: Esse povo, enxotado e maltratado durante os mil e quinhentos ou os dois mil anos de sua existência na Europa, dispersado aos quatro ventos, e finalmente massacrado, esse povo segue em pé. Come, bebe, dorme… constrói… (sorriso irônico) De vez em quando se ocupa inclusive com a sua cultura…

JK: Seria Israel o judeu errante entre as nações? Como Israel é percebido na Europa?

AA: Continua existindo o fenômeno da demonização. Não quero generalizar, porque a Europa é grande e há dentro dela muitos segmentos, mas ali, durante muitos anos, os judeus foram vítimas de demonizações. E agora o fato de que Israel, de um modo quase milagroso, retornou à sua pequena terra não é algo que se acaba entendendo em profundidade. A existência dos judeus segue sendo um enigma. Não é um tema simples… Mas, imagine, saio na rua, olho ao meu redor e digo para mim: ah, ali há pessoas que estão indo para o trabalho, mantêm suas famílias, criam seus filhos. Observo as crianças que vão para a escola. Os professores que esperam para instruí-las… O ir e vir… A vida… Todo aquele que ficou num gueto, em um campo de concentração, ou nos bosques, sabe valorizar o que há aqui. Às vezes me surpreende que essas pessoas, depois de sofrer tantas penúrias, vivam como um povo mais ou menos normal.

JK: O senhor pensa que o povo judeu está em perigo?

AA: Não me ocupo de temas tão grandes, de uma existência global de tais dimensões. Ocupo-me do micro, mas é certo que, pela perspectiva do micro, também tento entender um pouco o macro. Pode-se dizer que os judeus sempre estiveram em perigo. Não me lembro de um único dia em que não estiveram. Mas de uma maneira muito peculiar, difícil de entender, sempre fomos um povo otimista. Claro que em todo otimismo há um componente de estupidez…

JK: Não aprendemos com a história?

AA: Somos alunos difíceis.

JK: Teríamos de repetir de ano?

AA: Possivelmente.

JK: Seria preciso escrever mais sobre temas relacionados com a Shoá?

AA: Entristece-me que em Israel sejamos muito poucos os que escrevemos sobre eles e sobre os refugiados e imigrantes dispersos pelo mundo…

Fizeram-no Agnon e Bashevis Singer, penso comigo mesmo. Sobre o desarraigar do homem, Kafka. Tanto este quanto Agnon deixaram marcas em Appelfeld. Com Agnon e seu mundo nosso autor se entendia muito bem.

JK: Alguns opinarão ou lhe dirão que a sua literatura não é suficientemente israelense.

AA: Isso é lá com eles.

JK: Voltemos ao senhor, digo, à sua maneira de escrever, aos aspectos musicais, à construção das frases. Diria também, à invenção de um idioma próprio. Vejo em seus escritos combinações de palavras e ideias que não vejo em nenhum outro escritor. De onde surge tudo isso?

AA: São muitos anos até encontrar a sua própria voz. Porque você tem muitas vozes, e lhe parece que esta é a voz, ou que a voz seja aquela outra. Até que um dia a descobre. Os líderes costumam falar em voz alta porque sabem de tudo e têm soluções para tudo. Alguns escritores se creem obrigados a escrever em voz alta. Mas a voz do escritor deve ser modesta porque, contrariamente aos líderes, que falam em clichês, ele não está certo de todas as coisas. Um escritor sabe que essas expressões não têm nada a ver com sua profissão. No geral, convém que um escritor possua bons olhos e bons ouvidos. Não se pode ser um escritor sem música, tampouco um escritor sem imagens visuais. Você deve notar se tem uma voz… O problema consiste no modo pelo qual escolhe as palavras para que essas palavras… algo assim… (cantarola), e pouco a pouco vão se formando combinações de palavras enquanto você canta a sua melodia. Em geral, quando o escritor é ruim ou muito jovem, os detalhes o subjugam. À medida que você vai amadurecendo, você se dá conta de que está rodeado de centenas de detalhes. O problema consiste em achar em meio a essas centenas os detalhes que estão relacionados com o ambiente e que deem uma ideia das personalidades. Não é nada fácil. Como lhe dizia no começo de nossa conversa, o trabalho consiste em escrever uma linha, apagar a outra, buscar, compor…

JK: O que acontece com o idioma e a música nas traduções de suas obras?

AA: Nos idiomas que domino posso dizer que isso ou aquilo é bom, aceitável, admissível. Nos demais, nos que não entendo, uma única palavra é outra coisa. Não posso opinar, somente esperar. Meus livros foram traduzidos a uns trinta e um idiomas, entre eles o chinês e o japonês.

JK: Mas certamente conversou com gente que leu seus livros em tradução…

AA: Sim. Há lugares em que me dizem que conseguiram entender o que eu quis transmitir. Por exemplo, na França, na Itália, na Alemanha…

JK: Seus livros também foram traduzidos para o inglês, ao polonês, ao norueguês, ao tcheco… também para o espanhol…

AA: Lamentavelmente muitos poucos de meus livros foram traduzidos ao espanhol.

JK: Por algum motivo em especial?

AA: Realmente não sei. Não tenho ideia do motivo pelo qual traduziram tantos livros meus na Holanda, Hungria ou Suécia, e tão poucos na Espanha.

JK: Pode ser uma questão de modismo ou de pertencimento a correntes políticas determinadas?

AA: Não sei. Há pouco estive na Espanha. Por sorte, me acompanhou a minha esposa, que, como sabe, é Argentina e fala espanhol. Sabia que publicaram um livro meu em catalão e que nesse idioma propõem publicar vários outros?

JK: Parabéns! E na América Latina?

AA: Sobre a América Latina me dizem sempre que a iniciativa deve partir da Espanha…

JK: Estou lhe fazendo muitas perguntas. Devia ter feito alguma que não fiz? Talvez de índole política? Sobre ideologias?

AA: Não sou um escritor que dá declarações. Há escritores que gostam de dar declarações políticas. Não somente quando escrevem. Não dou declarações, nem ando por aí proclamando coisas para que todos se inteirem das minhas inclinações políticas. Sei que os que dão declarações diante do grande público e da imprensa são considerados por alguns como mais vigentes e percebidos por certas pessoas como mais inteligentes ou talentosos. Eu me conformo com o que tenho.

JK: Por último, o senhor crê que a literatura atual está decaindo?

AA: Bem, sempre existiu má literatura. Como dizemos em ídiche: “Kai und Shpai”, é questão de morder e cuspir. A boa literatura não abunda. Em nenhuma parte do mundo. Não são muitas as pessoas que parecem ter necessidade de uma literatura com valor estético. Não creio que isso seja diferente em Israel. Cada vez surgem mais autores, mas muito poucos são escritores de verdade.

Já havia escurecido. O tempo passou voando. Despeço-me de Aharon Appelfeld com a promessa mútua de seguir dialogando em breve. Vou embora. Finalmente parou de chover, mas o caminho a Jerusalém segue encharcado. Agora, enquanto dirijo, lembro-me de outras mil perguntas que devia ter formulado. Consolo-me com o pensamento de que não faltará ocasião.

Entretanto, devo informar a nossos leitores que aqui [em Jerusalém] e em outros países Appelfeld ganhou mais prêmios e distinções que qualquer outro autor israelense, entre eles o prestigioso prêmio Israel de Literatura e o Prêmio Médici, e que seis universidades lhe conferiram um doutorado honoris causa. Em mais de uma ocasião lhe propuseram o Prêmio Nobel. Aqui não conheço nenhum escritor que o mereça mais.

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