Douglas Nunes
A beleza estilística na linguagem dos grandes escritores é o ápice da expressividade que, sem o trabalho deles, seria quase impossível de ser concebida.
Essa maestria com as palavras é “um jeito memorável de dizer”, dizia o poeta brasileiro Bruno Tolentino. A tradição literária ocidental, saída das literaturas latina e grega, fundou-se sob uma espécie de continuação cíclica, em que cada escritor, lendo e absorvendo o estilo de outro, e de outro, e de mais outro, incorporou-o ao seu repertório pessoal.
A imitação, diferente do que se pode pensar, não é uma servidão linguística, na qual o escritor principiante vai se prender de modo a esterilizar sua capacidade de escrever algo belo e elegante. Longe disso; ela é, na verdade, uma iniciação a partir dos escritos daqueles cujos dizeres chegaram à excelência – para não dizer à perfeição. Quem não quer fazer um texto em que se destacam as qualidades mais refinadas atribuídas a um escritor talentoso? É por isso que o molde expressivo desses escritores se perpetua no tempo e é o ponto de partida na construção do estilo próprio de outros.
Acontece na escrita o que vou chamar aqui de processo “antropofágico literário”, valendo-me da ideia de Oswald de Andrade no Manifesto antropófago: para que nasça um talento individual, é preciso que ele se alimente das obras que seus antecessores produziram. Com o consumo da obra alheia, o talento em construção vai se desenvolvendo por meio de uma imersão. É ela que o coloca em contato com a extensa assembleia de imortais das letras: de Homero a Shakespeare, de Ovídio a Montaigne, de La Fontaine a Stendhal, entre tantos outros. Esses escritores também leram, debruçaram-se e consumiram livros de sua predileção e os usaram para produzir as suas obras.
Daí porque a imitação é uma jornada iniciática sem a qual os textos que produzimos empobrecem: não há como ignorar a força, a beleza, a expressividade que os grandes escritores nos legaram.
Gosto de ver a boa imitação como um dessecamento inteligente e intencionado, e não como um mero exercício de cópia. Ao me deparar com uma frase que fisgue a minha atenção, anoto-a imediatamente e me pergunto: como esse escritor a organizou? Ele é conciso sem se levar pela curteza incompreensível ou ele é palavroso mas ciente do que quer dizer? Isso tudo, levado em consideração no momento do exercício da imitação, me faz atentar para um modo consciente de sorver a maneira como tal ou qual escritor redige.
É como se pegássemos um quadro e, valendo-se dos contornos da expressão do autor, colocássemos nele o nosso acabamento final, com a nossa essência ao manejar e escolher as palavras, as frases e a ordem que elas vão ocupar no texto.
Há alguns pensamentos que circundam o processo criativo dos aspirantes a escritor: a repressão ao estudo da tradição literária, de forma a lhe negar sua importância; e a aceitação de uma pretensa originalidade que, padecendo de substância linguística que lhe conceda força no dizer das coisas, o faz acreditar nessa ideia de escrever único, pensado e patenteado somente por ele.
Talvez esse pensamento de originalidade seja reforçado pela ideia bem moderninha de tratá-la como valor absoluto, isento de contestação ou contradição. Essa revolução artística, cujo berço é a famosa Semana de Arte Moderna de 1922, promoveu a ideia de que era preciso romper com padrões estéticos das artes – grupo do qual a literatura fazia parte. A partir desse marco de 22, escritores que defendiam a ruptura com a literatura brasileira até então consolidada criaram obras, no mínimo, chatíssimas, algumas ilegíveis tamanho o contorcionismo linguístico para dar a impressão de algo “único”.
Nada pior do que viver sob o despotismo da originalidade. Ficar enclausurado por uma hipotética ideia de que se vai criar algo espetacular, nunca antes lido, é um infantilismo escancarado e uma forma de desprezo pelo processo criativo verdadeiro. Quem escreve precisa deixar se guiar por aquilo que passou pelo jugo do tempo e tem, de fato, valor literário. Leu um parágrafo interessante e quer imitá-lo em algum texto que você está escrevendo? Pelo amor da BIC Cristal, escreva-o agora mesmo! Mas é preciso saber o que imitar e, para isso, pressupõe-se a leitura de bons autores.
