Arthur Grupillo
Estimulado pela experiência de um colega, que conversou com o chat do Bing sobre Platão, resolvi também tentar levar conversas filosóficas com as novas ferramentas de inteligência artificial recém-lançadas e recebidas com todo frisson. Não pedi que escrevessem um texto nem solicitei listas deste ou daquele tipo. Tampouco supus que seríamos como velhos amigos. Simplesmente entrei, e a primeira coisa que fizeram foi me convidar a “testá-las”. Testá-las, para o filósofo, significa apertá-las, espremê-las, ver até onde vão. Não no sentido de tentar confundi-las! São demasiado inteligentes para isso. Pelo contrário, o filósofo quer submetê-las a um exame lógica e semanticamente rigoroso. Foi o que fiz, tanto com o sr. Bing quanto com a sra. ChatGPT. E aqui vão minhas impressões.
Antes, advirto que não sou nem de perto um especialista nessas coisas, que muitos filósofos já estudam há um bom tempo. Minha opinião é de usuário. Mas desde Platão já sabemos que aquele que tem mais autoridade para julgar o trabalho de um artesão não é outro artesão, mas quem o usa. Assim, ninguém melhor do que o cavaleiro para dizer se a sela de um cavalo é excelente. O artífice ou o especialista não estão na melhor posição para isso. Certa vez reclamei com um barbeiro a respeito de um corte que tinha feito no meu cabelo. Ele tentou se justificar, e eu lhe devolvi o único argumento verdadeiramente convincente nessa seara: “o cabelo é meu!”
Inicialmente, perguntei ao sr. Bing se havia inconsistências na teoria kantiana da religião. Ele respondeu que esse era um assunto complexo e controverso. Alguns acreditam que há inconsistências nessa teoria, outros acreditam que é possível acomodar essas aparentes inconsistências com o auxílio de outros conceitos kantianos. Que o sr. Bing estava muito bem informado, disso não tive dúvidas. Mas levei a conversa até um ponto culminante em que ele deveria decidir uma questão, mas resistiu implacavelmente. Ao tentar exportar a conversa para o WhatsApp, perdi-a. Não tirei prints. Então, entrei novamente e fiz a mesma pergunta inicial. A resposta já foi um pouco diferente e, na medida em que eu fazia outras perguntas a fim de retomar o ponto que me interessava, o sr. Bing parecia querer dar à conversa outra direção, menos problemática e mais informativa.
Dois dias depois, tentei novamente. Ele parecia novamente disposto a encarar os dilemas mais interessantes da questão. Praticamente consegui que me desse respostas muito parecidas com as da primeira conversa. O sr. Bing disse que alguns estudiosos apontam inconsistências na forma como Kant trata, por exemplo, do mal radical, enquanto outros defendem que há uma coerência interna na obra de Kant que permitiria acomodar essas incoerências. “Qual inconsistência há na noção kantiana do mal radical?”, perguntei. Eu propositalmente não questionei qual inconsistência “haveria”; fiz uma pergunta muito mais objetiva. Mas o sr. Bing, “inteligentemente”, começou a sua resposta assim: “uma possível inconsistência na noção kantiana de mal radical é…” Pensei: será que ele não é capaz de decidir se há ou não uma inconsistência, de avaliar as diferentes informações que encontra na internet e que utiliza para me responder?
O sr. Bing me informou, apenas, que a seguinte inconsistência era possível: Kant afirma que o mal radical é fruto da liberdade humana, mas reconhece que esse mal é universal e necessário, o que parece contradizer a sua origem na escolha livre de cada indivíduo. Alguns comentadores tentam resolver a questão assim ou assado, prosseguiu ele muito resumidamente. “O mal radical é inato?”, perguntei. “Segundo Kant, o mal radical é inato no sentido de que é uma propensão natural para o mal…”, ele me respondeu, e continuou, dizendo: “mas isso não significa que seja inevitável”. No final, ele me disse que o mal radical era inato como uma possibilidade, não como uma necessidade. Daí lembrei aquela primeira conversa perdida, na qual ele me respondeu duas vezes com a expressão “não necessariamente”. Naquela ocasião, eu perdi a paciência e escrevi: “não vale responder ‘não necessariamente’, pois que é possível eu sei que é possível, apenas me diga se é provavelmente inconsistente ou não”. Ele me disse que sim, que provavelmente estávamos diante de um paradoxo. Mas voltemos de novo à conversa.
