Os interiores

Paul Cézanne, "O assassinato" (1867-70)
Galeria de Arte Walker, Liverpool

João Matias

A terra de minha origem primitiva
me chama
Circula-me nas veias o cansaço
de suas raízes
A seus anos me devolvo
e a seus abismos me abandono.


“Chamado”, Zila Mamede

Capítulo 1. Luz da aurora

Tem algo de interessante e triste no ofício de matar maridos. Mesmo quando a poeira baixa, e o pano percorre os ladrilhos do piso ensopado de sangue, a adrenalina não passa. Você compara este ato com outras formas igualmente vis, igualmente sujas, igualmente espúrias e só um pouco menos dignas de se orgulhar. E claro, matar. Uma barata, um rato, uma mosca. E quando, numa manhã de segunda-feira, sentada no sofá, Tieta contempla o barulho dos engasgos que seu marido faz com uma faca atravessada na garganta, ela pensa que não é propriamente como se Frida Kahlo tivesse pintado um de seus autorretratos. Não é uma obra de arte. Soa apenas como um singelo estado de ânimo criativo seguido de um torpor igual ao de não conseguir desenhar mais do que um vaso de rosas.

Mauro Müller não era uma obra de arte. E Tieta sabe. Estava mais para um lento e progressivo perder de forças num corpo gordo estendido num tapete persa que valia menos do que um quadro três por quatro em arte naïf. Um quadro daqueles que você encontra nas galerias do Hotel Globo em uma segunda-feira qualquer. Um dia em que Dom Pedro II, nas dependências do mesmo hotel, já sentiu o calor do centro de João Pessoa. E do qual se evadiu. Assim como Mauro Müller uma vez saiu do batalhão do exército para entregar os planos da intervenção militar contra o governo eleito. Curiosamente, aquela também era uma segunda-feira, mas uma manhã de sol, que é singularmente bonita sobre as águas do rio Sanhauá; com raios de luz que batem no sangue de Mauro Müller e criam uma luminosidade ensandecida e pesarosa, mas também heroica. Algo que nem Van Gogh faria, mas coisa de que Tieta, num arfado, se orgulha.

Batem na porta. Uma voz se ouve pelas frestas.

“Tieta, já terminou por aí?”

“Quase”.

Ela limpa as mãos, contemplando o seu trabalho. Até tentou limpar, mas estava cansada de empurrar o sangue com o rodo que Bernardo lhe deu com antecedência. Fatigada, Tieta desiste de fazer uma atividade que nunca foi sua e se deita na cama.

“Mas você limpou?”

“Eu tentei, Bernardo. Eu te juro”.

“Abre a porta que eu limpo”.

Tieta levanta e anda com cuidado para não tocar no sangue que percorre o piso xadrez do hotel Independência, até girar o trinco da porta.

“Que maravilha”.

Bernardo tinha esse jeito largo e sutil de expressar tristeza.

“A gente tá de luto, meu querido”.

Nunca foi de se interessar por jovens de óculos em armação grossa e de voz contralto. Desses que mal concluem um semestre na faculdade e o comemoram dia e noite. Um jovem dedicado que sonha em um dia ser o presidente da República. Não é pra tanto, mas já serviu pra muito.

Tieta é colecionadora de arte e tem uma galeria em Manaíra. Uma das mais procuradas. Do alto de seu salto, ela olha para o rapaz branco, alto e magro, e lembra que Bernardo era um ajudante preguiçoso do general Mauro Alberto Constant Müller, tendo por ele uma devoção mais do que patriótica. Diria mesmo romântica. Não demorou para que os planos dele pudessem ser atropelados pelos seus, ainda mais após o general ter sido empossado como o mais jovem chefe do Estado Maior das Forças Armadas pelo Ministro da Defesa, contrariando o critério de antiguidade para a nomeação. Tudo com o objetivo de comandar o exército num governo de esquerda e suplantar a intervenção que era planejada pelos outros generais, os mais antigos.

“Nós estamos de luto e você não esqueça disso”, diz ela, refazendo-se.

“Tá”. Bernardo limpa o sangue do general que estava esticado no tapete como um gato dormindo de costas, a faca Tramontina atravessada no pescoço na altura da goela, o sangue preenchendo os ladrilhos sob o sol dourado. “Ele era um herói de estado, coitado”.

