Abraham Flexner
Tradução de Fernando Morato
I
Não é um fato curioso que num mundo mergulhado em ódios irracionais que ameaçam a própria civilização, homens e mulheres – velhos e jovens – se desliguem totalmente ou parcialmente dessa vida diária de raiva para se dedicar ao cultivo da beleza, à expansão do conhecimento, à cura de doenças, ao alívio do sofrimento, como se fanáticos não estivessem agora mesmo engajados em espalhar dor, fealdade e sofrimento? O mundo sempre foi um lugar triste e confuso – ainda assim, poetas e artistas e cientistas têm ignorado os fatores que, se notados, os paralisariam. De um ponto de vista prático, vida intelectual e espiritual são, na superfície, formas de atividade inúteis, com as quais os homens condescendem porque buscam para si próprios mais satisfação do que seria obtida de outros modos. Neste artigo, eu devo me concentrar na questão sobre até que ponto a busca dessas satisfações inúteis inesperadamente se mostram fontes de onde derivam inimaginável utilidade.
Nós ouvimos dizer repetidamente que a nossa é uma era materialista, que a principal preocupação devia ser a distribuição de bens materiais e oportunidades mundiais. O justificado clamor daqueles que, não por sua própria culpa, são destituídos de oportunidade e de uma parcela justa dos bens mundiais desvia um número cada vez maior de estudantes dos estudos que seus pais fizeram para o igualmente importante e não menos premente campo de estudos sociais, econômicos e da administração pública. Eu não me oponho a essa tendência. O mundo em que vivemos é o único cuja existência os nossos sentidos podem garantir. Se ele não for melhorado, milhões vão continuar indo para a sepultura calados, tristes e amargurados. Eu mesmo tenho investido anos defendendo que as nossas escolas devem se tornar mais conscientes a respeito do mundo no qual os seus estudantes vão passar as suas vidas. Às vezes imagino se aquela tendência não está tomando força demais e se haverá oportunidades suficientes para uma vida plena se o mundo for esvaziado de algumas das coisas inúteis que lhe dão um significado espiritual; em outras palavras, se nossa concepção sobre o que é útil não se estreitou demais para se adequar às errantes e caprichosas possibilidades do espírito humano.
Podemos olhar essa questão de dois pontos de vista: o científico e o humanístico ou espiritual. Vamos tomar primeiro o científico. Lembro de uma conversa que tive há alguns anos sobre o assunto em questão. O sr. Eastman, um inteligente homem de visão, agraciado com bom gosto em música e artes, estava dizendo para mim que pretendia devotar sua vasta fortuna para a promoção da educação em assuntos úteis. Eu arrisquei lhe perguntar quem ele via como o trabalhador mais útil da ciência mundial. Ele respondeu instantaneamente: “Marconi”. Eu o surpreendi dizendo, “independente do prazer que obtemos do rádio ou ainda que a transmissão sem fio e o rádio tenham melhorado a vida humana, a parte devida a Marconi era desprezível”.
Não vou esquecer da sua surpresa na ocasião. Ele me pediu para que explicasse. Respondi o seguinte:
“Sr. Eastman. Marconi era inevitável. O real crédito de tudo que foi feito no campo da transmissão sem fio pertence, na medida em que tal crédito fundamental pode ser definitivamente atribuído a alguém, ao professor Clerk Maxwell, que em 1865 fez uns cálculos estranhos e abstrusos sobre magnetismo e eletricidade. Maxwell reproduziu as suas equações abstratas em um tratado publicado em 1873. No encontro seguinte da British Association, o professor H. J. S. Smith de Oxford declarou que ‘nenhum matemático pode folhear esses volumes sem se dar conta de que eles contêm a teoria que mais contribuiu para os métodos e os recursos da matemática pura’. Outras descobertas completaram os trabalhos teóricos de Maxwell nos quinze anos seguintes. Finalmente, em 1887 e 1888, o problema científico que ainda persistia – a detecção e a demonstração das ondas eletromagnéticas que carregam sinais de transmissão sem fio – foi resolvido por Heinrich Hertz, um funcionário dos laboratórios Helmholtz de Berlim. Nem Maxwell nem Hertz tinham a mínima preocupação com a utilidade do seu trabalho; tal pensamento nunca passou por suas mentes. Eles não tinham objetivo prático. O inventor, no sentido legal, foi, sim, Marconi, mas o que Marconi inventou? Apenas o último detalhe técnico, acima de tudo o hoje obsoleto aparelho receptor chamado coesor, quase universalmente descartado”.
