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A condição humana de André Malraux: Notas de leitura

Jean Guéhenno

Jean Guéhenno

Tradução de Guilherme de Almeida Gesso

A condição humana, não ousamos nada escrever sob um título tão grande, o maior dos títulos. Um jovem escritor, no entanto, ousou, André Malraux, e o livro que ele assim escreveu é admirável. Eu não admiro somente a sua audácia, eu o reconheço por ter isolado, pela primeira vez, essas palavras tão simples e tão grandes, fazendo delas um título, lançando-as na cabeça dos contemporâneos, obrigando-nos a meditar um pouco sobre o que elas contêm, por ter como que resumido o trabalho dos escritores de sua geração e de alguns outros mais velhos, por ter expressado seu sentido e sua inspiração. “Quando se joga palma, é com a mesma bola que um e outro jogam, dizia Pascal, mas um joga melhor”. Nós todos jogamos palma: todos procuramos essas três palavras. Todos teríamos querido escrevê-las. Nada conhecemos além delas, mas não conseguimos encontrá-las em nós mesmos. Vendo-as agora que constituem a mais bela das inscrições, vermelha sobre a capa branca de um livro, parece-nos que descobrimos todo nosso tormento. A condição humana é tudo o que queríamos conhecer, tudo o que queríamos definir, esclarecer, e, definindo-a, libertar. Se é uma prisão, é uma prisão da qual não queremos sair. Nosso pensamento nunca nos pareceu válido, a menos que estivesse relacionado com isto, a condição humana. Essas três palavras contêm os únicos problemas verdadeiros. Todo o resto é evasão, fuga. Esse título, para toda uma geração de escritores, é e será, tenho certeza, como uma profissão de fé e um recrutamento. É o efeito da guerra em nós. Muito vimos os homens sofrerem vãs misérias, correrem riscos ineficazes, cumprirem falsos deveres. Nós queremos conhecer melhor a condição humana para voltarmos à ordem e à verdade.

Não gostamos de dizer que um homem que conhecemos e amamos é genial. Isso significa, se se tem consciência da própria mediocridade, obrigar-se a se afastar dele. Direi então, por respeito à amizade, que há no livro de Malraux uma espécie de gênio. Ei-lo, está dito. Eu não temo o ridículo. Estou apenas dizendo o que a maioria pensa. De resto, André Malraux não sairá ganhando nada. Reconhecemos essas “espécies de gênio”, mas não nos submetemos a elas. É diante delas, sobretudo, que guardamos todo o direito à discussão, à contestação, muito mais do que diante de simples talentos.

Talvez nenhum leitor estimará que o livro cumpre todas as promessas do seu título. É que se, como observa precisamente um dos heróis do livro, “cada um não conhece bem senão a sua própria dor”, essa dor sendo quase a totalidade da nossa condição, cada um de nós define a sua condição ao seu modo, segundo sua própria experiência e segundo justamente a sua dor. Tal é o gênio de Malraux; ele sente melhor a condição humana em seus limites, por assim dizer, do que em seu desenvolvimento natural. A sorte e o azar de uma juventude maravilhosa prepararam-no a conhecer os limites da potência humana. Também está claro que Dostoiévski e Nietzsche foram suas leituras constantes. Mas se a totalidade da condição humana não está contida nessas páginas, é certo, pelo menos, que ela não cessa de estar em questão, e tão tragicamente, tão profundamente que o livro se encontra ainda em sintonia, pelos seus acentos, às dores mais pesadas e aos maiores sofrimentos. É uma prova segura de seu excepcional valor.