“Mas até os heróis tem suas tentações”.

“Sem dúvida, mas por qual motivo ele foi fazer aquilo?”

Tieta abre a janela, saca um maço de Marlboro e vê as chamas do cigarro dançarem seguindo as lufadas de vento que entram no quarto do hotel e esmaecem o cheiro de sangue e perfume barato do general. O quarto, espécie de suíte presidencial do hotel Independência, conserva sofá, cama e decorações em ouro. Uma honraria brega, normalmente ofertada para que líderes de Estado sentissem o mesmo que Dom Pedro II teria sentido no Hotel Globo: um cheiro de naftalina, maresia e traições. Naquele quarto, o mais gordo dos traidores jazia em seus 113 quilos de inconformidade com o estatuto das Forças Armadas.

Bernardo termina de limpar o sangue disperso no piso. O cheiro continua. Tieta olha para o Sanhauá e pensa que nunca nadou nele. Ao mesmo tempo vem uma lembrança viva.

“A morte do leiteiro”, rompe Tieta, falando alto.

“O quê?”

“A morte do leiteiro”.

Bernardo, terminando de limpar o piso, olha e não entende.

“O poema de Drummond, o sangue e o leite formando a aurora”.

“A gente tem que pegar o carro e sair daqui a pouco, e você me vem com um poema de Drummond?”

Ouvem uma batida na porta.

“Olá?”, pergunta Bernardo.

Um silêncio de atravessar paredes e esticar os tímpanos.

“Quem é?”, pergunta Tieta.

Ambos aguardam quatro batidas na porta para que alguém entre e recolha o corpo com discrição. Bernardo, suando como um jovem universitário em fim de período, olha para Tieta com seus óculos de armação grossa embaçados. Ela, com um vestido verde em contraste com a luz, termina seu cigarro e estica o ouvido para a batida-senha que retiraria o corpo: três batidas fortes e uma fraca.

Silêncio.

Nada das batidas-senhas.

Bernardo termina de enrolar o general num lençol e olha para Tieta mais uma vez com ar de dúvida e medo nos olhos.

Tieta joga o cigarro fora e atravessa o quarto, passando por cima de Mauro Müller, como fizera estes anos todos e, deixando-se ouvir nos saltos sobre o piso de madeira, abre a porta, lenta e tranquilamente sem qualquer incômodo com o corpo ao centro do quarto. Do outro lado da porta tem um jovem com olhos de gato assustado.

“Vai querer limpeza, dona?”

“De que tipo de limpeza você tá falando?”

“Limpeza do quarto”.

“Não. Obrigada. Vamos sair daqui a pouco”.

Ela fecha a porta com resolução e calma. Bernardo, com as mãos na cabeça, deixa a impressão de que ela fez uma loucura. Não era preciso ir longe no pensamento para supor que um homem qualquer das Forças Armadas tivesse esquecido da batida-senha para retirar o corpo, bem como não era de se estranhar que simplesmente tivessem esquecido de ir pegar o corpo ou o fizessem no horário sempre singular dos homens.

“Bernardo, a gente vai precisar sair e deixar o corpo aí”.

“A senhora só pode estar louca”.

“Eles é que estão. O horário era esse. Eu tive que fazer todo o trabalho pesado”.

Mauro Müller naquela manhã tinha comido ovos cozidos, pães, broas, bolo de laranja com cobertura de chocolate. Também se serviu de café e suco de goiaba, mas um café de Angola, porque era de seu costume importar grãos de Angola e de Moçambique e pedir para o atendente do hotel preparar seu café utilizando os grãos que ele levava consigo a tiracolo numa bolsa apelidada pelos colegas do exército de “navio negreiro”. Uma faca atravessou a rota do navio negreiro no pescoço de Mauro Müller. Em seu íntimo, Tieta podia chamar a faca de “canal do Panamá”, lembrando as obras dos Estados Unidos e das bases militares colocadas para vigiar Cuba, mas a chamou apenas de alívio. Não tinha qualquer lembrança boa de seu marido. Isso tudo além do fato de ter sido um traidor.