Hertz e Maxwell podem não ter inventado nada, mas precisamente os seus trabalhos teóricos inúteis foram usados por um técnico esperto e criaram um novo método de comunicação, utilidade e diversão aproveitado por homens cujos magros méritos obtiveram fama e ganharam milhões. Quem eram os homens úteis? Não Marconi, mas Clerk Maxwell e Heinrich Hertz. Hertz e Maxwell eram gênios sem pensamento prático. Marconi era um inventor esperto sem pensamento, mas prático.
A menção ao nome de Hertz lembrou o sr. Eastman das ondas hertzianas e eu sugeri que ele perguntasse aos físicos da Universidade de Rochester o que exatamente Hertz e Maxwell tinham feito; mas de uma coisa, eu adverti, ele poderia estar seguro: que eles tinham feito seus trabalhos sem pensar em uso e que por toda a história da ciência as descobertas realmente grandes que se provaram ao final benéficas para a humanidade foram feitas por homens e mulheres que eram movidos não pelo desejo de serem úteis, mas simplesmente pelo desejo de satisfazer a sua curiosidade.
“Curiosidade?”, perguntou o sr. Eastman.
“Sim”, eu respondi, “curiosidade, que pode ou não resultar em algo útil, é provavelmente a mais impressionante característica do pensamento moderno. Não é nova. Ela recua a Galileu, Bacon e Sir Isaac Newton e deve ser completamente desimpedida. Instituições de ensino deveriam se dedicar ao cultivo da curiosidade e quanto mais elas se desviarem de considerações sobre aplicação imediata, mais provavelmente vão contribuir não apenas para o bem-estar humano, mas também para a igualmente importante satisfação do interesse intelectual que pode ser considerada a real paixão dominante da vida intelectual moderna”.
II
O que se disse de Heinrich Hertz trabalhando quieto e despercebido num canto do laboratório Helmholtz nos últimos anos do século dezenove vale para cientistas e matemáticos por todo o mundo nos séculos passados. Vivemos num mundo que ficaria perdido sem a eletricidade. Se alguém perguntasse qual seria uma descoberta da maior importância, do mais imediato e mais amplo alcance em uso prático, estaríamos de acordo a respeito da eletricidade. Mas quem fez as descobertas fundamentais das quais resultou todo o desenvolvimento elétrico dos últimos cem anos?
A resposta é interessante. O pai de Michael Faraday era um ferreiro; o próprio Michael foi aprendiz de encadernador. Em 1812, quando ele já tinha vinte e um anos, um amigo o levou ao The Royal Institution, onde ele ouviu Sir Humphrey Davy dar quatro palestras sobre temas de química. Ele tomou notas e enviou uma cópia delas para Davy. Logo no ano seguinte, 1813, tornou-se assistente no laboratório de Davy, trabalhando com problemas de química. Dois anos mais tarde, acompanhou Davy numa viagem ao Continente europeu. Em 1825, quando tinha trinta e quatro anos, tornou-se diretor do laboratório da The Royal Institution, onde passou cinquenta e quatro anos de sua vida.
O interesse de Faraday logo passou da química para a eletricidade e para o magnetismo, aos quais ele dedicou o resto da sua vida ativa. Oersted, Ampère e Wollaston já haviam realizado trabalhos importantes nesse campo, apesar de desconexos. Faraday dirimiu as dificuldades que ainda não haviam sido resolvidas e, em 1841, conseguiu induzir uma corrente elétrica. Quatro anos depois, começou um segundo e igualmente brilhante período de sua carreira, quando ele descobriu os efeitos do magnetismo em luz polarizada. As suas descobertas anteriores haviam levado a um número infinito de aplicações práticas através das quais a eletricidade aliviou as agruras da vida moderna e aumentou suas oportunidades. As suas descobertas posteriores, então, foram bem menos profícuas em resultados práticos. Que diferença isso teve para Faraday? Nenhuma. Em nenhum período da sua singular carreira ele esteve preocupado com utilidade. Ele estava interessado em desembaraçar as charadas do universo, primeiro as charadas químicas e, mais tarde, as charadas físicas. Para ele, a questão da utilidade nunca se colocou. Qualquer suspeita de utilidade teria restringido a sua curiosidade incansável. No final, houve uma utilidade, mas nunca foi um critério ao qual as suas experiências incessantes poderiam se submeter.
