Anora (2024)

Caio César Esteves de Souza

Jovem rico russo casa com jovem prostituta descendente de russos em Las Vegas após se conhecerem em um strip club em Nova York. Dias depois, seus pais descobrem o casamento por meio de tabloides, mandam seus capangas forçarem uma anulação do casamento. Há uma série de desencontros, o jovem foge e é encontrado, a anulação se mostra mais complexa do que pensaram que seria inicialmente, os pais chegam da Rússia nos EUA, se mostram pessoas detestáveis e forçam a anulação. A ex-esposa é forçada a voltar à sua vida anterior. O jovem rico será forçado a trabalhar na firma de papai. Fim. Mas é isso mesmo?

Saí do cinema ainda pensando no filme. Comprei a janta pensando no filme e cheguei em casa pensando no filme. Abri este documento pensando no filme e comecei a escrever para tentar organizar os pensamentos. Não porque o filme seja muito profundo, mas porque há algo nesse filme que me pareceu conhecido de uma forma diferente. Eu reconheci algo ali que não sabia bem como explicar. Quando o filme acabou, virei para um casal que estava sentado do meu lado e comentei “estranho, né?” O rapaz riu e falou “muito” com um certo ar de tédio. A moça estava emocionada. É esse tipo de estranhamento/reconhecimento que estou tentando entender.

Tenho pouco ou nada em comum com qualquer das personagens desse filme. Não sou prostituta, capanga, milionário, juiz ou mordomo de hotel em Las Vegas. Anora, a prostituta que protagoniza o filme, parece ter vergonha de sua origem russa ao recusar seu nome e insistir que a chamem de Ani. Igor, o capanga com quem ela termina o filme em um abraço emocionado, insiste na beleza do nome Anora. Que diabos eu tenho a ver com isso?

Não quero fazer este texto ser sobre mim, mas não sou crítico de cinema e, como disse, estou escrevendo para tentar entender o que pensei e senti sobre o filme. Há evidentemente uma infinidade de coisas que podem ser ditas sobre as relações de gênero ali. As duas mulheres mais fortes do filme, Anora e Galina (mãe do rapaz rico, Ivan), têm personalidades fortes e antagônicas. A mãe quer anular o casamento o quanto antes; Anora quer preservá-lo. O moleque, sem qualquer personalidade e fazendo jus à imagem do herdeiro irresponsável que pensa que o mundo é um brinquedo que pode ser quebrado sem maiores consequências, aceita a ideia da anulação como um fato consumado a priori. A mãe ordena, o filho obedece. E Anora? Ela foi apenas mais um dos objetos quebrados em algumas semanas intensas. Tanto ela quanto o casamento sequer chegam a ser ficção para ele, pois não parece haver qualquer tipo de “faz de conta” no qual ele efetivamente tenha acreditado em algum momento.

Mas a questão é mais interessante que essa, creio. Acho que a chave para entender esse sentimento incômodo que tive em relação ao filme, essa identificação esquisita que parece um pouco fora do lugar, vem dos capangas. Eles obviamente são personagens com quem nós somos levados a antagonizar desde o primeiro momento em que aparecem em cena. Eles aparecem e nosso herói, Ivan, foge desesperadamente. Eles imobilizam Anora em cenas algo cômicas e algo dramáticas. Amarram suas mãos, depois suas pernas e a amordaçam para que ela deixe de gritar acusando-os de estupro. São eles que se empenham durante toda uma noite para achar o moleque e tentam, desajustadamente, forçar a anulação do casamento em Nova York, em vez de em Nevada. São violentos com outras personagens e truculentos de modo geral.

No entanto, quando os capangas encontram Ivan no mesmo strip club onde ele conheceu Anora, algo pareceu mudar. O reencontro que esperava ver entre Ivan e Anora é anti climático para dizer o mínimo. Ele está trêbado, não se importa com ela e mal consegue se comunicar. Na verdade, só volta a falar algo que seja minimamente compreensível quando em presença de sua mãe. Quando confrontado por Anora, que exige que ele “vire homem” e fale com ela, ele responde simplesmente que voarão para Las Vegas e anularão o casamento, “obviamente”. E agradece pela diversão. Quando o casamento é anulado, um dos capangas, Igor, diz que acha que Ivan deveria se desculpar com Anora. Sua mãe nega, Anora e ela brigam, seu pai tem um ataque de riso ao assistir a briga… e Ivan segue mudo.