É com essas ideias em mente que Tieta termina de fazer as malas com a ajuda de Bernardo, o ajudante de ordens agora exonerado do cargo e reempossado pela generala eleita por ordem de uma facada. Ela se sente agora uma autoridade maior que o próprio Ministro da Defesa. E ambos, malas às mãos, bem arrumados e perfumados, atravessam o quarto banhado em ouro como se Mauro Müller dormisse o sono de pedra das estátuas.

Bernardo abre a porta com receio, ao que Tieta intervém e abre com um supetão: pra quê o medo? O corredor está à meia-luz, iluminado por uma janela ao fundo exibindo a presença do sol que em João Pessoa é causticante. Um sol que, ao longo do dia, é derrubado de vez lá pelas cinco e pouco. Ela lembra disso, olha o relógio e se apressa para viajar.

Os passos de Tieta, num salto alto, se fazem ouvir em uníssono pelo eco do corredor com piso de madeira. Bernardo, com passos vacilantes, a acompanha.

Altiva e sem olhar para trás, Tieta alcança as escadarias e os passos do salto são mais intensos. Cada passo é como o soar de tiros, canhões de guerra. Em um hotel, num dia de semana, não se tem muitos clientes. Eles se deparam com um senhor calvo e arqueado com uma mala em um dos corredores, saindo ou voltando para o quarto, ao que cumprimentam com um boa-tarde típico.

“Você trouxe o mapa?”, interrompe os saltos com um puxão em Bernardo, as escadarias já próximas do térreo. “Precisamos dele”.

“Claro. Foi a primeira coisa que peguei”.

Dois tiros num quarto.

Duas senhoras atravessam as escadas do segundo andar ao térreo correndo. Gritam.

Tieta não se move. Olha para Bernardo: ele desce correndo para o térreo, busca refúgio.

Um silêncio de atravessar corredores.

Lentamente uma porta se abre. Se fecha. Ouve-se o barulho de um sapato no terceiro piso. Pouco a pouco o som dos passos mostra uma aproximação. Ela, em pé, hierática, não move o pescoço senão para acompanhar o movimento do homem que agora exibe sua sombra nas escadarias e passa ostentando um bigode repleto de ódio. Mas os olhos dele se encontram com os de Tieta e precisam dar uma resposta para o fato de só ele vir calmo com seus sapatos mansos, muito embora o cheiro de pólvora o denunciasse e ela conservasse ali, em sua tranquilidade, uma posição de juíza natural, como se perguntasse quem foi o assassinado.

“Vendedor de seguros”.

“Eu imaginava”.

O homem passa por ela carregando uma cruz no peito da camisa suada e desabotoada até o umbigo. Cristo foi pacificado e também poderá dormir tranquilo. Ela ri. A situação de ter dois assassinatos num mesmo lugar e num mesmo dia faz brotar um sorriso no canto do rosto de Tieta, que lembra ter tomado todo o cuidado de não meter uma bala em Mauro Müller por temer o barulho do tiro nos corredores do hotel. O susto que os hóspedes teriam. O homem se afasta, os saltos do seu sapato retomam o ritmo; ele passa majestosamente pelo corredor do térreo e some feito um fantasma.

Os raios de sol invadem as escadarias pelos vitrais e formam um arco-íris arroxeado nas paredes. O hotel retoma o silêncio de sempre, com o cheiro de naftalina e de antiguidade brega nos azulejos aportuguesados do piso. Devia até ter uma suíte com banheira em um quarto ou outro. É um hotel de cinco andares com portas de madeira escuras e envelhecidas, trincos das portas banhados em ouro, corredores abraçados pela escuridão imantada sob os escassos raios solares; raios que entram amainando o cheiro do mofo escondido pelo incenso, a maresia e o segredo.

“Meu Deus do céu!, é a voz de Bernardo.

Tieta sai de sua contemplação e retoma seu trajeto pelo piso amadeirado até a recepção. Nela, o recepcionista tem a cabeça destruída por algum projétil. Está sentado, arqueado em uma cadeira de escritório, a televisão pequena ligada num programa de auditório do SBT, o pequeno ventilador girando de um lado a outro, a porta entreaberta deixando entrar o sol.

A parede tinha ganhado uma nova cobertura de sangue e de miolos já encardidos pela aridez do tempo. Não tinha sido há dez minutos, mas não passou de duas horas. Mais ou menos o horário em que Tieta cravou uma faca em Mauro Müller e o viu estrebuchar patrioticamente. Podia ter sido há uma hora e meia, como podia ter sido no começo da manhã: ela e Bernardo não saíram para o almoço, e fazia tempo que o general tinha pedido seu café angolano quando Tieta acordou.