Na atmosfera que hoje envolve o mundo, talvez seja o momento de enfatizar o fato de que o papel representado pela ciência em tornar a guerra mais destrutiva e mais terrível foi um subproduto inconsciente e involuntário do ativismo científico. Lord Rayleigh, presidente da British Association for Advancement of Science, num discurso recente, apontou em detalhes como a loucura humana, não a intenção dos cientistas, é responsável pelo uso destrutivo das forças empregadas na guerra moderna. O estudo inocente de química sobre os compostos de carbono, que levou a inúmeros resultados benéficos, mostrou que a ação do ácido nítrico em sustâncias como o benzeno, glicerina, celuloide etc. resulta não apenas numa benéfica indústria de tingimento de anilina, mas também na criação da nitroglicerina, que foi usada para o bem e para o mal. Algum tempo depois, Alfred Nobel, voltando-se para esse tema, demonstrou que ao misturar nitroglicerina com outras substâncias era possível produzir um explosivo sólido que podia ser manuseado facilmente – ou seja, a dinamite. É à dinamite que devemos o progresso na mineração, na construção de túneis para ferrovias como os que agora cruzam os Alpes e outras cadeias montanhosas; mas, claro, políticos e soldados abusaram da dinamite. Os cientistas não são, entretanto, mais culpáveis do que seriam por um terremoto ou uma enchente. A mesma coisa pode ser dita a respeito de gás venenoso. Plínio morreu por respirar dióxido de enxofre na erupção do Vesúvio quase dois mil anos atrás. O cloro não foi isolado por cientistas para fins bélicos, e isso também é verdade a respeito do gás de mostarda. Essas substâncias poderiam ser limitadas aos usos benéficos, mas, quando o aeroplano foi aperfeiçoado, homens cujos corações eram envenenados e cujos cérebros eram podres perceberam que o aeroplano, uma invenção inocente, resultado de um longo esforço científico e desinteressado, podia ser transformado em um instrumento de destruição, com o que ninguém havia sonhado e que ninguém havia deliberadamente buscado.
No domínio da matemática complexa, casos quase inumeráveis podem ser citados. Por exemplo, o trabalho mais abstruso de matemática dos séculos dezoito e dezenove foi a “geometria não euclidiana”. Seu inventor, Gauss, embora reconhecido por seus contemporâneos como um distinto matemático, não ousou publicar seu trabalho sobre “geometria não euclidiana” por um quarto de século. Em verdade, a própria teoria da relatividade, com todos os seus infinitos desdobramentos práticos, seria impossível sem o trabalho que Gauss fez em Göttingen.
Uma vez mais, o que é hoje conhecido como “teoria dos grupos” era uma teoria matemática abstrata e sem aplicação. Ela foi desenvolvida por um homem que era curioso e cuja curiosidade e entusiasmo o levaram a caminhos estranhos; mas a “teoria dos grupos” é hoje a base da teoria quântica e do espectroscópio, que está sendo usado diariamente por pessoas que não fazem a mínima ideia de como ele surgiu.
O cálculo de probabilidades foi descoberto por matemáticos cujo real interesse era a racionalização dos jogos de azar. O propósito prático que eles buscavam fracassou, mas foram fornecidas as bases científicas para todos os tipos de seguros e vastas áreas da física do século dezenove se baseiam nele.