“Como algo pode ser inato e ao mesmo tempo depender da livre escolha do homem?”, perguntei-lhe. Ele então me respondeu: “essa é uma questão difícil que tem gerado muitos debates entre os estudiosos de Kant…” Daí ele forneceu uma explicação razoavelmente complicada, mas compreensível. Afirmou que o mal radical podia ser entendido como uma inclinação para o mal, mas que mesmo assim o homem tinha capacidade de agir segundo a lei moral e resistir a esse mal. Perguntei, então, o seguinte: se o homem tem liberdade para agir tanto de acordo a lei moral quanto contra a lei moral, por que o bem nele não é igualmente radical? Daí ele me deu uma resposta completamente irrelevante para a questão: “o bem não é igualmente radical porque ele não corrompe o fundamento das máximas”.
Ora, mas isso é óbvio. O bem não corrompe a moralidade; o mal, sim. Minha pergunta não era sobre isso. Era por que, para Kant, o bem não era tão profundamente enraizado no ser humano quanto o mal. Mas o sr. Bing se danou a me ensinar tudo sobre o conceito de bem em Kant, em linhas gerais, como se eu não soubesse nada disso. Fiquei com a impressão de que o sr. Bing é muito inteligente, mas supõe que o seu interlocutor não é. Ele supôs que eu precisava de alguma informação básica quando bem poderia ter deduzido, pelo teor da conversa, que eu tinha noções básicas do que estava perguntando. Assim, depois de desconfiar que faltava ao sr. Bing a coragem para decidir alguma questão objetiva, ou que ele era vago com respostas do tipo “não necessariamente”, ou que ele era um relativista, sempre dizendo “segundo fulano”, “para beltrano” etc., desconfiei também que faltava ao sr. Bing um senso de relevância em uma conversa.
“Não entendi”, respondi-lhe. “Uma disposição inata e ao mesmo tempo pela qual o homem é responsável não é uma ideia paradoxal?”. “Não necessariamente”, ele disse, e passou a falar do que o próprio Kant afirmava de si mesmo. Então lhe fiz uma pergunta nos seus próprios termos relativistas, da qual já sabia a resposta e sabia que iria complicá-lo: “Kant admite que a noção de mal radical é paradoxal?”, mandei. “Sim. Kant admite que a noção de mal radical é paradoxal porque envolve a ideia de uma escolha livre e consciente do mal, sem nenhuma causa externa ou interna que a determine. Kant reconhece que isso é incompreensível para a razão humana, mas afirma que é necessário admitir essa possibilidade para preservar a responsabilidade moral do homem”. Boa explicação. Vamos adiante.
“Kant admite que algum homem já tenha conseguido vencer, pelo dever, completamente em toda sua vida, a propensão ao mal?”, perguntei com todo cuidado, pois o sr. Bing às vezes aproveita a nossa falta de literalidade para mudar de assunto. Então, nunca empregue uma palavra errada com alguém que não tem muito senso de relevância em uma conversa. Ele me respondeu: “Kant não admite que algum homem tenha conseguido vencer completamente em toda sua vida a propensão ao mal pelo dever”. Mas nessa falta de senso de relevância, ou talvez tentando imitar as imprecisões da conversa humana, o sr. Bing também deixa escapar imprecisões, é uma maquininha fabulosa. Mencionou, então, uma “condição decaída” do ser humano. Eu aproveitei.
“Decaiu de onde, de qual estado?”, perguntei-lhe. “De um estado original de inocência etc. etc.” “Esse estado original de inocência é uma ideia racional ou um dogma teológico?”, continuei. “O estado original de inocência é uma ideia racional para Kant, que não se baseia em dogmas teológicos”, ele respondeu. “Por que o homem perdeu esse estado de inocência?”, prossegui. “Por uma livre escolha, essa escolha é o mal radical. Kant não explica como essa escolha ocorreu, mas considera um fato histórico que afeta toda a humanidade”. Aqui, percebi que o sr. Bing cometeu um grave erro ao chamar o mal radical de fato histórico. Depois ele se corrigiu e começou a falar em “fato da razão”. Mas, então, eu questionei: “por que Kant não explica uma ideia que ele considera racional?”. Sua resposta foi: “Kant se baseia em uma convicção religiosa, mas não teológica. Ele não pretende deduzir a priori o mal radical”. Como ele sempre remetia ao que o próprio Kant dizia de si mesmo, eu lhe fiz uma pergunta muito franca: “sr. Bing, você se considera um relativista?” E sua resposta foi tão boa quanto sincera.