“Um bom trabalho”, diz ela, calma. “Pelas características”.

“O quê?”, responde Bernardo, atrás da porta do banheiro na pequena recepção, incrédulo.

“Quis dizer que as Forças Armadas têm um jeito sutil de resolver as coisas”.

“Foram eles?”

Tieta olha com desdém para Bernardo. O atraso na compreensão dos temas não assustava o general Mauro Müller, mas sempre embasbacou Tieta.

“A gente tava esperando o rapaz para buscar o corpo, teve o tiro no quarto e agora isso. Se não foi uma obra deles, não sei de quem foi”.

“Eles virão buscar o corpo”.

“É provável que essa fosse a deixa pra nós sairmos sem nos preocupar de deixar o corpo aí”.

“E o mau cheiro?”

“Aí já não é problema nosso”.

Tieta percebe que o recepcionista morto fumava. Pegou o maço de Derby dele no balcão.

“Presente de guerra”.

Bernardo não se conforma com a mudança de planos. Caminha de um lado a outro, coçando a cabeça.

“E se as coisas mudarem, e se nada der certo?”

“Vai dar”.

“Fui na porta do seu quarto às dez da manhã como combinamos, bati às dez e quinze como combinamos, às onze e meia já tinha limpado o quarto e preparado o corpo, pouco antes das doze nós saímos, como marcamos”.

“Você é muito metódico”.

“É claro, é um plano complicado. O homem é um herói de estado”.

“Renegado. Herói renegado. O diabo sabe por quê. Podia ser presidente um dia. Agora tá indo governar os vermes”.

“Mas herói, mesmo assim. Coisa que muitos dos mais antigos não foram”.

Tieta balança a cabeça negativamente diante da inocência do rapaz. Estica o braço e olha o relógio, doze e meia. O carro ficaria em frente aos correios, dentro da rodoviária, à uma da tarde. Eles tinham meia hora para divergir da intentona nacionalista para depor o governo, mas podiam somente conversar sobre como chegariam em tempo em Nova Brasília para reivindicar as antigas terras do general.

“Você não tá aqui pela intervenção, Tieta. Está por Nova Brasília”.

Se Bernardo se julgasse numa posição de ofender, não teria citado Nova Brasília antes de pegar estrada. As terras de Mauro Müller se estendem por toda uma cidade, e ninguém, ninguém que tenha parentes ou amigos das Forças Armadas espera morrer sem alguns hectares de terra em seu nome.

“Toda uma vida servindo a esse gordo, sofrendo e sofrendo, sendo traída e humilhada, e você me vem com Nova Brasília”.

Tieta acende mais um cigarro. Sorve. Bernardo, inquieto, não deixa de provocar.

“Tem coisas maiores que o seu umbigo em jogo aqui, Tieta”.

“E quem disse que eu não apoio a intervenção?”

“Nunca te vi falar sobre”.

“Também nunca falei nada contra”.

“É o mínimo. Uma isentona”.

Tieta aproveita mais um trago do cigarro e se dá alguns segundos para pensar; olha o relógio na parede da recepção, os miolos do recepcionista na parede, duas cáries escondidas entre os dentes na metade do crânio que ficou exposto.

“Você está nervoso. Ansioso. Se acalme”.

“É que eu trabalhei três anos para o senhor seu marido e me acostumei a admirá-lo como um herói. O homem liderou o Haiti. Trabalhei nos papéis. Herói de guerra até”.

“Você sabia que Hegel estava falando do Haiti quando criou a metáfora do escravo e do senhor?”

“Quê?”

“Da independência do Haiti”.

Tieta mata o tempo como quem encontra espaço entre os minutos para terminar sucessivos cigarros. Bernardo, em sua galhardia opaca, não manifesta ou sente medo de se arriscar a mostrar quaisquer sinais mais cinzas de sua personalidade, de desvio de caráter ou de opinião. A postura dele sempre correta, formal e jactante provoca enjoos frequentes nela. Ela lembra que Mauro Müller começou assim: um militar admirador das marchas marciais, da postura cervical e do respeito à burocracia. Bernardo, em sua jovialidade senil, seguiria um caminho semelhante?