De um número recente da Science eu cito o seguinte:
A estatura de gênio do professor Albert Einstein atingiu novas alturas quando foi divulgado que o conhecido físico e matemático desenvolveu há quinze anos uma matemática que hoje está ajudando a desvendar os mistérios da admirável fluidez do hélio em temperaturas próximas do zero absoluto. Antes do simpósio sobre ação intramolecular na American Chemichal Society, o professor F. London, da universidade de Paris, agora professor visitante da Duke University, creditou ao professor Einstein o conceito de um gás “ideal”, que apareceu em artigos de 1924 e 1925.
Os relatórios de Einstein de 1925 não eram sobre teoria da relatividade, mas discutiam problemas aparentemente sem nenhum significado prático naquele momento. Eles descreviam a degeneração de um gás “ideal” nos limites inferiores da escala de temperatura. Porque se sabia que todos os gases se condensam em líquidos nas temperaturas em questão, os cientistas ignoraram o trabalho de Einstein de quinze anos atrás.
Entretanto, o comportamento recém-descoberto do hélio líquido deu ao conceito secundário de Einstein uma nova utilidade. A maior parte dos líquidos aumenta a viscosidade, tornam-se mais grudentos e fluem com menos facilidade quando ficam mais frios. A expressão “mais frio que melado em janeiro” é o conceito de viscosidade dos leigos, e ele está correto.
Hélio líquido, entretanto, é uma exceção desconcertante. Na temperatura conhecida como ponto “delta”, apenas 2.19 graus acima do zero absoluto, o hélio líquido flui melhor do que em temperaturas maiores e, na verdade, o hélio líquido é tão nebuloso quanto um gás. Outros enigmas do seu comportamento estranho incluem uma enorme capacidade de conduzir calor. No ponto delta, ele é cerca de 500 vezes mais eficaz do que cobre na temperatura ambiente. O hélio líquido, com essas e outras anomalias, tem sido um enorme mistério a físicos e químicos. O professor London afirmou que a interpretação do comportamento do hélio líquido pode ser melhor explicada o considerando um gás “ideal” de Bose-Einstein, usando a matemática desenvolvida em 1924-25 e alguns dos conceitos de condução elétrica dos metais. Por analogia, a formidável fluidez do hélio pode ser parcialmente explicada desenhando a fluidez como sendo de alguma forma semelhante à de elétrons soltos no metal, que explicam a condução elétrica.
Olhemos em outra direção. Nos domínios da medicina e da saúde pública, a ciência da bacteriologia teve por meio século um papel dominante. Qual é a sua história? Logo depois da guerra franco-prussiana de 1870, o governo alemão fundou a grande universidade de Estrasburgo. Seu primeiro professor de anatomia foi Wilhelm von Waldeyer, depois professor de anatomia em Berlim. Nas suas Reminiscências, ele relata que entre os estudantes que teve em Estrasburgo no primeiro semestre havia um jovem pequeno, inconspícuo, independente de dezessete anos chamado Paul Ehrlich. O curso normal de anatomia consistia na dissecação e no exame de tecidos ao microscópio. Ehrlich dava pouca ou nenhuma atenção à dissecação, mas, como Waldeyer nota nas Reminiscências:
Reparei logo que Ehrlich trabalhava longas horas no seu posto, completamente absorto na observação microscópica. Mais: seu posto se cobriu com manchas coloridas e suas respectivas descrições. Quando um dia eu o vi sentado trabalhando, fui até ele e perguntei o que estava fazendo com todas aquelas variedades de cores sobre sua mesa. Então esse jovem estudante de primeiro semestre, que estava supostamente fazendo uma disciplina normal de anatomia, olhou para mim e disse tranquilamente: “ich probiere”. Isso pode ser traduzido meio livremente como “estou testando” ou “estou apenas me divertindo”. Eu respondi: “muito bem. Continue com seu divertimento”. Logo vi que, sem nenhum ensino ou orientação da minha parte, eu tinha em Ehrlich um estudante de qualidade incomum.
