Jocê Rodrigues
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo para escavar.
Uma ideia de exílio e túnel.
Adélia Prado
Lar doce lar: expressão que para muitos traduz o prazer e o alívio de chegar a um espaço seguro, íntimo e resguardado. Sentir-se em casa, outra expressão bastante conhecida, diz respeito a alcançar um estado de espírito intimamente ligado ao conforto e ao bem-estar.
Para os antigos gregos e romanos, a casa não era só o teto sob o qual se vivia. Era também o lugar onde se morria e que, de certa forma, permanecia mesmo após a atualização de status de ser vivente para de cujus (vulgo falecido).
Ela, a casa, era um templo, um espaço de culto aos ancestrais, como destaca Fustel de Coulanges no clássico A cidade antiga (1864), em que analisa como as relações entre espaço doméstico e culto sagrado deram origem ao que depois passamos a chamar de direito de propriedade.
Ainda no século XIX, o filósofo e crítico de arte inglês John Ruskin defendia de modo apaixonado, em As sete lâmpadas da arquitetura (1849), a sua visão da casa como um lugar guardião de recordações. Um espaço de aura sagrada que precisa ser preservado: “creio que, se os homens vivessem de fato como homens, suas casas seriam templos – templos que nós nunca nos atreveríamos a violar e que nos fariam sagrados se nos fosse permitido morar neles”.
Mas o que acontece quando, cada vez mais, abrimos as portas e janelas de nossos lares para que as veias e artérias da nossa vida íntima, onde corre sumo, a essência da nossa individualidade, sejam transformadas em dados e tenhamos o nosso espaço particular dessacralizado pela era da informação e da vigilância?
É curioso notar como, na atualidade, cada vez mais pessoas alegam ter receio de receber visitas em suas casas, sob o pretexto de sentirem seu espaço invadido quando, ao mesmo tempo, não enxergam problema algum em lotá-la de dispositivos que monitoram, vinte e quatro horas por dia, toda a atividade que acontece lá dentro: com quem falam, quantas vezes fazem sexo, as músicas mais tocadas, a refeição mais pedida. Enfim, um paradoxo ainda difícil de compreender.
Guardar segredo é coisa do passado. É, literalmente, algo datado, já que todo segredo, até o mais íntimo deles, é escavado e transformado em dados que podem ser utilizados em algum momento. Talvez para lhe vender aquele sapato que você tanto quer ou para contratar aquele plano de saúde que acabou de entrar em promoção.
É que o segredo é essencial apenas para a ordem terrena, que tem como característica certa opacidade. Já a transparência, em evidente oposição, surge como “slogan da ordem digital” e “elimina todo velamento”, como bem aponta o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han.
Na iminente realidade que se desenha no contexto de uma vida aceleradamente digitalizada, todas as paredes desabam de vez. Cedem as últimas vigas da privacidade; as fogueiras das vaidades são sutilmente trocadas por lâmpadas bluetooth acionadas por comando de voz e as portas, antes guardiãs e protetoras de segredos genealógicos e pessoais, não são mais do que simples adereços.