EM NOME DO FILHO/

Gustav Klimt, "Morte e vida" (1916)
Leopold Museum, Viena

Antonio Arruda

O PAI


sentado na poltrona olhando para um ponto da casa além da materialidade da casa e além da materialidade de seu olhar de lago
,
profundo
,
atravessando a densidade da parede.

Um corpo decompondo-se.

O cheiro podre esparramando-se pela memória afetuosa do lar. A sonda, o soro, o alimento pastoso injetado pela mãe, os aros grossos dos óculos contornando a vida ainda pulsante
,
apesar de.

Os aros grossos emoldurando a superfície vítrea onde o amanhecer assombrava a morte com seus raios
,
apesar de.
Apesar de
,
era doce o olhar do pai.

A pele preta do pai com seus sulcos, veios de antigo rio, raízes de alegrias da infância. Riscos memoráveis – a escrita na pele preta das palavras nascidas do esôfago, como arroto, desde que a lâmina cortou a garganta e arrancou a faringe, a laringe, a voz.

No leito do hospital, olhou para mim e me entregou um pequeno pedaço de papel: “Está tudo bem, meu filho”.

O dia anterior foi o último em que sua voz, rouca e fraca, sussurrou palavras das quais não me lembro. O que me restou foi o “Está tudo bem, meu filho”, escrito naquele pequeno pedaço de papel, entregue pelo pai no dia seguinte à laringectomia que extirpou mais uma parte do câncer que o carcomia – ossos, próstata, metástase...

METÁSTASE


palavra tão sonoramente bela pode carregar a morte em cada fonema? Será por isso que a beleza estética da metástase-palavra se forma como verbo onde habita o anúncio da podridão? Não é, a palavra, também decomposição? Como pode o putrefato-substantivo, escritor da devastação da carne e do corpo, conduzir assim – em sons que ecoam a finitude da vida em sílabas que ressoam a explosão do cancro – o autor ao ponto em que se desescreva nas palavras do pai entregues como mensagem de quê?
Esperança? Alento? Conforto?
Em qual conforto é possível repousar diante do pai sem voz? Qual fala se expressa quando o olhar da morte ressignifica-se em um “está tudo bem, meu filho”, sendo que a metástase atravessa a palavra vida? Qual estética me consome, carcome, penetra como a memória daquele instante em que o “está tudo bem, meu filho” ficou escrito em mim como o Incompreensível-amor-do-pai que queria o quê?
Proteger, aninhar, acalentar o filho também sem voz?

CICATRIZES


revelam cortes que me atravessam, ultrapassam.

A navalha cortando a garganta do pai.
A lâmina leve tocando a superfície traz em si a densidade da inevitável morte.
Mas não haverá morte, ainda.
Haverá o que se cala, a extirpação dos órgãos, o silenciamento da voz
,
mas não
,
não haverá morte.

A LÂMINA


atravessa possibilidades de cura.

EU


não vi a luz clara, forte, que incidia sobre o corpo do pai na mesa de cirurgia. Não vi essa luz. Antes outra, de um mistério que me trespassava.
Esse mistério que me trespassava cortava mais que a lâmina extirpadora dos órgãos do pai. Mistério que me trespassava – ausência da voz do pai. Que me trespassava – ausência da voz. Me trespassava. Ausência da. Trespassava. Ausência.
Do
Pai.
Esse mistério que me trespassava como a luz clara e gritantemente invasiva que se sobrepunha ao corpo do pai no instante em que a lâmina rasgava sua garganta

essa luz

mistério da não-voz que ainda ecoa na minha.

O SILENCIAMENTO


do pai era névoa a tocar a superfície do lago.
O silenciamento do pai, avencas em agonia.
O silenciamento do pai, noite presa nela mesma.

O silêncio do pai é poeticamente terrível.

O silêncio do pai dá voz à palavra do filho
lâmina-texto, palavra extirpada do coração
palavra-corte – atravessamento da Memória
A não-voz do pai – cicatriz entregue em um pedaço de papel:
“Está tudo bem, meu filho”.

PALAVRA


cicatriz de cortes incomensuráveis.