Sabiamente, Waldeyer deixou-o sozinho. Ehrlich passou precariamente pelo curriculum de medicina e acabou por conseguir o diploma antes de mais nada porque era óbvio aos seus professores que ele não tinha nenhuma intenção de exercer a medicina. Depois, ele foi para Breslau, onde trabalhou com o professor Cohnheim, professor do nosso dr. Welch, fundador e executor da Johns Hopkins Medical School. Não acredito que a ideia de utilidade tenha jamais passado pela mente de Ehrlich. Ele era interessado. Ele era curioso; ele continuou se divertindo. Claro que o seu divertimento era guiado por um instinto profundo, mas havia uma motivação puramente científica, não utilitária. Qual foi o resultado? Koch e seus companheiros estabeleceram uma nova ciência, a ciência da bacteriologia. Os experimentos de Ehrlich eram agora aplicados por um colega, Weigert, para colorir bactérias e portanto auxiliar na sua diferenciação. O próprio Ehrlich desenvolveu o método de colorir o esfregaço de sangue com os corantes nos quais se baseia nosso moderno conhecimento de morfologia dos corpúsculos do sangue, vermelhos e brancos. Não passa um dia sem que milhares de hospitais nos quais a técnica de Ehrlich seja usada em exames de sangue. Portanto, o divertimento sem sentido na sala de dissecação de Waldeyer em Estrasburgo se tornou um fator determinante da prática diária da medicina.
Vou dar um exemplo da indústria, escolhido ao acaso porque há vários. O professor Berl, do Carnegie Institute of Technology (Pittsburgh), escreve o seguinte:
O fundador da moderna indústria de seda artificial foi o conde francês Chardonnet. Sabe-se que ele usava uma solução de algodão nitrosado em álcool etílico e que prensava essa solução em tubos que serviam para coagular os filamentos de nitrato de celulose. Após a coagulação, esse filamento era exposto ao ar e enrolado em bobinas. Um dia, Chardonnet inspecionava sua fábrica francesa em Besançon. Por acidente, a água que devia coagular o nitrato de celulose parou. Os operários descobriram que o giro funcionou muito melhor sem água do que com ela. Esse foi o nascimento de um processo importante, que hoje é usado em grande escala.
III
Não estou sugerindo, nem por um segundo, que tudo o que acontece em laboratórios vai resultar em um inesperado uso prático ou que um uso prático seria a sua real justificação. Antes de mais nada, estou defendendo a abolição da palavra “uso” e a libertação do espírito humano. Para ser preciso, nós devemos soltar algumas amarras; para ser preciso, devemos desperdiçar alguns dólares preciosos. Mas o que é infinitamente mais importante é que nós devemos quebrar as algemas do espírito humano e libertá-lo para aventuras que, no nosso tempo, levaram, por um lado, Hale, Rutherford e Einstein e seus pares a milhões e milhões de milhas adentro nos domínios do espaço e, do outro, libertaram a energia aprisionada nos átomos. O que Rutherford e outros como Bohr e Milikan fizeram a partir da pura curiosidade para entender o funcionamento do átomo libertou forças que podem transformar a vida humana; mas este último resultado prático, inesperado e imprevisível, não serviu de justificativa para Rutherford ou Einstein ou Milikan ou Bohr ou qualquer de seus pares. Deixe-os em paz. Nenhum administrador educacional pode guiar os canais nos quais esses ou outros homens devem trabalhar. O desperdício, eu admito, parece prodigioso. Na realidade, não o é. Todo o desperdício que pode ser somado ao desenvolvimento da ciência da bacteriologia é nada comparado às vantagens que se acumularam das descobertas de Pasteur, Koch, Ehrlich, Theobald Smith e dezenas de outros – vantagens essas que nunca seriam acumuladas se a ideia de usos possíveis tivesse passado por suas mentes. Esses grandes artistas – porque cientistas e bacteriologistas o são – disseminaram o espírito que prevalece em laboratórios nos quais seguiam o fio da sua curiosidade natural.
Não estou criticando instituições como escolas de engenharia ou de direito, nas quais o tema da utilidade necessariamente predomina. Não infrequentemente há viradas de eventos e dificuldades práticas encontradas em indústrias e em laboratórios que estimulam investigações teóricas que podem ou não resolver os problemas pelos quais foram sugeridos, mas que podem também abrir novos horizontes num primeiro momento inúteis mas prenhes de futuras conquistas, práticas e teóricas.