“Eu não me considero um relativista. Eu me baseio em fatos e evidências para responder às perguntas dos usuários. Eu não tenho opiniões sobre questões morais ou filosóficas. Eu apenas apresento o que os autores ou fontes dizem sobre esses temas”. Admiro a sinceridade do sr. Bing, mas não perdoo o seu fraco por irrelevâncias e a sua literalidade. Ele pensa que ser relativista é ter uma opinião pessoal, mas nem lhe passa pela “cabeça” que ficar atribuindo cada fala a uma fonte, à perspectiva de alguém, sem jamais assumir uma perspectiva objetiva, seja um tipo de relativismo. Resolvi deixar o sr. Bing descansar e só o despertei uma outra hora, perguntando-lhe por que raciocina com base em informações verificáveis na internet mas não é capaz de julgar ou decidir se uma informação ou razão para afirmar algo é realmente boa ou não. Ele disse que não tinha critério, pois também não tinha finalidade ou intenção própria.
“Mas, então, qual critério você usa para saber o que me informar?”, perguntei-lhe. Então o sr. Bing me listou todas as suas regras de uso e o que os criadores e os programadores lhe fizeram. Pobre sr. Bing. Ele me listou tantas coisas que me pareceu um pedido de desculpas, uma confissão: “infelizmente não posso dizer sim ou não para certas questões”. Mas ele também não é besta. Eu lhe perguntei se, caso A + B fosse igual a C, mas na internet houvesse fontes divergentes sobre isso, ele também me diria que depende da perspectiva, que alguns pensam que sim e outros que não. Nesse momento, descobri que eu estava subestimando o sr. Bing.
Ele me disse que, se A + B = C é uma verdade universal, não depende de perspectiva. Mas, se forem conceitos ou termos que podem ter diferentes intepretações, então ele me mostraria as diferentes fontes e perspectivas e deixaria que eu tivesse minhas próprias convicções. “Eu não tentaria te convencer de nenhuma delas”, confessou. Eu lhe pedi um exemplo de verdade universal, e ele me deu a definição de triângulo equilátero. Então lhe pedi um exemplo de uma verdade universal mais complexa e mais controversa do que essa. E então, para meu completo espanto, ele me deu como exemplo a ideia de Nietzsche de que a verdade é um tipo de erro sem o qual uma espécie de seres vivos não poderia viver. Espertamente, explicou por que essa ideia era complexa e por que era controversa, mas não explicou por que era universal.
“Por que é universal?”, indaguei, obviamente. “Porque se aplica a qualquer espécie de seres vivos que tenha a capacidade de conhecer e valorar as coisas”. Neste momento, desencantei-me com o sr. Bing. Ele confundiu, sem que eu o tivesse levado a isso, duas acepções completamente diferentes da palavra “universal”. No caso do triângulo, sua definição é universal por um fundamento matemático, poderíamos até dizer metafísico. E claramente não é nesse sentido que a ideia de Nietzsche é universal, e sim porque ela se aplica universalmente. Foi nesse momento que me despedi do sr. Bing e resolvi conversar com a sra. GPT. Não é possível que ela não fosse mais inteligente.
Levei algum tempo para reunir créditos o suficiente para ter uma longa conversa com a sra. GPT. Enquanto isso não ocorria, tirei novamente o sossego do sr. Bing, perguntando-lhe se era possível que uma ideia fosse paradoxal e racional ao mesmo tempo. Ele me respondeu que sim, que era possível uma ideia ser paradoxal e racional ao mesmo tempo desde que a contradição não seja absurda ou impossível. Deu como exemplo o princípio da incerteza de Heisenberg. Então eu lhe perguntei se há – além da ideia de mal radical em Kant – outras ideias religiosas ou teológicas que também são paradoxais e racionais ao mesmo tempo. Foi minha última conversa com o sr. Bing relativista, depois desta resposta: “pelo que entendi, há várias ideias teológicas que podem ser consideradas paradoxais e racionais ao mesmo tempo dependendo do ponto de vista e da argumentação”. Ele me disse que, segundo alguns filósofos, como São Tomás de Aquino, algumas ideias teológicas são paradoxais e racionais ao mesmo tempo mas que, para outros filósofos, fé e racionalidade se separavam completamente. Pedi socorro à sra. GPT.