“Você quer um cigarro?”

“Não fumo, não, senhora”.

Tieta pensa no “não, senhora” e sorri.

No silêncio que se faz, com Bernardo ainda evitando olhar o crânio do porteiro pela metade, Tieta tem dificuldade para pensar que as Forças Armadas tenham esquecido deles dois. O senhor calvo, o cara dos tiros, talvez não as mulheres gritando, eram todos homens dos milicos. O caminho estava livre; livre como uma estrada recapeada para andar pelas veias abertas dos interiores.

Mas Bernardo não estava livre de imaginar que Müller era, na verdade, um líder; que mesmo sendo um traidor da intervenção não merecia uma morte tão violenta; que, e isso a espanta, ele pode até sentir culpa porque o general, exatamente como os ratos do hotel, talvez até sentiu dor.

Neste instante, ao sorver o segundo cigarro, Tieta imagina se Bernardo não seria uma mala pesada demais para carregar na viagem.

“Eu não penso só em Nova Brasília”, confessa Tieta, saindo do silêncio e olhando as horas: doze e quarenta e cinco. Quinze minutos para pegar o carro.

Bernardo faz um olhar de arrependido por ter iniciado a discussão, ao que Tieta, terminando o cigarro, continua:

“Só nós que somos mulheres destes caras sabemos o quanto sofremos não só nas mãos deles, mas também das corporações. Muitas se vestem de santas porque querem segurar um marido de olho na pensão. São muitas. Você que é jovem, é homem, pode imaginar que é uma decisão simples. Mas qual mocinha que vem da periferia não queria ser chamada de mulher de general? De ter a chance de estudar, de crescer, de se vestir bem?”

Bernardo continua seu silêncio atento, ainda evitando as cenas da recepção.

“São coisas que você nunca saberá”, ela sorve o cigarro. “Eu vim de Sertões Novos, que depois virou Nova Brasília. Cidade pobre que, eu espero, agora ficou rica. E lá tá nossas terras. Construíram uma universidade. E lá estão nossas terras. Quiseram ocupar. E lá estão nossas terras. O seu herói, depois de anos me traindo, não só com as Forças, me bateu e fazia parecer que a santa aqui devia aguentar tudo em nome do juramento à bandeira.

Tieta bate com a carteira de cigarros na mesa.

“E por mais que hoje ele seja um herói pros dois lados. E é isso que você não tá vendo. Ele é herói pras Forças pelo Haiti e por tudo mais, mas também é herói pra esquerda pelo governo eleito, por tentar suplantar a intervenção e tudo mais. Caiu. Ele, o governo, o Haiti, o tudo mais. E eu continuo aqui. Em pé, nestes anos todos. E de agora em diante sou eu comigo”.

Mais uma pausa: o cigarro, o relógio.

“Intervenção por intervenção, essa é a minha”.

Tieta e Bernardo saem do hotel com as duas malas carregadas pelo rapaz que, ao sol do meio-dia, aparenta se apresentar ainda mais magro. A rua calçada com pedras expostas faz uma curva em declive para a rodoviária, que os dois atravessam sem se abalar ou esperando que alguém os siga. Tão grande era a certeza de Tieta de que o recepcionista e os incidentes no Hotel Independência foram obras das Forças que ela não pensou que alguém ousaria segui-los até pegarem o carro. Para uma segunda-feira de deposição de governo, a rodoviária tinha pouca gente.

Ambos se aproximam dos correios dentro da rodoviária e veem um Ford Fiesta preto estacionado. Se for mesmo verdade o que disseram na véspera, uma vez que ambos não podem portar celulares para não serem seguidos, o carro estaria com as portas abertas e uma chave na ignição à espera.

Tieta confirma o plano: o carro, a porta, a chave, tudo conforme o combinado. Despacham suas malas no porta-malas e conferem ao redor. Bernardo, por medo; Tieta, pela brisa do meio-dia. Afinal, entre as pessoas bem que poderia ter um leiteiro, como no poema do Drummond, mas sua morte não seria tão bonita quanto a de um general cujo sangue no piso amadeirado, aos reflexos de uma mobília dourada, deixou impresso no chão duro a imagem de uma manhã digna de aplausos.

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