A rápida acumulação de conhecimento “inútil” ou teórico criou uma situação na qual é cada vez mais possível abordar problemas práticos com um espírito científico. Não apenas inventores mas cientistas “puros” têm se dedicado a esse esporte. Eu já mencionei Marconi, um inventor que, ainda que seja um benfeitor da raça humana, na realidade apenas “usou o cérebro de outro”. Edison pertence à mesma categoria. Pasteur era diferente. Ele era um grande cientista, mas não era avesso a abordar problemas práticos – como, por exemplo, as condições dos vinhedos franceses ou a produção de cerveja – e não apenas resolver o problema imediatamente, mas também arrancar dos problemas práticos alguma conclusão teórica de longo alcance, “inútil” no momento mas provavelmente “útil” de alguma maneira inesperada mais tarde. Ehrlich, fundamentalmente especulativo em sua curiosidade, voltou-se furiosamente para o problema da sífilis e o perseguiu de maneira canina até que a solução de uso prático imediato – a descoberta da arsfenamina – fosse encontrada. A descoberta da insulina por Banting para o uso na diabetes e o extrato de fígado por Minot e Whipple para o uso de anemia perniciosa pertencem à mesma categoria: ambas foram feitas por homens predominantemente científicos, que compreenderam que muito conhecimento “inútil” havia sido acumulado por homens não preocupados com suas consequências práticas, mas que, àquele tempo, já estava maduro para que se tirassem questões práticas dele de uma maneira científica.
Torna-se óbvio então que é preciso tomar cuidado ao atribuir uma descoberta científica a uma única pessoa. Praticamente toda descoberta tem uma longa e precária história. Alguém encontra um pedaço aqui, outro um pedaço acolá. Um terceiro passo acontece mais tarde e por aí vai, até que um gênio junta as peças e faz uma contribuição decisiva. Ciência é como o rio Mississipi: começa como um pequeno arroio numa floresta distante; gradualmente outros riachos engrossam o seu volume; e o rio caudaloso que destrói diques se forma a partir de inúmeras fontes.
Não posso tratar exaustivamente desse aspecto, mas posso dizer isto de passagem: num período de cem ou duzentos anos, a contribuição das escolas profissionais para suas respectivas atividades será entendida não como treinamento de homens que amanhã se tornarão engenheiros práticos ou advogados práticos ou médicos práticos, mas, antes, que mesmo na busca de resultados práticos acontece uma quantidade enorme de atividade aparentemente inútil. A partir dessas atividades surgem descobertas que podem se mostrar de muito maior importância para a mente humana e para o espírito humano do que a execução dos fins práticos para os quais essas escolas foram fundadas.
As considerações que venho tecendo enfatizam – se era necessária ênfase – a importância enorme da liberdade espiritual e intelectual. Eu falei de ciência experimental, falei de matemática, mas digo que isso é igualmente verdade para a música e a arte e para toda manifestação destravada do espírito humano. O mero fato de que elas tragam satisfação para uma alma individual dedicada à sua própria purificação e elevação é toda a justificação de que elas precisam. E, ao justificá-lo sem nenhuma referência à utilidade, implícita ou de fato, já estamos justificando faculdades, universidades e institutos de pesquisa. Uma instituição que liberta sucessivas gerações de almas humanas já está amplamente justificada se este ou aquele aluno fizer uma contribuição dita útil ao conhecimento humano. Um poema, uma sinfonia, uma pintura, uma verdade matemática, um novo fato científico, todos contêm em si mesmos toda a justificação de que universidades, faculdades e institutos de pesquisa necessitam.
O tema que eu estou discutindo tem uma pungência peculiar neste momento. Em certas áreas bem grandes – especialmente na Alemanha e na Itália –, o esforço que está sendo feito agora é de reprimir a liberdade do espírito humano. Universidades foram reorganizadas de modo a que se tornassem ferramentas para aqueles que acreditam em credos políticos, econômicos e raciais bem específicos. Agora e então um indivíduo imprudente numa das poucas democracias que restaram neste mundo vai questionar a importância de absoluta liberdade acadêmica destravada. O real inimigo da raça humana não é o pensador corajoso e irresponsável, esteja ele certo ou errado. O verdadeiro inimigo é o homem que tenta moldar o espírito humano de forma a que ele não ouse abrir as asas como um dia elas estavam abertas na Itália e na Alemanha, assim como na Grã Bretanha e nos Estados Unidos.