Do corte à cicatriz na garganta do pai nasce o percurso literário? Talvez comece aí o entrefácio da voz poética? Seria esse o corte primordial que desafia a lâmina sedenta por cortar o falo-mítico totêmico – essa metástase textual, erótica, obscena?

O PAI


sentado na poltrona às vezes me falava com olhos de desespero.
Lago agitado.
Ventania a revoar a superfície dos olhos.
O penetrar intenso dos olhos-lâmina.
A superfície-lâmina do lago-olho a me cortar todo.

Abundantes olhos na face cadavérica.
Abundantes de um sofrimento inverso ao amor que sempre tive.
O amor cicatrizado no pedaço de papel,
atravessado pelo corte-estético que me toma como obsessão.

Sempre se escreve um mesmo texto quando o que se acessa é a mãe de todas as dores.

E, desde esse instante, na melancolia da infância, o desejo costura cortes com linha que nunca cessa de perfurar as carnes da escrita.

O corte no texto é o que dá voz ao silêncio
é o que conduz à cicatriz-palavra, esteta do terrível,
que desenha êxtases na pele moribunda.

O PAI


lia Bíblia e jornal. Só. A notícia, a missa. Na cadeira de suor dolorido, crosta de silêncios. O rito dominical. Haveria, também, olhos nas costas? Olhos arranhados pelo atrito entre o tecido e o suor? Qual dor guarda-se nas costas, a olhar de frente os encostos em que nos iludimos no repouso? A lâmina rasgaria o encosto da poltrona do pai?

A CICATRIZ DO PAI


buraco ocupado por um tubo metálico por onde saía a voz. Foi necessária a cicatrização para que o tubo pudesse servir ao que veio. Antes, só tubo. E agora a faringe e a laringe do pai são apenas uma faringe e uma laringe. Antes, voz.

Para onde foram a faringe e a laringe do pai depois que as arrancaram de seu corpo?

O CORTE DA VOZ


fenda poética por onde atravessa a palavra.

O corte também se dá no pensamento. Na rememoração toda ela em pedaços. No recapitular dos instantes, onde um processo cirúrgico de relembrança opera o nascimento do livro. O buraco na garganta do pai é por onde atravessa toda uma vida de filho, e toda uma escrita que apodrece no exato momento em que nasce – é essa a estética que me estripa.


um texto-corte pode dar conta de tanta dor estética.

AMOR


cicatriz que pousa sobre inevitáveis, infindáveis cortes.

ANTONIO


se olhasse agora para trás e encontrasse seu eu-criança, o menino-mirante, e ele te perguntasse:
- O que procuras, Antonio?
O que responderias?

Ficaria em silêncio, fitando seu olho-lago a mirar o futuro na morte, a contemplar, no corte, a paisagem do último pôr do sol.

Iria de mãos dadas com ele ao encontro do
“está tudo bem, meu filho”
,
e sussurraria em seu ouvido que ele não precisa aceitar o papel.
Pode até mesmo rasgá-lo na frente do pai.
Isso também seria amor.

Voltaria para casa e me deitaria com ele no colo da mãe.
Faríamos cafuné uns nos outros até que o pai retornasse.
Então partiria, deixando ao menino-pupila minha lágrima vertendo no Tempo.

O CORTE


no Tempo quando se olha para trás é o mesmo que o Corte
no Texto
o Corte
no Texto quando se olha para trás é o mesmo que o Corte
no Tempo.

A MESMA PELE


onde a lâmina-palavra rasgou-se Luz, onde aquele clarão todo trouxe à consciência a inevitabilidade da morte, anunciada em intervalos de silêncio e urro, pluma e lama, brisa e mofo.

O cheiro acre do podre do pai no fio da navalha-vida, essa metástase que nos avassala.

Até hoje

E nos corta

Eternamente
.
.
.

Compartilhe:

Culpa

Conto de O voo das libélulas e outros contos inflamáveis

Poemas

Fortíssimos poemas pelas mãos de Ana Maria Oliveira.

Autorretrato com grimório

Crônica sobre a experiência de sobreviver ao ritual xamânico conhecido como “Tenda do Suor”

Translate