Acaso resumirei essa longa narrativa? Para quê? Os nossos leitores vão querer lê-la o quanto antes. E é muito evidente que o maior interesse do livro não está em sua intriga, por mais emocionante que ela seja. A revolução de 1927 em Shanghai, o triunfo de Chiang Kai-Shek, primeiro ao lado dos comunistas, depois contra eles, tal é, em resumo, o tema. Se André Malraux o escolheu é porque um tal evento é uma grande provação humana, dá ocasião de verificar o que podem valer corações e espíritos. E além disso os homens aparecem nos limites deles mesmos, vivem e morrem numa espécie de frenesi que é sem dúvida aquilo que um espírito maravilhosamente rápido deve preferir pintar. O livro é sombrio, mas a quem estimar que há nele horror demais, eu aconselharia que lesse os espantosos livros de Dwinger, publicados há poucos anos, e nos quais uma testemunha nos relata os episódios da guerra siberiana entre os vermelhos e os brancos. Nós conhecemos pouco esses horrores. Mesmo assim, eles aconteceram. Malraux, valendo-se de sua própria experiência, ainda conseguiu encontrar nessas narrativas os elementos que deveriam compor a atmosfera real do drama que ele estava contando. Também ouço reclamarem que a ação de um tal livro seja tão distante em relação a nós que o autor tenha precisado ir até a China procurar os meios para definir nossa condição. É justamente isso, ao contrário, que ao meu ver faz desse livro um livro exemplar. Maior e longinquo reverentia. A frase é velha e foi muito empregada, mas continua verdadeira. O exotismo é um dos princípios da grandeza dessa obra. Todas as nossas desordens, todas as nossas misérias, todas as nossas grandezas aparecem além do mundo, afastadas de nós como num espetáculo.

A maior das belezas do livro – e nada digo sobre a intensidade de certas descrições ou de certas cenas, que evocam a imagem, a reprodução cinematográfica – está em algumas conversas terrivelmente lúcidas no curso das quais os personagens, elevados acima de si mesmos pelo evento, desvelam todo seu segredo. É aí que se deve buscar o espírito da obra, a definição que se pode extrair de nossa condição.

Estamos sós, com uma solidão que nada cura, contra a qual, no entanto, não cessamos de lutar. O amor é a maior das defesas, o amor, “essa cumplicidade consentida, conquistada, escolhida”, o amor para além do julgamento:

Os homens – diz Kyo Gisors – não são meus semelhantes, são aqueles que me olham e julgam; meus semelhantes são os que me amam e não me olham, que me amam contra tudo, que me amam contra a decadência, contra a baixeza, contra a traição, a mim e não ao que eu já fiz ou farei, que me amariam tanto quanto eu me amaria a mim mesmo- inclusive até ao suicídio… Só com ela [com May, sua mulher] tenho em comum este amor despedaçado ou não, como outros têm, juntos, filhos enfermos que podem morrer. (pp. 64-65)*

Não conheço nada tão tocante quanto essas palavras, vindas tão evidentemente do mais profundo de um ser… E nós temos ainda outras defesas: o heroísmo, a revolta, a contemplação, o ópio:

É muito raro que um homem possa suportar a condição humana… Tudo aquilo por que os homens aceitam deixar-se matar, acima do interesse, tende mais ou menos confusamente a justificar essa condição fundamentando-a na dignidade: cristianismo para o escravo, nação para o cidadão, comunismo para o operário… Todo homem sonha ser deus. (p. 220)

E assim, todo o trágico do livro reside nos esforços que fazem alguns heróis, Tchen, Katow, Kyo, para escapar à condição humana, ultrapassar a si mesmos, de alguma maneira tornarem-se deuses. A revolução é, ao mesmo tempo, a ocasião e o resultado desse prodigioso esforço. E acredito estar aí a verdadeira grandeza, mas também os limites dessa obra. Todos os personagens que nela aparecem são de alguma maneira excepcionais, e nela talvez aprendamos mais como devemos viver do que como vivemos.