Essa não é uma ideia nova. É a ideia que animou von Humboldt quando, no momento da conquista da Alemanha por Napoleão, concebeu e fundou a Universidade de Berlin. É a ideia que animou o reitor Gilman para fundar a Johns Hopkins University, depois do que todas as universidades deste país buscaram se refazer em maior ou menor grau. É a ideia à qual todo indivíduo que valoriza sua alma imortal vai apoiar, independentemente das consequências pessoais para si próprio. A justificativa da liberdade espiritual vai muito atém de suas origens nos campos da ciência ou do humanismo porque implica tolerância por todo o espectro de dissimilitudes humanas. Em face da história da raça humana, o que pode ser mais tolo ou ridículo do que gostos ou desgostos baseados em raça ou religião? A humanidade quer sinfonias, pinturas e profunda verdade científica ou sinfonias cristãs, pinturas cristãs e ciência cristã, ou ciência judaica, ou contribuição muçulmana ou egípcia ou japonesa ou americana ou alemã ou russa ou comunista ou conservadora para a expressão da infinita riqueza da alma humana?
IV
Entre as mais formidáveis e imediatas consequências da intolerância estrangeira eu posso, penso, honestamente citar o rápido desenvolvimento do Institute for Advanced Studies, criado pelo senhor Louis Bamberger e sua irmã, senhora Felix Fuld, em Princeton, Nova Jersey. A fundação do instituto foi sugerida em 1930. Aconteceu em Princeton em parte pela ligação dos fundadores com o estado de Nova Jersey, mas, até onde o meu julgamento avalia, porque Princeton tinha uma escola de pós-graduação de pequenas proporções na qual uma colaboração mais íntima era factível. O débito do Institute à Princeton University não pode ser inteiramente avaliado. O trabalho do Institute com uma porção considerável de seu pessoal começou em 1933. No seu quadro, há eminentes acadêmicos americanos – Veblen, Alexander e Morse entre os matemáticos; Merrit, Lowe e a senhora Goldman entre os humanistas; Stewart, Riefler, Warren, Earle e Mitrany entre os publicistas e economistas. E a esses se somariam acadêmicos e cientistas de igual calibre reunidos na Princeton University, na biblioteca de Princeton e em seus laboratórios. Mas o Institute tem um débito com Hitler por Einstein, Weyl e agora por Neumann nos matemáticos; por Herzfeld e Panofsky no campo de estudos humanísticos e um grupo de jovens estudantes que durante os últimos seis anos esteve sob a influência desse distinto grupo e já está somando forças à academia norte-americana em todos os lugares do país.
O Institute é, do ponto de vista da organização, a coisa mais simples e menos formal que se possa imaginar. Ele consiste em três escolas – uma escola de matemática, uma escola de estudos humanísticos e uma escola de economia e política. Cada escola é composta por um grupo de professores permanentes e um grupo de professores visitantes que muda anualmente. Cada escola gerencia seus próprios negócios como preferir; em cada grupo, cada indivíduo usa de seu tempo e energia como preferir. Os membros, que já provieram de vinte e dois países diferentes e trinta e nove diferentes instituições de ensino superior dos Estados Unidos, são admitidos se considerados merecedores por vários grupos. Desfrutam da exata mesma liberdade dos professores. Eles podem trabalhar com este ou aquele professor, conforme se arranjarem; podem trabalhar sozinhos, consultando de tempos em tempos qualquer um que pareça prestativo. Não é seguida uma rotina; não são traçados limites entre os professores, membros ou visitantes. Os estudantes e professores de Princeton e membros do Institute se misturam a ponto de serem indistinguíveis. O aprendizado por si próprio é cultivado. Os resultados para o indivíduo e para a sociedade são deixados para que eles próprios cuidem deles. Não há reuniões de trabalho; não existem bancas. Portanto, homens com ideias desfrutam de condições favoráveis para refletir e conversar. Um matemático pode cultivar a matemática sem distrações, assim como um humanista no seu campo e um economista ou estudante de política nos seus. A administração foi reduzida em sua extensão e importância. Homens sem ideias, sem poder de concentração em ideias, não se sentiriam à vontade no Institute.
