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O corpo de Laura

Desconhecido, "Laure de Noues coroando o Poeta" (sec. XV)
Biblioteca Laurenziana Ashb. 1263, f. 7r., p. 11

Laura Redfern Navarro

Diário dos sonhos

I
tenho sonhado excessivamente que há uma grande [perda de tempo].

II
os sonhos são feitos de alguma matéria de água, sempre assim, desde os desfiladeiros de gelo, os mares, os rios, o sangue e os fluídos. são corpos inteiros de imagens e sons, as águas e o movimento consequente das águas. você consegue ouvir isso hoje? lembro de terem me falado; tome cuidado com a água, ela se esvai das suas mãos em menos de um segundo.

III
têm me aparecido as figuras donas do fleuma, o rosto irônico de clarice lispector ganhando olheiras cada vez mais profundas. quero escrever diferente, dizia, insatisfeita, estranha. parecia estatelada, clarice, que ignorava o mundo que regia, soberana, ela & a sua linguagem, suas manias, seus enigmas. eu preciso aprender a escrever diferente. eu quero escrever diferente. e, por fim, fornecia uma pista: eu quero escrever de forma mais [burocrática]

IV
depois de uma semana constatei: minhas ficções noturnas vêm trazendo repetidamente as narrativas da Criação da Poesia e da Escrita. é dormindo que me recordo: sou escritora. na vigília, se dedicar à Invenção é perigosíssimo. [perde-se tempo]. criar diz muito sobre fertilidade, o que envolve terra e água, passo horas pensando: terreno fértil. de repente, a imagem da infância de marguerite duras me invade, junto das barragens do solo e do oceano, a mãe de marguerite que, na inundação, tornou-se ela também uma fonte de inundação. se não se controla a terra e a água, uma invadirá a outra.

V
nos sonhos, há a ficcionista – mas há o impedimento da ficcionista. sento-me à mesa com outras escritoras todos os dias e elas não sabem. lembro que deixei de escrever por algum motivo e que por isso deixei também outras coisas de lado, como sonhar e viver e viver como poeta. é vergonhoso. quero voltar a escrever, é tudo tão murcho por aqui…

elas me respondem: você está perdendo tempo contando as horas de alguma outra coisa.

VI
acordar e deixar as informações sublimarem, a água exige isso. eu sinceramente queria ter permanecido sonhando – este é o meu primeiro pensamento do dia. quando a gente acorda e percebe que a vivência do corpo é ficcional. quero maternar esta ficção, colocá-la dentro de um aquário, com peixinhos areia uma paisagem. um caderno ao lado

fincar o tempo com palavras → isto é controle ou é narrativa?

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