Os capangas são, no fim, os únicos que efetivamente entendem a ironia trágica da situação de Anora. Ela, simultaneamente interessada na mudança de vida brusca que um casamento milionário dessa natureza lhe traria e crente na reciprocidade de seu sentimento por Ivan, acredita ser algo que todos eles sabiam que ela não seria: parte da família. Os capangas leem desde o primeiro momento a cisão irremediável (de classe, se isso não arrepiar os cabelos de leitores que ainda caçam o fantasma do comunismo) que separa Anora e Ivan. Eles sabem que ela e eles não têm outra função naquele ambiente a não ser entreter o rapaz rico e fazer as vontades de seus pais. Quando repenso nas cenas em que Anora foi imobilizada, me dou conta de que não havia empenho real deles em sua truculência (com exceção de Toros, o chefe deles que aparece mais tarde). Havia uma quase cumplicidade, uma consciência de estarem partilhando um mesmo modo de vida do qual nenhuma escapada passaria impune.

A parte final do filme, quando apenas figuram Anora e Igor, leva essa cumplicidade ao máximo. Em determinado momento, ela o acusa de ter olhos de estuprador. Ele, incrédulo, se defende simplesmente dizendo não o ser. A cena é estranha, e só parece se explicar um pouco na cena final, quando Anora praticamente força Igor a transar no carro de sua avó. Ele foi o capanga que mais demonstrou simpatia por ela e, quando ele devolve sua aliança, Anora deita o banco de Igor e sobe nele. Durante a brevíssima cena de sexo, Igor tem um olhar assustado e um pouco incrédulo. Ele tenta beijá-la, ela rejeita o beijo e cai no choro, abraçada com ele. E assim o filme acaba. Anora tenta retribuir o afeto de Igor da única forma com que foi tratada durante o filme, com violência. Igor, sem deixar de lado uma truculência que parece intrínseca à personagem, demonstra sua empatia por Anora.

Como disse, não sei muito bem o que penso desse filme. A divisão de classes é muito visível e obviamente é parte estruturante da narrativa. Tensões de gênero existem a todo o tempo. Mas há também algo estranho, uma solidariedade truculenta de classe certamente marcada pelas tensões de gênero que a perpassam. Os capangas sabem, desde o princípio, qual será o fim da história. Ivan também. Seus pais, também. Diamond, a stripper antagonista de Anora, também, ao dizer que seu casamento não durará mais que duas semanas. Me recuso a crer que Anora não o sabia. Acho que o estranhamento/identificação talvez venha daí.

Nós, assistindo ao filme, somos levados a realizar o mesmo processo de Anora. Somos levados a crer que o seu casamento é uma realidade e que ela deve lutar para preservá-lo. Somos levados a nos questionar para onde Ivan terá ido e por que ele terá fugido. Somos levados até mesmo a imaginar que ele estará planejando algo. E somos levados a ignorar todos os sinais materiais da realidade que se apresentam diante de nossos olhos. Ignoramos que Ivan não hesitou em deixar Anora para trás. Ignoramos que ele nenhuma vez sequer atendeu as suas ligações ou tentou contactá-la. Ignoramos que nenhum de seus amigos pobres têm a mínima ideia de onde ele está. Ignoramos o fato de que ele não atende a ligação de nenhum deles. Ignoramos os olhares de pena de Igor a Anora durante todo o filme. Ignoramos a forma agressiva com que Ivan trata o mordomo em um hotel em Vegas. Ignoramos o quase sussuro de “o senhor sempre me pega” do mordomo e seu sorriso amarelo após levar um grito de Ivan como uma “brincadeira”. Como Anora, compramos a narrativa e suspendemos a realidade. O filme acaba justamente quando Anora aceita a realidade, entende que sua vida voltará ao que era antes, sem qualquer mudança possível. Sua crise de choro, abraçada ao homem que ocupa a posição mais baixa entre os capangas do filme, rompe a esperança que a moveu em todo o filme. E nós, assistindo ao filme, somos também jogados de um estado de suspensão da realidade para um de desabamento da realidade em nossas cabeças.

Enfim… Anora. Estranho, né?

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