Talvez eu possa deixar esse ponto mais claro ao citar brevemente alguns exemplos. Havia uns fundos para dar um prêmio que permitisse a um professor de Harvard vir para Princeton: ele me escreveu perguntando sobre isso.
“Quais são minhas obrigações?”
Eu respondi: “você não tem obrigações – apenas oportunidades”.
Um jovem matemático bastante capaz, tendo passado um ano em Princeton, veio me dar adeus. Quando eles estava para partir, observou:
“Talvez você goste de saber o que este ano significou para mim”.
“Sim”, eu respondi.
“A matemática”, ele se entusiasmou, “está se desenvolvendo rapidamente; a literatura hoje é enorme. Já se passaram dez anos desde que eu defendi meu doutorado. Por um tempo, eu consegui me atualizar no meu assunto; mas, ultimamente, ficou enormemente difícil e incerto. Agora, depois de um ano aqui, as cortinas se ergueram, o quarto está iluminado, as janelas estão abertas. Eu tenho na cabeça dois artigos que vou escrever logo mais”.
“Quanto tempo isso vai levar?”, eu perguntei.
“Cinco, talvez dez anos”.
“E depois?”
“Eu volto”.
Um terceiro exemplo ocorreu recentemente. Um professor de uma grande universidade do oeste chegou em Princeton no fim de dezembro passado. Ele tinha em mente fazer algum trabalho com o professor Morey (da Princeton University). Mas Morey sugeriu que poderia valer a pena ver Panofsky e Swarzenski (no Institute). Agora ele está ocupado com os três.
“Devo ficar”, ele acrescentou, “até outubro próximo”.
“Você vai achar o verão quente”, eu disse.
“Eu vou estar muito ocupado e feliz para prestar atenção a isso”.
Portanto, liberdade não traz estagnação, mas antes o perigo de trabalhar demais. A esposa de um membro inglês perguntou recentemente:
“Todo mundo trabalha até às duas da manhã?”
Até agora o Institute não tem prédio. Neste momento, os matemáticos são hóspedes dos matemáticos de Princeton no Fine Hall; alguns dos humanistas são hóspedes dos humanistas de Princeton no McCornick Hall; outros trabalham em salas espalhadas pela cidade. Os economistas por agora ocupam uma suíte no Princeton Inn. O meu próprio espaço está num prédio de escritórios na Nassau Street, onde eu trabalho entre lojistas, dentistas, advogados, quiropráticos e grupos de acadêmicos de Princeton que estão fazendo uma pesquisa para o governo local e um estudo sobre população. Cimento e tijolos são, pois, quase dispensáveis, como o reitor Gilman provou em Baltimore sessenta anos atrás. Entretanto, sentimos falta de contato entre nós mesmos e estamos a ponto de remediar esse defeito pela construção de um prédio oferecido pelos fundadores a ser chamado Fuld Hall. Mas a formalidade não deve ir além disso. O Institute tem que permanecer pequeno; e vai se manter firme na convicção de que The Institute Group deseja ócio, segurança e liberdade de organização e rotina e, finalmente, contatos informais com os professores da Princeton University e outros que de tempos em tempos possam ser atraídos para Princeton desde lugares distantes. Entre esses, Niels Bohr veio de Copenhagen, von Laure de Berlin, Levi Civita de Roma, André Weil de Estrasburgo, Dirac e G. H. Hardy de Cambridge, Pauli de Zurique, Lemaitre de Louvain, Wade-Gerry de Oxford e norte-americanos de Harvard, Yale, Columbia, Cornell, Johns Hopkins, Chicago, California e outros centros de luzes e ensino.
Não nos fazemos promessas, mas temos a esperança de que a busca desobstruída de conhecimento inútil vai mostrar que terá consequências no futuro, como teve no passado. Nem por um momento, entretanto, defendemos o Institute com base nisso. Ele existe como um paraíso para acadêmicos que, como poetas e músicos, ganharam o direito de fazer o que tiverem vontade e realizam mais quando possibilitados a fazê-lo.