Garielle (Gary) Lutz
Tradução de Rafael Rocca dos Santos
Quando eu originalmente escrevi isto, era um texto sobre caminhar como um desarranjo do corpo: caminhar como aflição, não função. Sinto-me aliviado porque ninguém vai chegar a vê-lo. O texto era imodesto e de tom ameaçador. Eu o escrevi após ler algo que outro alguém escrevera, algo muito melhor e colocado de forma mais suave, sobre um assunto completamente diferente. Eu o escrevi em uma única sentada sobre uma mesa de jogo, uma daquelas estofada com vinil marrom estendido um tanto frouxo sobre mais ou menos um centímetro de borracha espumosa. Não era a melhor superfície do mundo para se escrever – não havia nada sólido sob minha folha de papel ao deslizar o lápis sobre ela –, mas escrevi em rajadas, fúrias, de palavras.
Quando terminei, mudei-me com uma mulher que me queria há meses. Levei a mesa de jogo, minhas roupas, algumas cadeiras, todos os amparos de saúde e beleza que eu tinha. Vivi com a mulher por pouco mais de um ano. Era difícil. Ela era uma das infelizmente felizes. Estávamos ambos apaixonados pelo mesmo homem. Uma vez por semana tomávamos o ônibus até o prédio dele e escutávamos seus álbuns. O homem tinha muita vantagem, então a mulher e eu dançávamos e nos mimávamos na frente dele enquanto ele reencapava alguns dos álbuns de sua coleção, que era imensa e inacessível a nós. Nunca tivemos reviravoltas com o homem, tanto em casal quanto em privado, embora eu esteja provavelmente supondo o lado da mulher.
Quando os pais da mulher morreram – primeiro o pai, a mãe alguns meses depois –, tive de acompanhar os velórios e os funerais. Num encontro após o segundo funeral, um dos parentes, que estava bêbado, circulou me apresentando como o “esperado” da mulher, o que quase todos corrigiram para “pretendido”. Depois, a mulher me levou a casa na qual os pais moraram. Era uma casa geminada pequena em um bairro precário. Ela me levou ao aposento onde antes fora o seu quarto. Era logo ao lado da porta de entrada. Era o aposento que em qualquer outra casa teria sido a sala de estar. Alguns dias depois, ela se mudou para lá.
Pelo menos uma vez, eu consegui um emprego de verdade. Eu vendia equipamento de vigilância de alta-tecnologia para chefes que perdiam o sono pensando no que seus funcionários estariam fazendo. Eu morava, ora sim ora não, em um apartamento com uma colegial – do último ano, tenho certeza. Talvez eu tenha levado muito a sério a moça – ela tinha traços no rosto e já era descritível até certo ponto – porque lhe trouxe algumas coisas da loja, coisas que poderia facilmente usar com os professores na escola.
Uma noite, a moça estava sentada à minha mesa de jogo e estudava para uma prova. Ela queria ler alguns capítulos e depois que eu lhe fizesse todas as perguntas do resumo no fim. Ela viu que levaria ao menos duas horas para ler. Perguntei-lhe qual era o assunto. “Algum tipo de geografia”, ela disse. Sem mesmo me mandar, fui caminhar. Nem me dei ao trabalho de olhar a janela do apartamento para ver se a moça estava nele, com ou sem meu telefone pressionado à orelha. Parte da verdade que eu tive de esconder dela foi que, quando eu estava na escola, eu havia sido burro demais para aprender as coisas que os professores ensinavam. Tive de me contentar com aprender outra coisa, outras coisas, no lugar. Uma delas foi como, ao caminhar, você tinha de calcular do que estava sendo tirado à caminhada – o que estava sendo subtraído do quê. Você precisava determinar o que restaria quando você voltasse.
No estacionamento, encontrei um homem carregando um cesto cheio de roupas para lavar. Ele explicou que havia acabado de lavar suas roupas mas havia algo indizivelmente perturbador e inacabado sobre o que havia acontecido. Sua roupa não estava lavada, ele disse; era um equívoco. Ele colocou o cesto no chão e puxou uma calça de aparência lavada do meio do emaranhado e a chacoalhou em minha direção.
“Me garanta”, ele disse.
Conto do volume Stories in the worst way (1996).