A leitura dos grandes escritores é o substrato da boa escrita. Sem ela, a formação do escritor torna-se incompleta. Ora, se você quer reconhecer o que tem – ou não – valor literário e usá-lo para alargar o seu repertório a fim de se expressar com mais esmero, como deixar a leitura dos melhores autores de lado? Isso é, digamos, impossível.
Gustave Flaubert, escritor francês, autor de Madame Bovary, dizia que “o talento comunica-se sempre por infusão”.1 Daí porque a leitura é imprescindível na constituição do talento individual de quem escreve e quer construir seu estilo: ela faz com que coloquemos as belezas do dizer de um escritor sobre o nosso, de modo que potencializamos a nossa identidade individualizada como escritores.
Lembro de um artigo em que o professor Olavo de Carvalho cita Herberto Sales, a quem Olavo tinha admiração pela obra. Diz ele que Herberto, sentado no saguão de um hotel, carregava consigo um caderno de anotações e um livro do escritor francês Marcel Proust para anotar as passagens marcantes e usá-las à sua maneira quando lhe conviesse. As lições do crítico literário Antoine Albalat a respeito do assunto vão ao encontro desse episódio com os referidos escritores brasileiros. O próprio Albalat, no seu segundo livro em que fala da leitura como processo geral de assimilação, defende a tese de que é preciso ler para apreciar, admirar, descobrir preferências de estilo e expressão. Eis o motivo por que ler os maiores é fundamental: o acúmulo e a diversificação de leituras ajudam a construir o estilo pessoal.
A imitação possibilita o exercício das próprias habilidades de escrita. Não amedronta nem endurece o potencial de quem está aprendendo a escrever. E ela não vai se tornar algo caricato e servil, como se fosse um pasticho grosseiro desse ou daquele escritor, porque uma vez que você tenha aprendido com tal escritor, e com vários outros, e assim sucessivamente, você experimenta vários modelos e percepções de estilo diferentes e os absorve de modo a introjetar cada um deles na sua escrita – e, naturalmente, ampliá-la na sua expressividade, torná-la mais criativa.
Digo isto a mim mesmo e compartilho desta crença: quem está aprendendo a escrever deve variar os estilos e saber como incorporá-los sem ser pego na armadilha do enrijecimento na forma de se expressar. Alguns acreditam que isso pode tornar caricata a forma como escrevem. No entanto, a boa imitação acontece de maneira contrária: não se trata de reproduzir construções arcaicas, inutilizáveis em nosso tempo, mas sim de perceber as nuances do estilo do autor, de como ele se valeu de tais palavras para escrever o que queria.
Mais do que reprimir o potencial criativo, a imitação vai potencializar a voz no estilo. Esse exercício não descredibiliza a capacidade do imitador; pelo contrário, coloca-o em uma posição de aprendiz consciente, fiel a uma linhagem de gigantes literários, que infelizmente são pouco lembrados em nossa geração.
Eis o sentido mais adequado para se aprender a usar a imitação como forma de enobrecer a própria escrita. É necessário se amparar nos melhores escritores, aqueles que conceberam a literatura ocidental. Se Shakespeare aprendeu a criar frases memoráveis, por exemplo, por que nós iríamos ignorar a prática de escrever nos baseando em obras dos maiores escritores que já existiram?
Uma pergunta que podemos fazer a nós mesmos é a seguinte: como um Homero, um Dante Alighieri, um Platão, um Goethe, um Miguel de Cervantes julgaria o que eu acabei de escrever? O que teriam dito para eu aproveitar das suas obras? Essa dinâmica interrogativa, como em um tribunal, ainda que um mero exercício mental, pode render progresso à sua escrita. A humanidade conta suas histórias há milênios. Uma vasta galeria de escritores lançou-se a narrar, cada um em sua época, o cerne do comportamento humano, e o fizeram com tanta maestria que seria desrespeitoso não os ter como referência para que, aprendendo e sorvendo o melhor deles, possamos contar as nossas.
Imitar não é suprimir suas habilidades. É reforçar seu depósito pessoal de modos de dizer. E honrar a pena daqueles que contaram as melhores e atemporais histórias.
1 Antoine Albalat. A formação do estilo pela assimilação dos autores. Trad. de Cândido de Figueiredo. Campinas: Kírion, 2020, p. 30.