O soldado da borracha

Calvo de Araújo, "Paisagem amazônica"

Myriam Scotti

Não se deve desdenhar da família nem casa que nunca te deixou chorar de fome. Se tu, pirralho, consegues arrumar espaço nesses teus miolos pra pensar nessas bobagens de que aqui não é lugar pra ti, talvez seja porque nunca soubeste o que é necessidade. No final, desemboco no que sempre digo: barriga vazia não dá espaço pra cabeça pensar. Se tiver cheia demais, o vazio sobe pra cabeça e aí começa a ingratidão. Certo é comer pra sobreviver e não pra se fartar. Quem se farta, fica egoísta, fica besta. Na tua idade, eu quase nem tinha carne pra segurar a carcaça. Queria chorar de fome, mas nem lágrima eu tinha. Sequei por inteiro. Vou te contar o que nunca soubeste.

A seca de 1942 no Nordeste, de onde vim, endureceu a terra e toda a gente. Eu olhava pro céu todo dia à procura de nuvens que pudessem nos salvar, mas nem elas aguentaram tanta quentura. Fugiram da feiura daquela terra seca, daquela gente esquálida, um céu de azul brilhante dos mais bonitos, que, no entanto, não conseguíamos admirar, porque a fome e a sede são madrastas impiedosas, mandavam-nos andar cabisbaixo. Quem não viveu a seca não sabe o que é desgraça. Tu sabes que, dia desses, assisti uma reportagem sobre umas pessoas admirando a arte nordestina num museu. Uma tela grande que retratava o sertão. Comecei a prestar atenção no falatório cheio de palavra difícil, como se de fato compreendessem o que é dor, o que é fome, o que é viver moribundando. A ignorância sabe se vestir elegante. Mas não é disso que vim te falar. Quero te contar que, naquele ano de seca forte, espalharam a notícia de que no Norte do país a vida era boa, a água abundante, a comida também e tinha tanta terra que as gentes de lá não davam conta do trabalho. Foi assim que eu vim parar aqui.

Eu tinha quatro anos, cinco irmãos mais velhos e pais que já não sabiam até quando duraríamos. Não havia espaço pra dúvida: partimos. Jamais vou esquecer o meu coração acelerado e meus olhos dilatados quando me deparei com a imensidão de água doce. Virei pro meu pai e falei assombrado:

“Que açude mais grande esse!”

E papai riu e chorou e riu de novo. Vi nos olhos dele a esperança. Só que a viagem não terminava aqui, na capital. Nosso lugar não era onde morava a abundância; nosso lugar não era de gente, era de bicho. Nos mandaram pro meio do mato, extrair a tal seiva branca que o Presidente da República precisava enviar pros gringos que estavam em guerra. Disseram que meu pai teria salário, mas isso nunca aconteceu. A terra era de coronel e meu pai trabalhava pra ele. Recordo bem a sacola que meu pai recebeu, assim que nos despacharam no meio do mato: uma camisa branca e uma calça de algodão azul, uma rede, talher, prato, caneca, sandálias, um chapéu de palha e um maço de cigarros. Meu pai nem fumava àquela época, mas a solidão na mata o fez viciado. Meus irmãos mais graúdos já ajudavam na extração. Eu perambulava pela mata, vivia machucado, gostava de curiar o mundo. Pra espantar as doenças vindas dos mosquitos que picavam a gente, minha mãe aprendeu com os indígenas o preparo de uma bebida. Ela lavava bem as folhas e amassava na água. Era amarga; meus irmãos e eu chorávamos na hora de tomar, dava vontade de enguiar, mas era o único jeito de escapar da malária e do barbeiro.

Não faltava nada pra gente, mas nunca vimos dinheiro. Papai trocava trabalho por comida e moradia. Pra quem tinha vindo do sertão, onde a terra rachava, aquilo era o paraíso. A gente só tinha medo mesmo era das onças pintadas. Uma porção de seringueiros tinha desaparecido ao longo dos anos. Crianças também. A onça é esperta, estuda a presa e não esquece. Mas é um bicho bonito que só vendo! Encarei uma de longe; ela me olhou dentro dos olhos como se quisesse me decifrar. Talvez quisesse decorar meu rosto pra quando me encontrasse de novo. Passei um bocado de tempo nos galhos de uma árvore, com medo de descer e ser surpreendido por ela. Só desci quando minha mãe apareceu ralhando comigo porque o almoço ia esfriar. Os anos que passamos na floresta me ensinaram a paciência. Tu aprendeste isso jogando o tal xadrez. Eu aprendi com medo das onças.

Três anos depois de termos chegado nas terras do coronel, fomos mandados embora. Ele era um sujeito bruto, de poucas palavras, mas dos únicos justos. Explicou que a produção da goma elástica ia parar. O Presidente da República tinha mandado dizer que não era mais necessária, pois os gringos não precisavam mais da borracha. A tal segunda guerra mundial havia chegado ao fim e nós estávamos dispensados do serviço. Mas o coronel, como eu disse, ainda tinha algum sangue correndo nas veias e deixou que levássemos um pouco do que tínhamos produzido na lavoura, deu uns trocados pro meu pai pela primeira e única vez e virou as costas. Nunca mais o vi ou soube dele. Foi assim que mudamos pra capital.

Quando chegamos ao porto, logo percebi as transformações. A cidade estava mais triste e nada próspera. A fartura havia acabado. A riqueza tinha fugido que nem as nuvens lá do sertão. Meu pai e meus irmãos mais velhos viraram biscateiros. O quase nada nos rendia uma vida pior que no seringal. Ainda assim, melhor que no sertão. Minha mãe conseguiu me matricular numa escola pública. Disse que pelo menos eu lhe daria orgulho e me sairia melhor do que ela, meu pai e meus irmãos. Foi assim que consegui, com algum estudo, virar um bom comerciante e dar ao seu pai uma vida decente. Fui muito exigente com ele e por isso ele pôde dar a você e a seus irmãos uma vida ainda melhor. O problema de viver com fartura é que vocês cresceram sem saber dar valor a nada. Reclamam sem nunca ter enfrentado os dias só com uns trapos amarrados no corpo e a barriga doendo de fome e de verme. Talvez eu esteja sendo duro demais contigo, contando essas coisas que nem te interessam. Mas eu garanto que as onças que vais enfrentar na vida não são maiores do que as que vi na mata.

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De A loja de lámen

“a historia não vai registrar”, poemas de A loja de lámen (Penalux, 2023)

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