Seu livro, caro Malraux, força-nos a refletir muito. Se eu considero apenas o frenesi desse tempo, se me deixo embalar por ele, fico tentado a te dar razão, a pensar que a condição humana é precisamente aquilo que você pensa dela. Vejo-nos presos em mil debates monstruosos em relação aos quais, voluntária ou involuntariamente, nós nos definimos. Mas ocorre que, cansado desse frenesi, desse tumulto ensurdecedor do mundo, eu envio a não sei que potências desconhecidas uma reza para que elas me concedam um pouco de silêncio, o tempo de viver em mim um momento. E fecho os olhos. E escuto. Penso em nossa condição, e é algo que me faz mal, que me dá vontade de chorar muito e de sorrir um pouco. Esse sorriso, Malraux, é a nossa vitória. Você se lembra do “heroísmo discreto” de que fala Nietzsche? Pois bem, contra Nietzsche, que o reservava a super-homens, contra você talvez, penso que todos os homens acabam sendo esses heróis discretos. Considero a nossa vida como algo ainda mais atroz do que você diz. Você a representa como uma carnificina. E tem razão. Mas é uma carnificina mais horrível do que aquela que você pinta porque é uma carnificina sem carnificina, uma carnificina muitas vezes pouco visível e assustadoramente silenciosa. Cheguei à conclusão de que a vida cotidiana dos homens medíocres é bem mais heroica que a vida dos heróis. Os heróis têm sorte; eles têm o recurso da bomba, do revólver, do ópio, da aventura. A maioria dos homens, não. Nada. Nada além de si mesmos, onde é preciso, custe o que custar, achar recursos. A condição humana? Uma batalha perdida antecipadamente, que no entanto se deve travar todos os dias como se fôssemos vencê-la. Você tem razão, os homens não podem suportar a condição que lhes é imposta, mas mesmo assim a suportam. As ações violentas garantem a teus heróis uma espécie de ausência. Disparar o revólver tantas vezes e tão habilmente é estar ausente de si mesmo. Mas a maioria dos homens não tem revólver. É preciso que permaneçam em si, ou, se em algum momento saem em favor de alguma aventura, que voltem para si. O mais trágico é esse fatal retorno a si.

Escrevo essas coisas, e sinto um pouco de vergonha ao constatar de repente o quanto já estou velho. Você, Malraux, com certeza pensa como eu. Mas você decidiu não o dizer. Você quis que teu livro fosse uma grande lição de vontade. Aquilo que um de seus heróis diz do marxismo, aposto que você o diria de bom grado a respeito da própria vida: “há no marxismo o sentido de uma fatalidade, e a exaltação de uma vontade. Cada vez que a fatalidade passa à frente da vontade, eu desconfio” (p. 139). E você pensa que numa época tão degradada quanto a nossa, os únicos livros que valem são aqueles que acrescentam energia humana. O que você parece ignorar, você o ignora por premeditação. Porém, tome cuidado. Eu tenho as mesmas suspeitas que você. Mas não aceitemos ser enganados por nossas aventuras privilegiadas. Quanto a mim, decidi não “dar uma de Deus”, como dizia Pascal. Não pelas razões de Pascal, mas contra elas, por razões absolutamente humanas. Homem medíocre, ligado pela minha carne e meu espírito a homens tão medíocres quanto eu, sei que tudo o que temos de vencer é essa mediocridade. Mas é impossível fazê-lo se não estamos conscientes dela. A solução será medíocre, eu sei, caro Malraux. Aceitar isso, no entanto, é a maior das coragens.

Enfim, não quero que nenhum romantismo nos console, mas também não aceito que nenhum romantismo nos desole. Algumas vezes cheguei a pensar, até a escrever, que nós éramos somente esses homens solitários em que você também acredita. Pergunto-me agora se isso não era ceder a algum romantismo cristão. No presente momento, acredito que a comunhão entre os homens não os define menos que a sua solidão. Talvez nada sejamos senão os outros, as diversas sociedades que eles fazem em nós. Nossa vida é a vida dos outros, a morte dos outros é a nossa morte, nós cessamos de existir na medida em que a comunhão se torna menos numerosa e menos densa. Não seríamos razoáveis se negássemos a alegria que advém de sentir que pessoas que se amam podem fazer um pouco de bem umas às outras… Paro por aqui. Teu livro dá pretextos demais.

Revue Europe, 15.6.1933


* As traduções de trechos do romance foram extraídas da seguinte edição: André Malraux. A condição humana. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 1998.

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