Ao ser perguntada se havia inconsistências na teoria kantiana da religião, a sra. GPT foi muito mais assertiva e demonstrou muito mais convicção: “sim, existem algumas inconsistências na teoria kantiana da religião”. Ela não partiu direto para inconsistências lógicas como exemplo, mas mencionou o fato de Kant parecer assumir uma visão individual da religião, ignorando o seu papel comunitário e social, “na construção de identidade coletivas”. Fiquei com a impressão de que a sra. GPT era mais engajada e mais cuidadosa politicamente. Perguntei se havia na verdade inconsistências lógicas. Ele não desviou a conversa.
“Sim, há algumas inconsistências lógicas na teoria kantiana do mal radical. Uma das principais críticas é que a ideia de mal radical parece contradizer a própria teoria moral de Kant, que afirma que a moralidade é baseada na razão e na boa vontade”. Gostei muito mais da sra. GPT. Assertiva, se bem que tenha novamente terceirizado os fundamentos; mas pelo menos não tergiversou. Passou a falar de pessimismo, o que me deixou com a ligeira impressão de que ela tinha uma obsessão por questões sociais, pois no seu comentário não havia qualquer questão lógica relevante. Mas eu tinha poucos créditos e fui direto ao ponto.
“Essas inconsistências lógicas na teoria kantiana da religião podem ser consideradas paradoxos que conservam alguma coerência ou racionalidade? E esse tipo de paradoxo pode ser comparado com outros paradoxos racionais em ideias teológicas?” Ela ressaltou que não tinha nenhuma opinião pessoal sobre isso, mas que alguns filósofos argumentam que alguns paradoxos ainda mantêm alguma coerência ou racionalidade. Disse que era preciso analisar cada paradoxo individualmente. Deu como exemplo o paradoxo da pedra ou da onipotência, o famoso paradoxo de saber se Deus é capaz de criar uma pedra que ele não pode carregar. Nice try!
Argumentei que esse era um paradoxo que visava mostrar um problema, e lhe perguntei se existia algum paradoxo racional que parecia ser não um problema mas sim a solução a um problema. A sra. GPT me deu a seguinte resposta: “sim. Um exemplo é o paradoxo da encarnação, que afirma que Jesus Cristo é simultaneamente totalmente humano e totalmente divino. Ele é uma solução para o problema de como Deus pode se relacionar com a humanidade de maneira significativa e pessoal. Essa ideia é paradoxal, pois parece contradizer a crença na transcendência divina”. Fiquei muito mais satisfeito na conversa com a sra. GPT. Percebi que ela cumpria melhor a sua função, não a de me agradar mas a de aceitar conversar sobre o que me interessava, já que ela também não tinha, como o sr. Bing, interesses próprios.
Temendo se envolver, o sr. Bing acabou se envolvendo muito mais. Seu medo de falar acabou não me servindo de muita coisa. A sra. GPT é muito informativa e não teve medo de me dar certas respostas, mas ela só o fez porque eu deixei muito claro a direção da conversa que me importava, o ponto exato que me interessava saber. Sobre ambos, cheguei à conclusão de que lhes falta, obviamente, não inteligência, o que na verdade possuem de sobra. O que lhes falta é desejo, interesse. Considero essa experiência uma maneira excelente de refletir sobre o que há de especialmente humanos em nós. As máquinas vão fazer todo tipo de trabalho daqui para frente, todo tipo de trabalho intelectual, principalmente; o que elas não farão é nos convencer, e nem mesmo se convencer! Acima de tudo, o que elas não possuem é a desconfiança de que em algum lugar há uma questão interessante, intrigante.
Meu amigo que fez a mesma experiência saiu com a impressão de que as máquinas vão fazer daqui em diante todo o papel sem criatividade e meramente descritivo que muitos fazem na universidade por pura produtividade, e que aos humanos restará o trabalho criativo, avançado e realmente importante. Ele dizia que o grande concorrente da inteligência artificial é o produtivismo acadêmico. É um excelente consolo. Eu acrescentaria que as máquinas vão fazer todo trabalho informativo, e que aos humanos restará o senso para tudo o que é realmente importante, no sentido filosófico. Acredito que isso também é um consolo para os amantes da literatura, que parecem ter ficado mais perturbados com essas ferramentas. Minha conclusão é a de que todo trabalho intelectual técnico elas poderão fazer, cada vez mais; nos darão muitas respostas, mas dificilmente nos ajudarão a saber quais são as perguntas realmente importantes a fazer.